Congressos, Jornadas e Seminários
REFIGURANDO O ESPECTO DA NAÇÃO.1
Inocência Mata
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa/ FLUL
Centro de Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa/ CEC
mata.inocencia@gmail.com
Como pode o pensamento crítico-histórico enfrentar
uma literatura que desdobra com tamanha evidência
suas radicais contradidições, sua tenaz e englobadora
heterogeneidade?
Cornejo Polar
Refigurando o espectro da nação
O ensaio pretende situar a escrita da História, “sucessora” da escrita da terra, no contexto daquela escrita que, por razões exteriores ao texto, continua a escrita da nação, embora não já numa perspectiva nacionalista. Porém, fazendo implodir a “higiénica” (imagem da) nação e da identidade, com o objectivo de propor um outro modelo que busca nas margens e nos loci fixados pela ideologia nacionalista uma nação mais plural. Esse processo, de que a obra de Pepetela é um instância modelar, já denota não apenas uma visão evolutiva em relação à “visão colonial”, mas ainda um solapamento da visão nacionalista, através da estratégia de ab-rogação própria da estética pós-colonial, com recurso à sátira, à paródia, ao multiperspectivismo e à História. Por essa escrita, a narração da nação angolana surge como um projecto global feito de histórias locais.
Palavras-chave: Nação. Identidade. Escrita da terra/escrita da História. Discurso nacionalista. Estética pós-colonial.
Refiguring the spectrum of the nation
This paper aims to discuss the role of history writing as a successor to landscape writing in the context of the narration of nation, although no longer within a nationalist perspective. Nowadays, while questioning the “hygienic” image of the nation and its identity built during colonial times, the nation is narrated with the goal of proposing another model that seeks to discover on the fringes and in other patterns dealing with difference a more plural nation than that imagined by nationalist ideology. This process, where Pepetela’s novels are a further illustration of this kind of writing, not only gives evidence of an emancipated view concerning the “colonial view” but also holds up for questioning the nationalist view by resorting to abrogation strategies sanctioned by postcolonial aesthetics, mainly in the form of satire, parody, multiperspectivism and the writing of history. By using these strategies, the narration of the Angolan nation arises as a global project composed of local histories.
Não é raro encontrar-se expressa a ideia de que a escrita angolana pós-colonial é uma escrita de ruptura. Um dos sinais dessa ruptura, adianta-se, é a viragem para escrita da História, que assinalaria um novo locus de gestação textual, diferente dessoutro fundacional do sistema angolano (a natureza e a sociocultura e as realizações mundivivenciais do quotidiano), em momento coincidente com a pulsão nacionalista que lhe deu uma feição peculiar e “consagrou” a substância da angolanidade literária.
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Porém, torna-se necessário situar a escrita da história no contexto de uma literatura que, por razões exteriores ao texto, continua a escrita da nação, embora não já numa perspectiva nacionalista. Porém, fazendo implodir a “higiénica” (imagem da) nação e da identidade, com o objectivo de propor um outro modelo que busca nas margens e nos loci fixados pela ideologia nacionalista uma nação mais plural. Esse processo, de que a obra de Pepetela é um instância modelar, já denota não apenas uma visão evolutiva em relação à “visão colonial”, mas ainda um solapamento da “visão nacionalista”, através da estratégia de ab-rogação própria da estética pós-colonial, com recurso à sátira, à paródia, ao multiperspectivismo e à História.
Para compreender esse processo, vale a pena retornar às representações da escrita da nação na poesia angolana nacionalista, tomando como instâncias representativas desse período a poesia de António Jacinto, Agostinho Neto, de Viriato da Cruz e de Ernesto Lara Filho, para rastrear imagens e vinculações discursivas, imaginárias e simbólicas da natureza que vão operar a actualização discursiva da imaginação utópica. E se depois da independência, em período de rescaldo pós-colonial, a “desorientação” do mapa da nação assinala caminhos da distopia (de que Mayombe e A Geração da Utopia podem ser exemplos), a literatura angolana ainda continua a buscar outros rumos substanciais e discursivos na espessura prospectiva (da escrita) da História.
