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ABEL NUM MUNDO DE CAIM: A LÓGICA EXTREMA DA PULSÃO DE MORTE NA “PATOLOGIA SOCIAL”
Mário Bruno
Universidade do Estado do Rio de Janeiro/ UERJ
Universidade Federal Fluminense/UFF
mariobrunouerj@yahoo.com.br
(...) para que não acudam cedo de mais Eva doméstica e os Cains, para que tudo se passe entre o só e o sozinho, como convém a tanta grandeza.
JOSÉ SARAMAGO
Abel Botelho, para mim, é escritor de saber, de vigoroso talento e de notável individualidade.
BULHÃO PATO
Abel Botelho tem três qualidades eminentes para ser um bom romancista, como é, as quais são: observação bem pronunciada e treinada; fidelidade na minúcia e na conglobação; bela orientação na síntese.
Como amigo, é estimabilíssimo, como romancista, de primeira grandeza, como caráter, diamante de primeira água.
GOMES LEAL
Abel num mundo de Caim: a lógica extrema da pulsão de morte na “Patologia social”: Este artigo estuda o problema da pulsão de morte na “Patologia Social” de Abel Botelho.
Palavras-chave: Patologia. Pulsão de morte. Trágico. Épico.
Abel in the world of Cain: the extreme logic of the death drive in “Social pathology”: This article studies the problem of the death drive in “Social pathology”, by Abel Botelho.
Keywords: pathology; death drive; tragic; epic
A atmosfera de uma época terminal perpassa todo o universo de Abel Botelho. Suas obras trazem uma problematização da vida no seu processo de declínio. Sendo assim, a imagem Moral da morte como um ataque à vida cede lugar à imagem entrópica de uma vida patológica.
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O que temos na obra de Botelho é, sobretudo, a captação dos efeitos negativos do tempo, entre eles: usura, degradação, desgaste, destruição, perda ou, simplesmente, esquecimento. Por esses aspectos, Massaud Moisés considerou a “Patologia social” como uma “fotografia do processo de degenerescência de uma sociedade” (MOISÉS, 1962, p.24). Em outras palavras, a obra de Botelho apresenta: “a derrocada da família, da aristocracia, da política, portanto, da moral individual e coletiva, e a consequente corrupção das consciências, em todos os quadrantes da sociedade” (MOISÉS, 1962, p.24).
Todo esse declínio compõe um tempo cruel que se configura numa violência muito especial (sob certos aspectos, é o mal radical). Botelho assimila, em cores fortes, o quadro natural da sociedade em que viveu. Sua pintura singular de Portugal faz merecer resistir à implacável ação seletiva do tempo. Seu Portugal, da crise do Ultimatum à implantação da República, é um mundo de Caim. E dele, Abel Botelho faz o diagnóstico das morbosidades dessa época, pois como diz Deleuze: “os autores naturalistas merecem a designação nietzscheana de médicos da civilização” (DELEUZE, 1985, p.159).
1. No elemento puro da Morte, o trágico e o épico
Os personagens de Abel Botelho são marcados por dois aspectos diferentes da morte (sobre a duplicidade da morte, ver BLANCHOT, 1987, p.118). Há para eles uma morte que podemos enfrentar numa luta, ou juntar-se a ela “sem remédio” num presente que tudo faz passar, cuja anulação representa um retorno à matéria inanimada, numa espécie de entropia. Mas há uma outra estranha morte que atira os personagens para fora de seu poder de começar e acabar, tornando-os desligados de si mesmos como se vivessem num desaparecimento pessoal interminável.
É na relação indecidível entre essas duas mortes que encontramos as denominadas diáteses botelhianas.
Em torno dessas diáteses, giram as razões do desfibramento de D. Sebastião, cujo título de nobreza dá nome à obra O barão de Lavos. D. Sebastião é um aristocrata decadente que se apaixona por um oportunista, o jovem Eugênio. Tomado por seu desejo, ou melhor, por sua ideia fixa, o barão passa a sustentar Eugênio e o introduz no seu meio social e familiar. Sem nada notar, D. Sebastião acaba por favorecer o adultério de sua esposa com seu o próprio amante.
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O barão de Lavos é um livro sobre a ruína de um país. O nome de D. Sebastião já nos remete ao trágico rei que morreu sem deixar herdeiros. Não por acaso, o barão é estéril.
