Resenhas
A MARCA DA MORTE E O ABANDONO
SARAMAGO. José. Caim. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
Isabelle Meira Christ
isabellemchrist@yahoo.com.br
“(...) o cataclismo já lá vai, já passou, e restam os efeitos, não tarda que de todos os lados velham subindo os Cains, se não é injusto afinal chamar-lhes assim. dar-lhes o nome de um infeliz homem de quem o senhor desviou a sua face (...)”.
“morrerás da tua natural morte na terra abandonada e as aves de rapina virão devorar-te a carne”
“Teria de chegar o dia em que alguém te colocaria perante a tua verdadeira face”
José Saramago
No romance Caim, José Saramago recria a história de Caim bíblico. O autor, “com atrevimento nunca antes visto”, conta-nos sobre a vida de um homem, um caim, e das viagens deste pelo mundo. A narrativa começa com adão e eva, pais do principal personagem, e desdobra-se nas aventuras desse homem marcado por mundos e tempos diferentes.
Todavia, a subversão, apenas, do texto bíblico não dá conta das críticas e acusações apresentadas na obra do Nobel de Literatura. É preciso destapar as palavras para ver o que está por baixo, ir além do óbvio, mesmo que isso vá de encontro às crenças enraizadas na nossa cultura.
Logo no primeiro capítulo já nos deparamos com, o que parece ser “a pedra angular” do livro, a crítica à servidão, ou melhor, à relação senhorial, que estaria contida nos textos religiosos judaico-cristãos, mas não somente neles. Saramago denuncia as práticas de assujeitamento utilizadas pelo poder. O senhor, numa das maneiras que o denominamos, deus, apercebe-se de que adão e eva (com minúsculas mesmo), criados por ele, não falavam e, num acesso de ira, enfia-lhes a língua garganta abaixo. É relevante observar que os outros animais, conforme relata o narrador, já possuíam “voz própria”, só adão e eva não tinham. Como se não bastasse a atitude violenta, o senhor quis comprovar que havia sido bem sucedido em sua correção e perguntou a adão e depois a eva como se chamavam. É evidente que as interrogações dirigidas ao primeiro homem e a sua mulher seriam desnecessárias, visto que deus já sabia quem eram, a não ser pelo fato que lhes desejasse a confissão. Ora, se não há língua, fala, não há confissão. Sem a também chamada “voz própria”, não haveria, como já expomos, jeito de responsabilizá-los; enfim, não haveria a culpa.
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Mas, se uma construção aparentemente sólida, estando sujeita à ação silenciosa do tempo, e quem sabe à de carunchos, pode vir a ruir sem se notar; as forças de mando também podem ser abaladas e o que tão firme parecia não mais ser sustentável. Assim acontece com as casas, com pressupostos teológicos, com as relações de poder. Nessas horas em que tudo vem abaixo, e perde-se o sentido de se manter de pé, há quem diga que o nascimento de um filho tem efeitos reanimadores, comenta o narrador. Assim acontece com adão e eva no romance, o casal tem filhos; assim acontece com deus, que envia seu filho ao mundo, pode-se inferir.O romance é cheio de críticas e ironias, Saramago não se intimida com o poder das religiões, também não poupa os leitores que se fazem de desentendidos e tentam limitar o escrito a um critério cronológico dos acontecimentos: “talvez seja aconselhável, para que o leitor não se veja confundido pela segunda vez com anacrônicos pesos e medidas, introduzir algum critério na cronologia dos acontecimentos” (SARAMAGO, 2009, p.13). E nos fala da idade absurda de cento e trinta anos para se fazer um filho, mas adão teria feito. Além disso, o primeiro homem teria vivido novecentos e trinta anos.
O narrador nos relata uma visita clandestina do senhor ao casal para “emendar uma imperfeição de fabrico”: a falta de umbigo. Com um breve movimento de rotação fez aparecer um umbigo neles. A partir daí, desse ponto de referência, iniciou-se uma nova era e tudo no homem passou a ser melhorável. Eis a catástrofe anunciada: “Anunciado por um trovão, o senhor fez-se presente”. No centro do universo, o umbigo do homem (o antropocentrismo). Como uma coisa não vem sem a outra, surge o senhor empunhando o cedro como um cacete e gritando ser ele o senhor. Adão e eva tinham comido do fruto proibido e ele queria saber quem desobedeceu às suas ordens. Novo interrogatório. Eva explica que a serpente a enganou. Segundo o senhor, isso não seria possível, por não haver serpente no paraíso. É interessante observar como eva se justifica diante de tal afirmação, o animal lhe teria tentado em um sonho. Um possível no impossível: o senhor dá ordens no seu mundo; contudo, nos sonho dela, o senhor não pode mandar. Diante da confissão, vieram as condenações.