Com efeito, embora se possa pensar, com Saramago2, que toda a ficção literária é inevitavelmente histórica (pelo que a expressão “romance histórico” pode ser considerada uma tautologia), a dialéctica da relação entre literatura e história na escrita que tem a História como material substantivo é de complementaridade entre os dois discursos. O escritor, mormente o romancista, interage com o passado como um historiador cujo objectivo visa uma refamiliarização com os eventos que, por constrangimentos da história, foram esquecidos ou foram estrategicamente obscurecidos. Já não se trata, neste final do século XX, de “exumar” factos e personagens da história para lhes dar uma espessura celebrativa, como na escrita romântica e na escrita nacionalista (que tem, pela sua dimensão teleologicamente transformadora, uma contaminação romântica), mas de convocá-los para proceder à sua revisitação e perceber a sua lógica a fim de que possam ser compulsadas o sentido das suas ressonânicas no presente.
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Vê-se, por isso, que a escrita da história continua a ter uma função tão ideológica quanto a escrita da terra3 tinha no período colonial. No vazio de um período roído pelo desencanto político-ideológico – anos 80 e 90 do século XX –, e pelo questionamento das verdades absolutas de que resultaram perdas físicas, culturais, afectivas para o país, a literatura angolana (mormente a ficção, porém também a poesia) encetou uma busca de um sentido nacional com recurso a estratégias, por vezes aparentemente centrifugantes, e, deste modo, uma demanda problematizante sobre a construção de uma história com base numa só versão, fosse de matriz colonial(ista) ou anticolonial-nacional(ista). A actual produção persegue, e realiza, um “inventário de diferenças e conflitos” para se insurgir contra a privatização da História pelas sucessivas dominâncias, tanto do tempo colonial como do pós-independência, sempre em função de interesses, valores e crenças do grupo dominante. Como já demonstrei em outro lugar4, se compulsarmos a poesia celebrativa da terra e da pátria dos poetas da geração da Mensagem (Luanda) com a dos poetas da “geração das incertezas”, veremos que existe um tenso diálogo ainda sobre a terra e a pátria. À celebração da certeza de que dia se voltaria às muitas riquezas da terra, em “Havemos de voltar” (Sagrada Esperança, de Agostinho Neto), ou “Quando a minha mãe vier” (Meu Amor da Rua Onze, de Aires de Almeida Santos), José Luís Mendonça, porventura o poeta mais dialogante com os “consagrados”, apresenta o seguinte cenário pós-regresso, em que à eufórica previsão de uma vida livre, rica e feliz se segue, afinal, uma completa expropriação da própria vida:
O africano está a escorrer
como um saco de sal
somos filhos do crude e a cinza
de um sol eterno negoceia nossos ventre
quando nos deitamos noite e dia
de orelhas cortadas pela guerrilha.
A preto e branco nos cassumbularam
os dentes no siso e no
maximbombo dos mortos a infância
do pólen sitiado toma assento.
E içam gruas de vazias bocas o porão
dos nossos sonhos a escorrer
como um saco de sal.
(JLM, “Como um saco de sal”, Quero Acordar a Alva)
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Outro exemplo de interlocução é-nos dado pelo poema ainda de José Luís Mendonça “Sangrantes pedaços de metal” (Ngoma do Negro Metal) que “responde” de forma agressiva a essoutro de Agostinho Neto, “Sangrantes e germinantes” (Sagrada Esperança), que termina com uma disposição claramente – melhor, profeticamente – utópica,
Pelo futuro eis os nossos olhos
Pela Paz eis as nossas vozes
Pela Paz eis as nossas mãos
Da África unida no amor.– o de José Luís Mendonça é claramente de desesperança:
sonhos do meu mundo reciclado
por quimeras de pombas terebintinas.