A decadência do personagem D. Sebastião é, do ponto de vista moral e físico, a decadência de Portugal. E ironicamente o amante do barão traz em seu nome a referência à eugenia ou purificação da raça (sobre a eugenia em O barão de Lavos, ver ESCOBAR, 2008, p.19-24).
Em tudo isso, observamos uma certa morbosidade ou um destino entrópico, bem ao sabor do fin-de-siècle: a ruína de uma nação, a decadência de uma classe, a dissolução da família, a degeneração física e moral do barão.
Todavia, há uma estranha morte que se disfarça sob todas as ideias fixas de D. Sebastião. Nele, ao se por a amar Eugênio, é a morte que transborda como se viesse de um fundo silencioso a cindi-lo, separando-o de si mesmo. Trata-se de uma fenda para além de todos os instintos e o que essa “fissura designa ou antes o que ela é, este vazio, é a Morte” (sobre a fissura, DELEUZE, 1982, p.336), a pulsão de morte.
A fissura de D. Sebastião é o que ressoa, através da gravura de Coryn Boel (sobre o “Rapto de Ganimedes” em O barão de Lavos, ver ESCOBAR, 2008, p. 61-9), em seu temperamento nervoso e sangüíneo. No começo, ela substitui os objetos aos quais ele renunciava, não por pudor ou remorso. As abstenções do barão vinham de complicados arabescos ligados à fantasmática gravura, nela se passa o que se passa em Portugal e até mesmo na humanidade: a tirania dos desejos cegos e a passividade dos que obedecem (BOTELHO, 1982b, p.55-6). Na gravura está o rumor dos instintos que remetem a uma fissura secreta (pulsão de morte); ela é o grande Fantasma que se repete em todos os temas e situações do livro. O objeto fantasmagórico, na sucessão dos planos visíveis da obra, é a testemunha inexorável que simboliza o destino trágico do barão. Corresponde à velha mãe do assassinado que assiste em Teresa Raquin, obra de Émile Zola, muda e paralisada a decomposição dos amantes (sobre Zola, ver DELEUZE, 1982, p. 340).
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Porém, no romance, a gravura de Coryn Boel traz também o essencial da epopeia, gênero no qual os deuses, ativamente, desempenham, a sua maneira, num outro plano, a aventura dos homens.
Sendo assim, a tragédia reflete-se num epos. Se por um lado, a gravura é uma transcendência, um juiz, o papel símbolo de um deus trágico, e a aventura dos instintos humanos refletindo o logos representado pela fixidez do deus Júpiter; por outro lado, a divindade se torna devoradora, um mau cronos e temos, com isso, o caráter pagão da epopeia. O que ocorre é a oposição do destino épico ao destino trágico: o espaço aberto da epopeia contra o espaço fechado da tragédia. Em outras palavras, a gravura desempenha o papel trágico de testemunha e juiz que competiria a um deus; ela também opera a grande manobra, traçando o espaço aberto na escala de uma Nação e de uma Civilização.
A epopeia objetiva a personificação de uma coletividade. Tendo como fulcro um espaço, um evento, o épico pretende configurar um mundo total: os conquistadores e os conquistados.
A gravura de Coryn Boel, ideia fixa de D. Sebastião, é a representação épica da pulsão de morte. A Nação e a Civilização são avaliadas do ponto de vista das suas fissuras. Assim como Zola (ver Deleuze, 1982, p. 341), Abel Botelho restaura o épico. Seus romances vão até onde vai a fissura. Nesta obra botelhiana, os baixos instintos se reduplicam numa pulsão de morte que se reflete contra si mesma, na autodestruição do herói do romance (o barão). É o que Deleuze denomina de transmutação dos instintos no elemento puro da Morte: o “final épico da volta da morte contra si mesma” (DELEUZE, 1982, p.342). Em O barão de Lavos, essa transmutação se dá de forma ambígua através da figura de Eugênio – aquele que traz a eugênia e irá encerrar a árvore genealógica do barão.
Quem o livra de Alda?
Na sequência desse raciocínio, evocamos O livro de Alda, note-se que há uma simetria entre os dois primeiros romances que compõe a “Patologia social”.