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Ora, para deus, só faltava agora que colhessem do fruto da árvore da vida, e vivessem eternamente, dois deuses no universo (o senhor temia?). Para que isso não acontecesse, adão e eva foram expulsos do paraíso. Em guarda, à porta do jardim do éden, um querubim armado com arma de fogo (espada de fogo).Em Caim, adão e eva duvidam da benevolência do senhor, desobedecem às suas ordens. Afinal, poderia o senhor não querer que conhecessem o bem e o mal como ele conhece. Poderia o senhor estar lhes negando o conhecimento, a informação. De certo modo, eva teve um sonho, o sonho despertou sua vontade de saber. Eis a base do pecado dos servos do senhor: saber a sua condição. É por isso que, o proprietário da terra, também conhecido como deus, despeja adão e eva do paraíso. Fora “do jardim do éden a terra era árida, inóspita (...)”. Como retirantes perdidos e com fome, os dois seguem sem destino.
Em desespero e em estado de abandono, o casal vagueia à procura de um abrigo. A primeira morada, uma estreita caverna. Nada lembra a benignidade de deus. Eva, mais uma vez, questiona o poder de deus. Em meio a insinuações de medo, mas estando o homem e a mulher quites, adão adverte de que quem manda é ele (o homem). Demonstrando seu desprendimento, eva responde ter sido o que disse o senhor. Sentindo-se corajosa, eva parte para falar com o anjo que guarda a porta do jardim do éden, para buscar algum alimento. Nesse trecho há uma sutil alusão à emancipação feminina (“Quando o sol perdeu alguma da força”), notada na ausência de “amparo” (sutien) aos seios, soltos, que “se moviam ao ritmo dos passos: “Não podia impedi-los, nem em tal pensou, (...). Estava surpreendida consigo mesma, com a liberdade que havia respondido ao marido, sem temor (...). Era como se dentro de si habitasse uma outra mulher, com nula dependência do senhor ou de um marido por ele designado (...)”. (SARAMAGO, 2009, p.23). Mas quando Eva se aproximou do éden teve medo de falhar e, tomada pelo desânimo, retrocede em sua idéia de liberdade: “Se eu fosse homem seria mais fácil”. Assim, “Eva cobriu melhor o peito e avançou”. (P.24).
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Observemos, da mesma forma, a menção feita ao querubim que tem uma espada de fogo brilhando com uma luz maligna na sua mão direita, trata-se de uma imagem da repressão. Eva, ainda, vence a batalha dialética com a língua e a linguagem (sinônimo de poder) que o senhor lhe deu; consegue convencer o anjo. Sem ter como sobreviver, sem saber trabalhar, e temendo voltar a ser o que era antes (pó “sem vontade nem desejo”) o casal recorre a azael, há esperança de boas notícias vindas desse anjo. Depois de informar aos dois que não são os únicos, eles os instrui sobre caravanas de homens que passam por ali e propõe-se a acender uma fogueira para atrair outros homens curiosos. A boa notícia: É preciso acender a fogueira! Visto que: “os seres humanos são curiosos por natureza, esses irão querer saber que ateou aquela fogueira e com que intenção o fez.”(p28). Essa será a oportunidade de adão aprender o que não sabe. Enquanto o senhor abandona suas criaturas, há aqueles que no mundo são uma verdadeira providência.Acolhidos pela caravana, o “primeiro homem” e a sua mulher não se distinguem dos outros, eles têm cabelos pretos, pele morena, olhos escuros – diferente, somente, é abel, que parece filho de um anjo (várias vezes encontramos referências a dúvidas sobre sua paternidade). Começa realmente a vida do casal. Aprendem a trabalhar com a terra, o valor do trabalho e a “sublime arte da poda, essa que nenhum senhor, nenhum deus seria capaz de inventar”. Primeiro trabalham com ferramentas emprestadas, depois com suas próprias. Adão chega a ser considerado bom agricultor pelos vizinhos e, um dia, a comprar o seu pedaço de terra, onde nascem caim e abel. Uma típica família de agricultores.