A dominação da visão eufórica de uma pátria futura que reporia o equilíbrio quanto ao tempo presente é transversal na poesia nacionalista e anti-colonial, como na poesia de Ernesto Lara Filho, claramente sugestiva de um novo mundo mesmo se não visivelmente nacionalista (como o entendem os teóricos, pela vinculação entre o político e o histórico-cultural), por exemplo nesse poema “Um poema do ciclo vegetal”, em que o casamento remete semanticamente para uma (nova) cosmogonia nas relações humanas:
Até das flores brancas
com que as papaeiras se vestiam
para anunciar o noivado, o casamento.Tio José:
eu espero.– Nós esperamos.
Huambo, Dezembro de 1963
Um outro exemplum dessa réplica hoje, face à disponiblidade utópica de antanho, é a marcação distópica do tempo de uma dissinfonia que também a poesia de José Luís Mendonça anuncia em “Reconstrução Nacional” (Quero Acordar a Alva, 1997), aqui em subtil interlocução com “O grande desafio”, de António Jacinto:
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1974
Quimbanguleiros de todos os muceques
erguem o verde despertar das cidades
com blindagens de óleo palma
no eco encardido das nádegas1994
Nossas crianças roem os dentes
neste céu etílico de balas perfumadas2004
Nossa Senhora Santa Ana da Muxima
ainda marmoriza o país do rio Bengo
mas os deuses já não escarram mais o mel
da angústia em nossas bocas de papel
Esta ideia de dominância adequa-se à dinâmica da apropriação dos factos e da sua gestão. Com efeito, por ela se pode chegar à ideia de que, mesmo no tempo colonial, se esteve perante pelos menos duas esferas de dominância: a do poder colonial, dos autores do processo de desestruturação identitária africana, e que intentaram o apagamento da história cujos protagonistas e destinadores eram africanos – em suma, o colonialismo português; e a do contra-poder, isto é, da elite nacionalista que igualmente procedeu à apropriação das representações colectivas, integrando-as numa narrativa cujos ingredientes tiveram como fim a busca de um (único) sentido de nação que constituiu o objectivo do seu labor, muitas vezes através de uma “geografia da coragem” (Jorge Macedo), como se vê em A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, de Luandino Vieira:
[Domingos Xavier] só queria o bem do seu povo, e da sua terra (...) se portou como homem, não falou os assuntos do seu povo, não se vendeu (...) começa hoje a sua vida de verdade no coração do povo angolano... (Vieira, 1974, p. 128)
O relato da nação, em que se incorporou a função unificadora, fez-se, por necessidade pragmática, pela apropriação de factos e actos, primeiro para fazer contraponto à representação de uma temporalidade passada e presente, cuja estrutura social se fundamentava na violência da exploração económica e na subjugação cultural e, depois, para legitimar a previsão de um futuro cívico:
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(...)
Havemos de cantar!...Ah! Quando a minha mãe vier
E trouxer os meus irmãos
Arderá uma oguqira
À beira
De cada trilho
E o brilho
De cada estrela
Será ainda maior...
(...)
(Aires de Almeida Santos, “Quando os meus irmãos voltarem, Meu Amor da Rua Onze)
Um futuro que se realizou, porém, em evento na contramão do advento anunciado, como “denuncia” Aníbal, o Sábio, em A Geração da Utopia, em “esperança disfórica”, desesperança insinuada pode até dizer-se (não será bem explícita?), na (recente) poesia de Adriano Botelho de Vasconcelos:
Nos escombros as razões arrastam-se
pelos mesmos farejos das ratazanas ou se pegares
num castiçal d’oiro não vão as suas luzes
poder espalhar a aurora porque essa chaga
não se cura só por olhares
demoradamente o quarto de um hospital
até que te caiam as lágrimas por achares
sem valor todos os poços de petróleo que rodeiam
os condomínios de Talatona6.