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Ambos têm como denominador comum o encontro do personagem central com alguém que passa a obsedá-los. Daí decorrem movimentos descendentes e ânsias eróticas num torvelinho voraz. O livro de Alda é composto por uma série de cartas escritas pelo personagem Mário. No início do romance, sabemos que o autor das cartas, um rapaz de origem modesta, está prestes a se casar com Branca, uma jovem de outra extração social. Mas, ao acaso, num carnaval, ele conhece Alda, uma prostituta muito sedutora. Alda parece ser o duplo de Eugênio d’O barão de Lavos. Tal qual o rapaz protegido por D. Sebastião, Alda é formosa e possui no corpo “a sublime proporção” (BOTELHO, 1982c, p.31). Fora isso, ela é sustentada pela Marquesa de Águas Belas. Esta aristocrata paga à Alda para ter com a rapariga “relações místicas” (insinuação de lesbianismo) e para que sirva de modelo às suas esculturas (BOTELHO, 1982c, p.192). Tomados pela atração física, Mário e Alda tornam-se amantes. Entretanto, sem coragem para escolher entre as duas, ele permanece preso ao noivado com Branca:E vivia magnificamente bem assim, baldo à tristeza, alheio a cuidados, embalado ao concerto efêmero de duas funções manifestamente incompatíveis, entre dois pólos diametrais do amor (...). Um cinismo natural e espontâneo, uma diátese de depravação. (BOTELHO, 1982c, p.143).
Tentando enganar duas mulheres, Mário acaba sendo descoberto em suas pueris artimanhas. O resultado dessa indecisão é que Branca e Alda abandonam-no. Desesperado, ele caminha a passos largos para o desequilíbrio, culminando num suicídio frustrado.
Uma linha de inspiração aparentemente cristã se traça em O livro de Alda. De um lado, temos Branca, na sua quase transcendência, “o branco mundo distante de idealidade” (BOTELHO, 1982c, p.289). Ela é a guardiã que preserva a Ordem em nome de uma necessidade moral ou religiosa. Do outro lado, temos Alda, vinda do mundo sombrio da prostituição, “a feuda matéria ardendo” (BOTELHO, 1982c, p.289).
Não obstante, leiamos com o olhar mais atento o modo como Abel Botelho integra essa dualidade na construção do romance:
Era uma formosura toda feita de suavidade e de perdão, mimosa, suplicante... parecia como que pedir que a guardassem indemne a toda paixão sensual; e todavia se o seu amado o exigisse, deixar-se-ia talvez imolar mansamente. Receberia as cálidas imposições do amor numa impassibilidade de santa e oferecer-se-ia em holocausto com uma estática designação de mártir que mede bem o valor ao sacrifício. (BOTELHO, 1982c, p.104)
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É evidente que Branca apresenta um perfil romântico, ou quase bíblico. Porém há um outro sentido que o texto nos convida a buscar. Podemos perceber uma ambiguidade na descrição da personagem que simboliza o Bem (o Agnus Dei). Observem o que nos diz o narrador: “Durante muito tempo vivi na persuasão de que ela tinha os olhos claros – quando estes eram negros como dois lagos de treva” (BOTELHO, 1982c, p.104). A expressão “como dois lagos de treva” remete-nos ao pecado, ao sofrimento, à morte e ao Mal. Há uma aporética profundidade, talvez uma disparidade de princípio na descrição. Além disso, sob o manto de pureza, Branca é “uma tuberculosa insipiente, dizem os médicos... precisa de um inalterável sossego, dum conforto e repousos absolutos, pra lograr viver” (BOTELHO, 1982c, p.106). No quadro geral das patologias botelhianas, ela é a imagem da Morte.
No outro pólo, quanto aos olhos de Alda, declara o narrador-personagem:
Pois esses belos olhos de esmalte eram meu desespero e o meu encanto (...). Por detrás dessa translúcida pupila azul, como através dum cristal cianurado, a fragmenteira alma da minha amante entrincheirava-se-me... fazia negaças. (BOTELHO, 1982c, p.149).
Os olhos de Alda também são chamados a fornecer não uma solução, mas um enigma.
Fora isso, a atenção concedida à Alda faz com que a narrativa apresente-a mais como vítima do que como algoz. Vejamos as origens da personagem: “esse pobre anjinho, assim de repelão atirado ao mundo, grafo originalmente de duas faltas” (BOTELHO, 1982c, p.156) foi criado na promiscuidade da rua, tendo como tutor um tio libertino e sem escrúpulos. Aos doze anos “colheu a certeza das infames tenções do velho [o tio] sobre ela” (BOTELHO, 1982c, p.159), não hesitou e fugiu à noite sorrateira e descalça.
