Resenhas
UMA FESTA DE ANIVERSÁRIO NO PEITO DO LEITOR
FALCÃO, Adriana. Mania de Explicação. São Paulo: Salamandra, Moderna, 2001.
Cíntia Machado de Campos Almeida
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
Bolsista CNPq
cintiamachado@ufrj.br
Não que as crianças vejam o mundo com olhos demasiadamente simples. Na verdade, elas veem o mundo como ele é. Adulto é que tem “mania de complicação”.
Na contramão desta “cisma-de-gente-grande”, Adriana Falcão nos presenteou em 2001 com Mania de explicação, livro que marca não somente sua estréia na literatura infantil, como também o início de um percurso muito bem sucedido: a publicação teve duas indicações para o Prêmio Jabuti no ano de seu lançamento e recebeu da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil o Prêmio Ofélia Fontes — "O Melhor para a Criança", no mesmo ano.
Nascida no Rio de 1960, Adriana viveu muitos anos no Recife. Lá se formou em Arquitetura, profissão que nunca deixou de significar para ela apenas um título impresso num diploma. Desde que se deparou com sua verdadeira casa, a literatura, optou por substituir o traço pela letra e a ponta de sua pena não mais sossegou. Estreou em 1999 com o romance A Máquina (Rio de Janeiro: Objetiva), que foi levado aos palcos por João Falcão, seu marido, roteirista da TV Globo.
Talvez de seu coração nordestino venha a vocação para o humor. Também roteirista, Adriana deixou sua marca em vários episódios de séries produzidas pela mesma emissora de TV, como Comédias da Vida Privada e Brasil Legal. Atualmente, colabora com A Grande Família. Com Guel Arraes, adaptou para a Telinha O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, que posteriormente ganhou uma versão em longa-metragem.
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Rosa Amanda Strauz, ao compor a quarta capa de Mania de explicação, arriscou uma explicação para “estreia”: “é quando a gente pula de um trampolim bem alto e só descobre que sabia nadar quando chega à água”. Podemos dizer que Adriana gostou de correr o risco do primeiro salto e subiu correndo as escadas de volta ao mesmo trampolim: em 2002, publicou Luna Clara & Apolo Onze, seu primeiro romance juvenil. No encalço de ambas as obras, vieram outros títulos, dentre os quais citamos Pequeno dicionário de palavras ao vento (2003), Ps beijei (2004), Contos de escola (2005) e A arte de virar a página ( 2009)
Ilustrado por Mariana Massarani - numa feliz pareceria que, aliás, fez do encontro entre palavras e imagens uma verdadeira festa! - Mania de Explicação merece semelhante destaque pelas ilustrações e pelo projeto gráfico. Massarani nos oferece, em cor e contorno, uma poesia à parte, bem à altura da qualidade do texto verbal.
Sempre foi uma tendência da espécie autointitulada “sapiens” a necessidade de questionar o mundo. Adriana Falcão adota uma ótica que é simplificadora sem, no entanto, beirar o simplismo: a perspectiva infantil. Na canção Girassol, o grupo Cidade Negra canta que “para ser grande, deve-se ter um coração de menino”. Para além desse quesito, Adriana quis nos mostrar que juntamente com o coração, devem atuar os olhos, as tais “janelas” capazes de se abrirem para o que há dentro e que podem transformar o modo de se ver o que há fora.
A magia do enredo (ou a receita de seu sucesso) conflui para a “mania” de uma menina que busca desembaraçar os nós de complexidade de palavras um tanto difíceis de serem definidas por “gente grande”. O tempero do livro não está somente no fato dessa criança apreender a inteireza dos respectivos significados, mas, principalmente, em saber ressignificá-los.
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Sob as retinas dessa pequena filósofa, nos são oferecidas conclusões (inegáveis!) acerca desses termos que, embora sejam de pleno domínio dos usuários de Língua Portuguesa, sempre escapam das rédeas da síntese adulta. Afinal, alguém aí se atreveria a definir em poucas palavras o que é solidão? E o que é um beijo? E ao escutar que solidão é “uma ilha com saudade de barco” (ibidem) e que um beijo é “um carimbo [nada burocrático] que serve para mostrar que a gente gosta daquilo?” (ibidem), alguém discordaria? A cada definição lida, somos como que impelidos a pensar: “não é que é isso mesmo?!”.
Se ver o mundo é apenas uma questão de ponto de vista, Adriana Falcão nos propõe o olhar advindo de uma infância, acima de tudo, criativa. Nesse sentido, Mania de explicação nos faz remeter a uma sabedoria pueril que há muito deixa seu rastro na literatura infantil e juvenil brasileira, através de inúmeros caracteres trazidos à luz das páginas literárias por Ruth Rocha, Ana Maria Machado, Lygia Bojunga Nunes, Pedro Bandeira, dentre tantos outros.