(Vasconcelos, Luanary, 2007)
Na verdade, embora não sejam recorrentes, há na literatura angolana obras que tematizam a repressão pós-independência aos críticos do poder instituído, em Maio, Mês de Maria, de Boaventura Cardoso (em que os jovens do bairro do Balão desapareciam misteriosamente, numa explícita remissão à repressão que se seguiu a 27 de Maio de 1977), ou A Geração da Utopia, que refere explicitamente esse comportamento do exercício musculado do poder. Numa passagem bem enfática, Mundial, o ministro ex-guerrilheiro que, através do esquemas de competências relacionais, dá cobertura política a negócios espúrios, enraivecido com a lucidez de Orlando, o namorado de Judite, diz ao seu sócio Malongo:
– Se não fosse teu genro, amanhã estava preso por ofensa a um dirigente.
(...) Malongo deu-lhe uma palmadinha no joelho e serviu uísque.
(...)– Esse tempo já passou, Vítor, em que podias meter um gajo no kuzuo por ofensa real ou imaginária.
– Essa é que é a merda, essa é a merda. (Pepetela, 1992, p. 273).
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Ficção angolana: um projecto nacional feito de histórias locais
Pegamos no passado para sabermos como os nossos pais aqui chegaram com as mesmas utopias em algum pátio do tempo maltratado.
(Adriano Botelho de Vasconcelos, 2005)
É neste contexto, de reinterpretação de um corpo nacional que se apresenta fracturado em termos de memórias, que a ficção angolana tem sido expedita no processo de cerzimento identitário: Pepetela, Boaventura Cardoso, Manuel Rui; mais recentemente, João Melo, Roderick Nehone, João Tala, Ismael Mateus, Ondjaki, entre poucos outros. No entanto, de entre estes, não é temerário afirmar que a obra de Pepetela tem sido aquela que se revela mais sistemática neste processo de interrogar a história para a compreensão do presente. Na verdade, como qualquer narrativa histórica do tipo auto-reflexivo, a ficção de Pepetela não se limita a reproduzir os acontecimentos que o discurso da História registou como factos, mas intenta também descircunstacializar os símbolos através dos quais se construiu, na literatura, uma estrutura icónica desses eventos, uma imagem através da qual um acontecimento fica registado na memória colectiva e funciona no imaginário cultura, de que a literatura constitui sempre uma vertente fundamental – sobretudo num país jovem. Porém, se tal acontece, vale dizer que, nesse diálogo existe um outro interlocutor, que é o próprio sistema literário angolano.
Herdeiro da tradição nacionalista (no sentido de construção de uma nação angolana), a obra de Pepetela transmite uma exigência que, num país em que ter esperança é resistir a todo o pessimismo, remete para a inadequação de se pensar o futuro enquanto a memória colectiva da história for impeditiva do passado.
A opção de Pepetela em adoptar um referencial histórico para a reconstituição do tecido narrativo da nação tem uma dupla eficácia: por um lado, faz implodir a narrativa fundacional da nação, feita de um nivelamento de olhar(es) e, por outro, criticar a privatização dos factos históricos para a construção de uma outra história oficial, essa de uma elite que chegou ao poder pela acção política gerenciada pelo pensamento utópico. Se Pepetela, o escritor está consciente disso, explicitando esta ideia em muitas entrevistas, os seus duplos, personagem em gestão de alter ego explicitam essa ideia:
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(…) continuo a defender que a luta pela independência era para criar uma sociedade mais justa e não para substituir uma elite (colonial) por outra. E aconteceu que uma classe dominante substituiu a outra classe dominante. O capitalismo selvagem que temos em Angola não leva a lado nenhum, tal como dantes não levava. (Pepetela, 2002, DNA 13).
Por seu turno, é Aníbal, o Sábio, quem afirma que se trate de uma “elite que nunca soube aliar-se às elites rurais tradicionais” e cujos agentes foram “intermediários da colonização, embora gritando contra ela” (Pepetela, 1992, p. 304-305).