Inevitavelmente nos sensibiliza a história de uma menina sozinha, um anjo que se torna decaído num mundo de adultos perversos.
A questão botelhiana é: a escolha está para além da alternância dos termos. Não se trata de escolher entre a Carne, Alda, e a transcendência, Branca. Não é escolha nem do Bem nem do Mal. Como nos diz Deleuze (1983, p.146), quando tomo consciência da escolha, colocando os termos numa balança, é porque já não há mais “escolhas que não possa fazer”.
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Ao se sentir sem saída, Mário caminha para degenerescência entrópica. Os acontecimentos se avolumam e ele se conduz de baixeza em baixeza. Numa espécie de fim de linha, põe-se em direção à morte pessoal. O negativo do personagem Mário se dá a partir da sua falta de vontade, ele quer tudo pela metade, não sendo capaz de encontrar um todo espiritual aberto para suas escolhas.
O livro de Alda aprofunda uma ideia que já se encontrava em O barão de Lavos. Ou seja, para além das razões atávicas e dos determinismos orgânicos, há uma fissura, uma diátese, uma pulsão de morte silenciosa que pode precipitar a degenerescência dos personagens, mas que não se confunde com a decrepitude. Essa fissura formiga nas bordas da doença (o caso do barão de Lavos) ou de um corpo sadio (o caso de Mário), mas não é uma entidade psicofisiológica, ela tem o seu próprio fio condutor e remete a uma situação-pulsional-limite: é preciso escolher a escolha (DELEUZE, 1985, p.146). A pulsão de morte atravessa Mário como um devir. Escolher o devir, afirmar o acaso seria a “escolha pela potência de recomeçar a cada instante” (DELEUZE, 1985, p.147). Portanto, o livro conta a história de um personagem que se degenera e quase morre dividido entre falsas escolhas. Sem que encontre o que Deleuze denomina de “a escolha da escolha” (DELEUZE, 1985, p.146), a escolha de um modo de afirmar a existência.
O erro de Eva
Se O barão de Lavos e O livro de Alda constituem as errâncias de Caim, ou de um mundo de homens marcados pela degradação; Fatal dilema traça a errância de Eva. Reparemos nas palavras da personagem Isabel numa conversa com a peçonhenta Condessa de Malpartida:
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– Seguramente, Eva, com seu pretendido erro, foi genial. Foi a grande precursora da vida da alma! Atacando corajosa a árvore do Mal, tornou-nos a vida aceitável... fez essa prodigiosa sementeira do Belo e do Bom sobre a terra, que nos enflora a existência e nos faz pensar no Infinito (BOTELHO, 1983a, p.76).
Fica nítido que Isabel não está apenas referindo-se à temperança do Éden, ela está falando de si própria. Foi preciso um pecado para que a vida se tornasse aceitável. Ela é a própria Eva. O que se configura é a ideia de uma mulher originária, mais adiantada que o meio, fora e dentro do mundo dos homens, sendo ora a sua vítima, ora a sua beneficiária.
Isabel, a linda filha de uma chilena sensual, casou-se aos quinze anos com Eusébio Penalva que “orçava pelos 50” (BOTELHO, 1983a, p.48). O casamento não lhe foi imposto, porém chegou à sua vida como um fatum.
Isabel tinha pelo marido um sentimento de dever e gratidão, mas desprezava-o suficientemente para que ele ficasse muito abaixo do “âmbito de suas preocupações, e fora do alcance de visão do seu desejo”. (BOTELHO, 1983a, p.51).
Não há propriamente um determinismo inexorável na traição de Isabel, ela apaixona-se por Heitor, um amigo da família, e torna-se sua amante.
Isabel não se sente culpada por seguir os impulsos do coração. Vejamos suas palavras: “Procurei singelamente, à minha alma e aos meus nervos, a posição de atividade a que tinham direito. É no que se resume a vida. Creio ser isto um ato puramente natural, e perfeitamente legítimo, portanto” (BOTELHO, 1983a, p.63). Ela tenta, a sua maneira, reinstaurar uma forma legítima de amor.
Não obstante, Fatal dilema tem uma prefiguração trágica. O romance já inicia com a morte de Penalva e tudo se direciona para morte da filha de Isabel, Suzana.