A família prosperava. Os vizinhos diziam que eles tinham futuro. Até que a intervenção do senhor chegou para alterar-lhes o destino (seria sua ajuda indispensável?). No dia de os irmãos, caim e abel, oferecerem ao senhor as primícias do seu trabalho, algo inexplicável acontece. O senhor rejeitava Caim, sem qualquer contemplação. Mas abel, em vez de se compadecer, ri do irmão e se enaltece, dizendo-se um eleito de deus, o favorito. Caim, perplexo, engole a afronta e volta ao trabalho. Mas a mesma situação em relação às ofertas se repete por uma semana e soma-se o desprezo e a falta de piedade do irmão. Caim então pede que o Abel o acompanhe até um vale e mata-o com premeditação. E, quando o senhor aparece e pergunta o que fez com o irmão, caim acusa-o de ter parte na morte de abel (“Tão ladrão é o que vai à vinha quanto aquele que fica a vigiar o guarda”), afinal, deus poderia ter evitado. Revoltado, não podendo matar deus (o senhor da terra), caim mata seu irmão (o homem) que não respeitou sua tristeza.
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O interessante no romance é que deus reconhece sua parte de culpa na morte de abel, mas não absolve a de caim, estabelecendo um acordo de “responsabilidade partilhada”: o senhor põe um sinal na testa de caim para que ninguém o faça mal (não o possa matar), todavia essa pequena mancha negra é também o sinal de sua condenação, andará errante e perdido pelo mundo, sob a proteção e censura do senhor, que o vigiará onde quer que esteja. Caim aceita, depois, olha o corpo do irmão cheio de moscas e tem pena, seu pobre irmão enganado pelo senhor; parece que caim vê a si mesmo, como num espelho.Analisemos o que temos. Caim, trabalhador do campo, não tendo sua oferta sido satisfatória ao seu senhor (dono da terra e do céu), é rejeitado, “estava claro o senhor desdenhava caim” (p.33). Seu grande pecado: não ser agradável ao senhor. Sem compreender as ações de deus, considerando-as arbitrárias, caim não vê sentido na relação de servidão e dívida que se lhe impõe. Mata o seu próximo. Condenado a ser errante, deixa a sua terra. O que vemos: a passagem do homem do campo às cidades; expressa de forma genial por Saramago.
Caim fugitivo a vagar pelo mundo, mesmo sem perceber, caminhará na direção da cidade. Mas, lembremos que, antes de entrar em nod (terra da fuga ou dos errantes), caim foi marcado. O senhor lhe fez um sinal na testa, para identificá-lo.
Caim segue errante, até chegar a um esboço de cidade. Lá conhece a senhora do lugar, lilith, personagem que não consta nas escrituras (há diversas referências a livros apócrifos e a figuras legendárias), outra rejeitada; mas que na história de Saramago, aparece como a senhora do lugar, mulher independente e que se apaixona por caim. Em busca de emprego, caim, sob o nome de abel, entra em tal cidade. Mais uma “vítima da crise”, sem saber nada de alvenaria - área de maior desenvolvimento no local - caim vai ser pisador de barro até se tornar “porteiro” do quarto de lilith.
Não demora muito para caim descobrir que, na cidade, primeiro tem-se de “mostrar o que vale”. E ser lavrador valia pouco, onde em tudo anda o progresso (fatal como a morte e a vida). Logo também, ele se depara com o palácio (o centro de poder, o Estado) e com a senhora, capaz do melhor e do pior (como qualquer senhor), a mulher que governa o rebanho, lilith. Ela fará do pisador de barro seu amante. Sem se dar conta, caim cai em sua armadilha.