Ao conceber uma personagem que “achava o mundo do lado de fora um pouquinho complicado”, e por isso mesmo, “tentava [simplificá-lo] dentro da sua cabeça” (FALCÃO, 2001), Adriana supera as expectativas daquele tipo de leitor que, aos moldes de Oscar Wilde, acredita que definir é também limitar. A necessidade de simplificação da menina-das-explicações não confere a seus exemplos um tom reducionista. Ao contrário. Justifica a criança seu método: pretendia explicar o mundo de um jeito que ele ficasse mais bonito. Eis aí o dardo no alvo lançado pela autora: o ato de simplificar, nessa obra, acarreta um efeito de amplificação significativa, uma vez que presenciamos, a cada definição, um despontamento poético.
O enredo nos é apresentando: uma protagonista assinalada pelo gosto “de inventar uma explicação para cada coisa” (ibidem). Daí surge uma explicação para a palavra “explicação”! E já que a menina tentava simplificar o mundo ao qual pertencia, chegamos ao momento oportuno para receber a explicação do termo “simplificar”. E assim, nós, leitores, vemos alçar o voo gostoso dessa rabiola textual que amarra uma palavra a outra: o termo “simplificar” puxa a explicação do termo “um meio”, que puxa a explicação do termo “um jeito”, que puxa a explicação do termo...
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E assim, conhecemos modos alternativos de se enxergar substantivos como “dedicatória”, “filósofo”, “solidão”, “lembrança”, “angústia”, “decepção”, “culpa”, “certeza”, dentre muitos mais. Vale destacar que essa “mania” consegue dar conta, inclusive, do abstrato “saudade”. Comum nas línguas de origem latina, tal substantivo exala tamanha densidade metafísica que chega a ser uma palavra sem equivalentes em alguns idiomas de origem germânica. E, no entanto, os leitores de Mania de explicação não se tornam carentes desta menção: “saudade é quando o momento tenta fugir da lembrança pra acontecer de novo e não consegue”.
Também nos damos conta que a gramática, ao invés de tantas nomenclaturas e exemplificações abstratas, poderia se ocupar de exemplos que tendessem a seus usos práticos. Não poderíamos ensinar a nossos alunos que uma “adversativa” é como “uma dificuldade que não é grande o suficiente”? No total, a obra conta com quarenta e seis palavras em busca de uma imagem poética.
É notável que os vocábulos que servem de motes para as explicações não tenham sido escolhidos arbitrariamente. Entre os mesmos percebemos uma comunicação incessante, já pela própria técnica de construção textual encadeada que poderíamos chamar de “palavra-puxa-palavra”, mas não somente por isso. A disposição vocabular é inteiramente lúdica: organiza-se de modo com que haja um jogo fonético, semântico e, principalmente, simbólico.
De todas as palavras de que se vale a arte desse texto, a única que permanece indefinível para a nossa “pequena-grande tradutora do inexplicável” é aquela em que se lê “amor”. Seja porque essas quatro letras, quando juntas, não possuam somente uma possibilidade de definição, ou seja, porque não se consiga definir o(s) significado(s) que delas emana(m). E quando as palavras se calam mediante a impossibilidade de uma definição verbal, que a atribuição de sentido venha por meio da ilustração: coube a uma onda encarnada, de prováveis efeitos avassaladores, trazer à tona a significância desse sentimento que, como a própria leitura pictórica sugere, nos inunda e encharca! Já que a menina não sabia como trazer o mesmo “amor” para o universo ad verbum, Adriana soube muito bem deixá-lo lá, onde o mesmo gosta de habitar: nos domínios do sentir! Enfim, não haveria melhor palavra para desfechar o livro e, assim, deixar aos leitores o convite (ou o desafio?) para também se arriscarem à aventura ou à mania de explicar.
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E já que “gostar é quando acontece uma festa de aniversário no seu peito” (FALCÃO, 2001), não será a lacuna deixada pela ausência de definição de “amor” que nos fará fechar o livro sem a sensação de que há um bolo com velas acesas dentro da gente!
Com Mania de explicação, Adriana Falcão escancarou as cortinas deste seu novo palco – o da produção literária para crianças – com a certeza de que seu espetáculo ficará por muito tempo em cartaz. Sorte nossa!
Cíntia Machado de Campos Almeida
Mestre em Letras Vernáculas (Literaturas africanas de língua portuguesa),
UFRJ, 2006
Professora da Secretaria Estadual de Educação/RJ
Doutoranda em Letras Vernáculas
(Literaturas africanas de língua portuguesa), UFRJ
Bolsista/CNPq
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