Suzana apaixona-se por Heitor sem conhecer a fatal verdade, eis o desfecho trágico. Que verdade é essa? O romance insinua sem dizer claramente: “Suzana era o adorável documento público da impotência de Euzébio” (BOTELHO, 1983a, p.85). Pela sua impotência, Euzébio não é pai de Suzana? Ela estaria apaixonada, não apenas pelo amante da mãe, seria seu amor incestuoso?
Abel Botelho vai até onde vai a diátese de seus personagens. A diátese de Heitor é sua passividade e seu hedonismo sem escrúpulos, conjugados às suas insalubres ambições. Suzana, no seu sonambulismo, caminha para a “passiva libertação” (BOTELHO, 1983a, p.93) do mundo. Ela é atravessada por um fundo silencioso de morte: uma morta-viva no seu gongórico quarto afastado dos demais quartos da casa em que vive (BOTELHO, 1983a, p.88-9). A diátese de Suzana é sua histeria de conversão expressa, no final do romance, numa paralisia não orgânica. Curiosamente, o médico da família cuida da personagem através de hipnose. (BOTELHO, 1983a, p.437). O que parece ser uma referência aos tratamentos de Charcot e Freud naquela época.
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Em Fatal dilema, não há, como em O barão de Lavos, uma história duplicada por um epos. A pulsão de morte, silenciosa, atravessa a narrativa como um fatum e tudo ocorre em dois níveis: o do amor e o da morte. O drama tácito da família acaba por se refletir no quarto isolado de Suzana, no seu mutismo. Essa personagem retoma a intensidade trágica representada pela velha Madame Raquin – testemunha de expressiva fixidez (sobre Thérèse Raquin, ver DELEUZE, 1982, p.340-1) em Teresa Raquin, de Zola.
Porque o termo fatal no título do romance? A concepção de fatalidade que podemos denominar de popular – a imputação de causas fatalísticas a uma série de coincidências inexplicáveis, mais especificamente desgraças ou acasos infelizes – não explica o tom trágico devidamente situado no romance. Vejamos as palavras do personagem Albaninho, que resume uma questão fundamental nesta obra botelhiana:
É da idade, não há que ver... Oh, meu filho, esta coisa é fatal e biologicamente explica-se... Na mocidade, bem vês, a progressiva expansão da nossa entidade moral e material é por essência absorvente, tem o despotismo da sua condição orgânica. É quando sobre o ambiente o nosso individualismo galga, sobrepuja, impõe-se. A lei do nosso desenvolvimento. (...) Começa a dissociação da nossa alma, e na íntima evidência que vamos de novo integrarmos com a Natureza, esse comovido interesse objetivo é o primeiro passo para o regresso à sagrada pacificação das coisas... (BOTELHO, 1983a, p.19-20).
Fatal dilema é um livro sobre o que o que se tenta iludir ou viciar num “jogo de par ou ímpar” (LACAN, 1998, p.44). Sobre o que Jacques Lacan nomeia de a “cifra do nosso destino” ou a nossa Tyché: “essa presença da morte que faz da vida humana essa sursis obtida de manhã em manhã (...)” (LACAN, 1998, p.44).
Iokanaam e Salomé
O prólogo (BOTELHO, 1982a, p.5) de Amanhã nos diz que a obra irá tratar do mais “complexo dos problemas sociais”, pois nela “bacilam e fermentam” os “tragicamente desoladores aspectos da Miséria”. As palavras “tragicamente” e “Miséria” são aqui inseparáveis da ironia botelhiana que está presente em todos os seus romances, porque neles há sempre um sem-fundo, um fundo indiferenciado, que nos remete ao pensamento trágico, e como nos diz Deleuze (1982, p.142), ao “tom trágico com o qual a ironia mantém as mais ambivalentes relações”.
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O fundo indiferenciado é a própria pulsão de morte, ou a fissura cerebral da personagem de Amanhã, a “hipertonia cerebral” (BOTELHO, 1982a, p.337) de Mateus ou sua diátese.
Mateus é um dúbio herói prometéico, investido da missão histórica de libertar a classe operária portuguesa. Aparentemente, ele renuncia a tudo que o possa afetar, seu único objeto é a política, mas a ideia de Morte está sob a sua ideia fixa.
Não por acaso, há uma longínqua semelhança entre Mateus e Lantier de A besta humana. O personagem de Zola havia renunciado a tudo que o afetava, seu único objeto era a máquina a vapor (a locomotiva), sua ideia fixa; até o seu encontro com Severine. O mesmo ascetismo ocorre com Mateus; até o seu fatal encontro com Adriana. Em ambos, a fissura, ou a diátese, introduz a Morte. A pulsão de morte se disfarça sob todos os apetites. A fissura conduz tanto Lantier quanto Mateus ao suicídio.