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Ao entrar no quarto de lilith, esse homem passa de uma prisão à outra. Como um vampiro, ela lhe suga as energias e ele não pode sair da antecâmara que ela lhe ordenou ficar dia e noite, para, quando ela quisesse, servi-la. Não obstante, certo dia, lilith percebe que caim (o falso abel) está muito pálido; e ele passa a fazer caminhadas acompanhado por um escravo. Num desses passeios, tentam matá-lo a mando do marido da senhora; quando ela fica ciente do fato, manda matar todos os subalternos envolvidos no atentado e avisa que, se houver tortura, quer assistir. Mas não houve tortura, a condenação do traidor foi uma “sóbria execução por enforcamento diante de toda cidade” (suplício). Essa é lilith, aquela que manda matar e se compraz com torturas, aquela que pune os desobedientes com pena de morte, um legítimo senhor. A versão feminina do senhor é, também, o duplo do campo, ou seja, a cidade. Lilith é a cidade, que atrai e devora. Todavia caim entende que ali não era o seu lugar e parte.Daí seguem-se as viagens de caim pelo passado e pelo futuro, ou melhor, como diz o narrador, por “outros presentes”. Um recurso que torna a cronologia anacrônica nesse livro. Em suas viagens pelo exterior, caim testemunha todo tipo de atrocidades, e, aquelas que não presencia, ouve falar, para citar algumas: um pai ia matar seu filho (impedindo-o caim, que surge dizendo-se um anjo); uma torre, que se pretendia fazer chegar até o céu, arruinada pela inveja de deus; a destruição de sodoma (condenada pelo tipo de prática sexual dos seus habitantes) e onde morrem milhares, culpados e inocentes (incluindo as crianças), em nome de um senhor; o dilúvio que fazia parte do projeto divino.
É graças ao “jogo dos presentes alternativos”, que sabemos o que acontece pelas veredas de caim. Aquele que cumpre pena de errante e perdido é também abel, é noah, é o anjo; não há sombra que os proteja, exceto a morte. O senhor condena inocentes e culpados, de maneira que ser inocente ou culpado torna-se a mesma coisa. Contra deus testemunham: o corpo de abel (o preferido) abandonado às moscas no vale (da morte, referência ao Salmo 23); os corpos dos traidores expostos na fazenda de lilith; o povo escolhido esquecido no deserto; a cegueira lançada aos habitantes de sodoma, sem exceção, e as as crianças mortas pelo “senhor dos exércitos".
Compreendendo que está só, sem nenhuma proteção, caim esconde a marca feita em sua testa, essa só existe para que o senhor o possa controlar.
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E a marca na testa de caim se multiplica durante toda a história: é a mancha do sangue do irmão que tenta esconder com terra (ninguém desconfiaria do que está por baixo, pode-se dizer que é sangue de cordeiro); é a procura de sinal de vida; é o defeito assinalado pelo diabo; é a mancha parda da cidade; é a sombra da mão direita; é a marca que se multiplica até, quem sabe cobri-lo todo (alusão à própria morte); é o escuro interior da arca de onde sai caim, depois de ter matado todos os humanos; é a verdadeira face do senhor por detrás da imagem semelhança com que foi constituído e que surge como o fundo negro de um espelho esfacelado.Quem é o senhor? Recapitulando: senhor é aquele que realiza a prática do interrogatório e se utiliza da confissão, é aquele que não sabe o valor do trabalho e irrita-se facilmente. O senhor é incompetente, negligente (imprevidência), violento, e não reconhece seu erro publicamente. O senhor marca, identifica, controla e pune aqueles que se atrevem a desobedecer. O senhor engana e abandona aqueles que diz proteger e amar. Podemos restringir essas práticas a uma Instituição? A uma cultura? O que defenderia Saramago nesta obra? O homem comum sempre foi caim ao longo da história, nem sempre o assassino; mas o errante, o excluído, o nômade, o trabalhador. Por isso, as figuras de abel e caim se confundem no livro, não é à toa. O homem, que se dizia ser abel, era caim, desde o início. Todavia, isso se torna mais visível com a morte de abel (do homem), porque enfraqueceu-se a figura do deus benevolente. Ora o senhor deixa que abel morra abandonado, tão desamparado quanto caim. É esse abandono que testemunha contra deus e é por isso que ele, mesmo morto, abel ainda fala. Com a morte do homem, a imagem do soberano, do Estado, também vacila. Deixa-se transparecer que não há quem nos proteja. Do fundo escuro surge a imagem da morte e o senhor se depara com ela como se olhasse para um espelho, porque os seus dias também estão contados: “A história acabou, não haverá nada mais que contar”.
Isabelle Meira Christ
Mestre em Literatura Portuguesa/UERJ/ 2009
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa)/UFRJ
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