A nação que, então, essa busca instituiu, sobretudo narrativamente (por via da narração ou da narrativização7), embora tivesse surgido de uma síntese elaborada a partir de um saber mais do que de um sentir, seguiu um modelo que respondeu a um fim nacionalista: a sua unicidade, de mais fácil controlo (leia-se Muana Puó). Para o que era necessário actualizar a imagem de uma nação sem conflito de qualquer ordem, simplesmente porque os elementos dela participantes não comportavam diversidades, antes participando todos de uma mesma natureza, que era a identificação com a causa libertária e a perfilhação à ideologia nacionalista de suporte marxista. Por isso Ele, contrariando as expectativas, dela e dele próprio, opta por regressar à montanha porque não se adaptava à perfeição do mundo conquistado aos Morcegos (Muana Puó); e o Comandante Sem Medo, interpretante de Ogum, o Prometeu africano, sucumbe na floresta do Mayombe, final anunciado pela voz da sua amarga consciência de que não tinha lugar numa Angola independente – e, acrescentava, em que o partido funcionaria como uma igreja…
A mim não me vejo [na Angola independente]. Talvez noutro país em luta... quem sabe se na cadeia? Não me vejo em Angola independente. O que não me impede de lutar por essa independência. (Pepetela, 1985, p. 138)
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Com o labor implosivo da actual produção angolana, a nação está a emergir como corpo fracturado, dilacerado por dissensos, crises e guerras, porém mostrando as suas várias vozes e margens e diferenças de que as suas diversas agências já não abdicam. Negros, brancos e mestiços (A Geração da Utopia); a urbe e o campo (Parábola do Cágado Velho); os assumidos neoliberais, antes marxistas, e os que se mantêm fiéis aos ideais de antanho (A Geração da Utopia e O Desejo de Kianda); os de origem bantu, pejorativamente referidos como “autóctones”, e os luso-descendentes, luso-falantes ou os inusitadamente auto-intitulados crioulos, da “corrente crioulista” (João Melo, Os Filhos da Pátria); os “camaradas” e os “manos” (Sousa Jamba, Patriotas); os que intentam o discurso da “reconciliação” (a operar como sinónimo de esquecimento) e os que, como Boaventura Cardoso (Maio, Mês de Maria) Adriano Botelho de Vasconcelos (Tábua), e E. Benavena (Os Limites da Luz), intentam inscrever o medo no mapa do relato de nação ... Esses diferentes sujeitos e agências buscam legitimar seus “locais de cultura” na instituição literária que, cumulativamente, vem reinterpretando o corpus consagrado sob a punção – e a pungência – de segmentos e diferenças de vária ordem, tanto substanciais quanto agenciais, agora retirados dos arquivos do silêncio. Esse dissenso actancial e material e essa dissonância são rasurados tanto no discurso literário quanto no oficial (político, ideológico e cultural), através da simbólica expressão “de Cabinda Cunene, um só povo uma só nação”, que, para além da sua ilusão de performatividade discursiva, dá a dimensão dessa visão (ainda) “higiénica” de nação.