O texto do romance delineia uma sátira contundente, uma análise biliosa da aristocracia, da burguesia, da Igreja, dos operários e do sectarismo político em Portugal.
Mateus, tomado pelo seu individualismo “evangelizador” (BOTELHO, 1982a, p.81), quer junto com emissários da Internacional Socialista realizar uma revolução operária em Portugal.
Criticamente, temos no romance o que Kant denominou de o sublime do fanatismo (Schwärmerei) naquele que profetiza o amanhã. Nas palavras de Slavoj Žižek: “(...) o fanatismo [Schwärmerei] é a ilusão louca e visionária de que podemos ver ou apreender imediatamente o que está além dos limites da sensibilidade” (ŽIŽEK, 1992, p.128).
Tudo nos leva a crer que Mateus iria até o fim em seus propósitos. Entretanto, o jovem se apaixona por Adriana, a filha dos donos da tecelagem na qual ele trabalha. Esse amor trava a “limpidez rasante da trajetória” (BOTELHO, 1982a, p.410) do herói.
O romance termina com a revolta debelada e Adriana conseguindo afastar Mateus do movimento armado que pretendia destituir o poder da elite patronal portuguesa.
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Há o leitor ainda que deter a examinar o desfecho do romance nas suas implicações com a estética finissecular. Simbolicamente, a morte de Mateus é uma alusão irônica a um dos emblemas do decadentismo. O êxito de Adriana significou politicamente a cabeça de Mateus. As últimas páginas de Amanhã ressoam com o Velho Testamento e com a cena final da obra de Oscar Wilde, Salomé (1892). Adriana, assim como a filha de Herodias em relação a Iokanaan, João Batista (WILDE, 2003, p.80), conjugando desejo e poder, encerra o percurso apostolar ou messiânico de Mateus.
O destino negativo da pulsão
Em Próspero Fortuna, a pulsão de morte faz uma aparição mais sutil na ontogênese das personagens; ela está presente no que se desfaz e no que se precipita ao se desfazer. Com efeito, é o tempo naturalista. O mesmo mau cronos que rege o mundo pulsional de outras obras botelhianas.
Próspero Fortuna é um advogado medíocre que sai de Régua, ultrapassando sua medida em Lisboa, motivado por um oportunismo ambicioso. Regido por sua autolatria e apoiado pelo infiel amigo Matias Picão, entrega-se às mazelas da cidade e da política. A corrupção é mostrada em vários níveis. Chegando a Lisboa, o “herói” vai trabalhar no “infecto jornal” (BOTELHO, 1983b, p.110) Noticiário. Próspero nada escreve, em virtude da “esterilidade irritante do seu cérebro” (BOTELHO, 1983b, p.124), apenas se apropria dos escritos do intelectual Aires Pinto, modificando-os ao bel prazer. O romance mostra as relações entre política e jornalismo como algo que se passa num “antro dantesco” (BOTELHO, 1983b, p.110) no qual o critério é “atamancar as botas do poder” (BOTELHO, 1983b, p.85).
Massaud Moisés tem razão ao dizer: “a política que se estampa no romance, a começar de seu protagonista principal, é marcada de alto sentido de ‘salve-se quem puder’” (MOISÉS, 1962, p.37). É uma análise do “assalto aos postos e as posições de mando” (MOISÉS, 1962, p.37).
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Próspero Fortuna é um romance sobre a decadência da política e das Instituições. Os sustentáculos da Nação e do Regímen apresentam-se entregues a uma grossa vida de corrupção.
O personagem principal do romance, chegando à capital, encontra a máquina política e administrativa do país funcionando num prostíbulo. Próspero tomado por fantasmas oníricos de poder (sua diátese) (BOTELHO, 1983b, p. 86) identifica-se com a falta de hombridade geral e com as transações econômicas que visivelmente debilitavam o país.