Por isso, a questão enunciada na epígrafe, pela voz de Antonio Cornejo Polar, que parte de uma reflexão sobre a literatura peruana, pode aplicar-se ao sistema literário angolano, que, no contexto da heterogeneidade acima considerada, funciona também como “totalidade contraditória”. No entanto, se o crítico peruano aconselha que “unidade e coerência” não obliterem “contraste e ruptura” que o sistema manifeste, em nome de um monolítico sentido nacional, também a nação não deve submeter-se à lógica de um qualquer “desmembrado pluralismo étnico” (Polar, 2000, p. 292). Assim, assiste-se hoje, na contramão daquele sentido nacional, a uma busca do (re)conhecimento da pluralidade de uma entidade heteróclita mas total, marcada pela contradição interna, ao mesmo tempo em que se reafirma o lugar do literário para o conhecimento do país. A propósito de Parábola do Cágado Velho, disse Agualusa:
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Nesta aldeia [a Munda], que não é geograficamente localizada, acumulam-se referências culturais, topográficas, toponímicas, comuns a todo o país. As personagens, por exemplo, respondem por nomes de diferentes etnias ovimbundu, mbundu, tchoquê8, etc., e recordam mitos que tanto podem ser do Norte como do Sul. Esta aldeia, evidentemente, é Angola. (Agualusa, 1996)
Note-se ainda que a heterogeneidade da literatura angolana não é apenas de sujeitos históricos etnossocial e ideologicamente em dissenso, diferentemente do que antes acontecia, como também em termos de género e de mundividência: por exemplo, ao lado de um João Maimona, de origem rural, um dos maiores representantes da contemporânea poesia angolana, enfileiram tanto Fernando Kafukeno que, em similitude macro-étnica com Maimona, com ele opera em dissenso social, enquanto João Melo e Paula Tavares, em convergência étnica, têm uma origem social diversa, como o comprova o substrato cultural das suas poéticas – e isso para só referir entidades metonímicas de uma mesma contemporaneidade etária e geracional. Convém ainda referir que a diversidade dessa totalidade não reside no que à superfície se mostra – o dissenso social em si ou a semelhança étnica – mas no que resulta: isto é, e recorro de novo a Polar:
[A] Construção de vários sujeitos social e etnicamente dissímiles e confrontados, de racionalidades e imaginários distintos e inclusive incompatíveis, de linguagens várias e díspares em sua mesma base material. (POLAR, 2000, p. 296).
Pode dizer-se, por isso, que a literatura angolana contemporânea traz implícita uma substância de origem múltipla, originária de espaços socioculturais diversos: disso são exemplos a galeria dos guerrilheiros do Mayombe e das chanas do Leste e a estirpe diversa dos nacionalistas, assim como a origem de “simples” pensadores – os “heróis-ideólogos” (Bakhtine) – que se disseminam pela galeria de sujeitos actanciais, como na obra de Pepetela (por exemplo, Lutamos, Sem Medo, Aníbal, Mukindo, Honório, Ulume), agências históricas, como a mulher na obra de Paula Tavares, ou político-ideológicas, como na obra de Boaventura Cardoso ou E. Bonavena que “elegem” o medo e a dor como substância da sua poética, ou escritores que fazem da matéria agorística (o que está a acontecer agora) a base para a reflexão sobre a realidade do pós-guerra, quer através de uma escrita satírica, como em João Melo, ou como em João Tala, através de uma escrita metafísica e introspectiva.
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Tal como Manuel Rui em O Manequim e o Piano (2005), em que dois amigos, Alfredo e Vander, tentam reagenciar suas vidas depois de desmobilizados e de regresso à sua martirizada ex-Nova Lisboa, também João Tala é um ficcionista que vem textualizando a realidade do pós-guerra. Como já disse em outro lugar9, em Os Dias e os Tumultos, uma colectânea de dez contos muito irregulares no modelo da sua urdidura diegética, com a qual o autor ganhou a primeira edição (2004) do Prémio de Ficção UEA, João Tala dá o mote da sua escritura:Recomeçavam os tumultos logo após o pleito eleitoral. Iam tão longe os acontecimentos, espalhando-se por cidades, vilas e quimbos. Os nossos caminhos estavam perdidos e cada um de nós era apenas um elemento num cerco. (Tala, 2004, p. 13).
Se acima se disse que Pepetela se erige aqui a instância de fundamentação reflexiva, tal se deve, apenas, ao facto de ser no equilíbrio entre a heterogeneidade actancial que resulta da observação não apenas empírica, mas fundamentada no saber científico, a diversidade temática, e a unidade, que a operação ideológica prescreve, que se situa a escrita da ficção de factualidade histórica pepeteliana (e nesse sentido os dois romances “policiais” e essoutro, “bastardo” em termos genológicos, que é Predadores, não deixam de ser romances históricos). A preocupação de Pepetela é, neste sentido, patriótica – não obstante a temeridade de que se reveste, hoje, essa ideia e esse sentimento: patriótica, por articular esses diversos espaços, decorrentes de segmentos diferentes e diversos, num só lugar discursivo que se pretende total, embora heteróclito. Por isso, podemos afirmar – de novo com José Saramago – que “o patriotismo é uma noção passada, desvalorizada, mas há ocasiões em que a palavra volta quase ao estado puro, sem todos os aspectos suspeitos e mesmo sujos que a contaminam frequentemente” (Gaudemar, 1998, p. 43).
Ao questionar as próprias bases das certezas e prescrições da sua própria escrita e da tradição literária, a escrita daí resultante – que, também por analogia com a reflexão sobre a “cultura pós-moderna”, chamei pós-colonial –, Pepetela não apenas desafia os modelos do centro e as categorias a eles associados (ordem, homogeneidade, exclusividade, totalização), como também opera um “movimento no sentido de repensar as margens e as fronteiras” e “um afastamento em relação à centralização juntamente com seus conceitos associados de origem, unidade (...) e monumentalidade” (Hutcheon, 1991, p. 85).
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Na ficção auto-reflexiva em que o histórico se totaliza como âncora na trama romanesca, o periférico não se move para o centro sob pena de, tornando-se dominante, deixar de funcionar como propulsor da diferença. É o centro que é deposto pela própria história das margens que vão inundando o universo com as suas estórias e individualidades históricas, incluindo as suas “falas de estórias”, num pseudotodo em que o fluxo particularizante abre as malhas da superfície e o transforma em corpo plural. Que se pretende, apesar de tudo, coeso. Mas isto é outra utopia...
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Coimbra, 22 de Junho de 2007
REFFERÊNCIAS
AGUALUSA, José Eduardo, “Parábola do Cágado Velho, de Pepetela. Uma guerra demasiado longa”. Público (Lisboa), 19 de Outubro de 1996.
HUTCHEON, Linda, Póetica do pós-modernismo – História, Teoria, Ficção, Rio de Janeiro: Imago Editora, 1991.
LARA Filho, Ernesto, O Canto de Martrindinde, Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1988.
MATA, Inocência, “Under the Sign of a Propsective Nostalgia: Agostinho Neto and Postcolonial Poetry”. Research in African Literatures. Indiana University Press/Ohio State University. Vol 18–Number 1–Spring 2007. p. 54-67. Incluído em Inocência Mata, Laços de Memória & Outros Ensaios sobre Literatura Angolana, Luanda: UEA, 2006.
MATA, Inocência, Laços de Memória & Outros Ensaios sobre Literatura Angolana, Luanda: UEA, 2006.
PEPETELA, Mayombe (1980), Luanda: União dos Escritores Angolanos, 3ª edição, 1985.
PEPETELA, A Geração da Utopia, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1992.
PEPETELA, “A escrita é a minha utopia”. Entrevista a Maria Velho da Costa, Diário de Notícias (Lisboa), 9 de Agosto de 1992.
POLAR, Antonio Cornejo, O Condor Voa: Literatura e Cultura na América Latina. Organização de Mario Valdés. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2000.
SANTOS, Aires de Almeida, Meu Amor da Rua Onze, Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1987.
SARAMAGO, José, “O tempo e a História”. JL – Jornal de Letras, Artes & Ideias, 27 de Janeiro de 1999.
SARAMAGO, José. Entrevista a Antoine de Gaudemar: “Saramago concede um prémio ao Nobel”. Camões – Revista de Letras e Culturas Lusófonas, n.º 3, Outubro/Dezembro de 1998 (p. 42-44).
TALA, João, Os Dias e os Tumultos, Luanda: UEA, 2004.
VASCONCELOS, Adriano Botelho (de), Olímias, Luanda: UEA, 2005.