Em Próspero Fortuna, vemos nitidamente o que Deleuze denomina de lei ou destino negativo da pulsão (de morte): o qual “consiste em apossar-se com astúcia, mas violentamente, de tudo que puder num dado meio, e, se puder, passar de um meio para outro” (DELEUZE, 1985, p.163). É essa lei que leva Próspero às minúcias da “baixeza moral” (BOTELHO, 1983b, p.184), porém ela também está expressa nas ganâncias sem termo de Matias Picão e nas “ciganagens” sórdidas de um Furtado Dantas (BOTELHO, 1983b, p.216).
No romance Próspero Fortuna, as personagens mais marcantes não se confundem necessariamente com a decrepitude orgânica. Excetuando a figura do rei, elas são dotadas de vigor e saúde. As degenerescências não se explicam por um psicofisiologismo, mas por uma pulsão insaciável.
Existem, em Próspero Fortuna, dois mundos em que as pulsões esquadrinham e esgotam o meio até a degradação. São eles: o mundo monárquico em ruína e o mundo maleável e ladino do liberalismo.
A Abel Botelho devemos uma descrição bem acentuada da entropia melancólica do “aparato teatral do poder monárquico” (BOTELHO, 1983b, p.174).
A monarquia havia se tornado, nos fins do século XIX, uma espécie de “arremedo fúnebre do passado” (BOTELHO, 1983b, p.170). Nela, a ruína orgânica do monarca coincidia com a “monotonia de freirática” (BOTELHO, 1983b, p.171) de um cenário totalmente debilitado, composto por “apáticos boçais e embonecados guardas” (BOTELHO, 1983b, p.172) que já antecipavam na porta do palácio a evidência dolorosa e precária do fim de uma época.
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Temos com isso “a figura tábida do rei, amarfanhado, sumido em obediente holocausto pra ali trazido a uma extenuante exibição com o que já não podia” (BOTELHO, 1983b, p.176). Essa imagem parece entrar em circuito com o que nos diz Žižek, relendo o sublime hegeliano enquanto encarnação do Nada: “(...) o Estado como organização racional da vida social é o corpo imbecil do monarca” (ŽIŽEK, 1992, p.131). Nitidamente, a descrição do corpo do rei é também a definição da própria monarquia expirando: “a desmantelada carcoma do esqueleto – como sobre uma velha roca de engonços” (BOTELHO, 1983b, p.176).
Por outro lado, temos o liberalismo expresso num diagnóstico da sociedade portuguesa lisbonense. Lisboa é vista como um grande lupanar composto por seus deputados, ministros, repórteres, uma fauna de homens, todos querendo tirar proveito de uma nação enferma. A cidade de Lisboa, neste romance, é a expressão de um liberalismo corrupto que usa e devora tudo e todos. Isso fica muito claro no caso do vinhateiro Lourenço Nóbrega que chega a Lisboa como um arrogante dominador e acaba sem prestígio, sem proveito, sem valor e sem brio, numa “miseranda jornada de pedinte” (BOTELHO, 1983b, p.155).
REFFERÊNCIAS
BENOIT-DUPUIS, Monique. Contribuition à la bibliographie d’Abel Acácio de Almeida Botelho. Sillages, separata, 1977.
_____. “Vingt-trois discours, conférences et une chronique d’Abel Botelho”, in Le roman portugais contemporain. Actes du Colloque 24-25 octobre 1979. Paris: Fundation Calouste Gulbenkian, Centre Culturel Portugais, 1984.
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BICHAT, M. F. X. Recherches physiologique sur la vie et la mort. Paris: Fortin, Maison et CIA, s.d.
BLANCHOT, Maurice. L’espace littéraire. Paris: Gallimard, 1987.
BOTELHO, Abel. Amanhã. Porto: Lello e Irmão, 1982a.
______. Fatal dilema. Porto: Lello e Irmão, 1983a.
______. O barão de Lavos. Porto: Lello e Irmão, 1982b.
______. Obras completas. V. 1 e 2. Porto: Lello e Irmão, 1979.
______. O livro de Alda. Porto: Lello e Irmão, 1982c.
______. Próspero Fortuna. Porto: Lello e Irmão, 1983b.
BRUNO, Mário. Lacan e Deleuze: o trágico em duas faces do além do princípio do prazer. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.
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Mário Bruno
Doutor em Ciência da Literatura, UFRJ, 1996/ Teoria Psicanalítica, UFRJ, 2003.
Pós-Doutor em Filosofia, UFRJ, 2008.
Professor do professor do programa de pós-graduação de Literatura Portuguesa, UERJ, UFF
Coordenador do Mestrado em Literatura Portuguesa, UERJ.
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