VASCONCELOS, Adriano Botelho (de), Luanary, Luanda: UEA, 2007.
VIEIRA, Luandino, A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, Lisboa: Edições 70, 1974.
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WHITE, Hayden,“The value of narrativity in the representation of reality”. The Context of the Form. Narrative Discourse and Historical Representation, Baltimore/London: The Johns Hopkins University Press, 1992.
1Este texto resulta da sessão sobre literatura angolana no Colóquio-Curso Internacional em Literatura Angolana integrado no I CICLO Colóquios-Curso Internacionais em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa (Centro de Estudos Sociais – UC, Coimbra, 22 -23 de Junho de 2007). Publicado em: Laura Cavalcante Padilha e Margarida Calafate Ribeiro (Org.), Lendo Angola. Porto: Edições Afrontamento, 2008.
2José Saramago afirma que “toda a ficção literária (e, em sentido mais lato, toda a obra de arte), não só é histórica, como não poderia deixar de ser.” “Tempo e história”. JL – Jornal de Letras, Artes & Ideias.
3Ver: Inocência Mata: “A imagem da terra na literatura angolana: uma viagem ao rizoma da nação angolana”. Literatura Angolana: Silêncios e Falas de uma Voz Inquieta,Luanda/Lisboa: Kilombelombe/Mar Além, 2001.
4Inocência Mata, “Under the Sign of a Propsective Nostalgia: Agostinho Neto and Postcolonial Poetry”. Research in African Literatures. Indiana University Press/Ohio State Univrsity. Vol 18 – Number 1 – Spring 2007. p. 54-67. Incluído em Inocência Mata, Laços de Memória & Outros Ensaios sobre Literatura Angolana, Luanda: UEA, 2006.
5Quimbanguleiros eram estivadores das construções dos grandes edifícios do tempo colonial. Eram operários não qualificados que misturavam o cimento à areia e transportavam a argamassa, os tijolos e outros materiais pelos andares acima – daí a kimbangula (carregar às costas). Ao lado de cada edifício e construção, as mulheres dos bairros pobres chegavam instalavam as suas cozinhas, panelões e carvão, para vender funge com peixe de óleo palma, por um preço muito módico, à altura do bolso do kimbanguleiro – daí a expressão "com blindagens de óleo palma/no eco encardido das nádegas". Inocência Mata, Laços de Memória & Outros Ensaios sobre Literatura Angolana, op. cit. (p. 106-107).
6Talatona: região de Luanda onde está projectada uma cidadela com todas as infra-estruturas de uma urbe moderna.
7Segundo Hayden White, existem duas estratégias para a actualização da escrita da história: a narrativização em que o romancista adopta uma perspectiva para olhar o mundo e, através dela, o relata, e a narração em que o romancista busca fazer o mundo falar por si próprio através de uma história; . Dessa ambivalente condição discursiva pode resultar uma fusão da consciência mítica com a histórica, embora os processos de urdidura tropológica que as estimula possam ser diversos. (Ver: Hayden White,“The value of narrativity in the representation of reality”. The Context of the Form. Narrative Discourse and Historical Representatio, Baltimore/London, The Johns Hopkins University Press, 1992).
8Tchokué que, segundo o alfabeto africano de referência, seria cokwe, como se escreve em Angola.
9Inocência Mata, “O valor de um prémio”. Semanário Angolense (Luanda), nº 94, 1-8 de Janeiro de 2005.
Inocência Mata
Mestrado em Literaturas Brasileira e Africanas de Língua Portuguesa/FLUL, 1989
Doutorado em Letras pela Universidade de Lisboa, 2002
Pós-Doutorado em UC Berkeley/University of California, Berkeley
Pós-Doutorado em LSE/London School of Economis
Coordenadora do Programa ERASMUS do DLCP
Directora do Centro de Exames (PLE/PL2)
Programa de Pós-Graduação em Língua e Cultura Portuguesa
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