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Paradoxos do humanismo português na poesia latina de Diogo Pires
Luiz Fernando Dias Pita
Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ
nandopit@uol.com.br
Paradoxos do humanismo português na poesia latina de Diogo Pires: A análise do poema “Vellet Amoribus Renuntiare” de autoria do poeta português Diogo Pires permite uma leitura dos paradoxos da recepção do Humanismo em Portugal, assim como demonstra características do latim renascentista.
Palavras-chave: Humanismo. Latim. Portugal.
Paradoxes of Portuguese Humanism in The Latin Poetry of Diogo Pires: The analysis of the poem “Vellet Amoribus Renuntiare”, by Portuguese poet Diogo Pires, allows for a reading experience of the paradoxes of the reception of Humanism in Portugal, as well as suggests characteristics of renaissance Latin.
Keywords: Humanism; Latin; Portugal.
O exame de obras produzidas em latim impõe sempre o conhecimento da referencialidade que cerca os textos, uma vez que, dada a distância temporal, nem sempre podemos perceber de imediato os dados que nesses textos se apresentam, fato que habitualmente se torna elemento complicador, qualquer que seja o viés teórico sobre o qual construamos nossa análise. Convém, pois diferenciar o perfil das referências a que se pode recorrer, já que, no tocante aos textos compostos na Antiguidade Clássica ou Pós-clássica, não há novos textos a se que possa recorrer, uma vez que todos os dados disponíveis há muito tiveram esgotadas suas possibilidades de exegese.
Produzidos quando a ordem feudal garantia a estabilidade social, e uma visão estática do mundo dava aos escritores em língua latina uma base sólida de concepções – religiosas, artísticas, culturais – que acarretavam uma compreensão quase unívoca do mundo, os textos medievais tinham diminuída aquela disparidade referencial que aumenta a dificuldade dos que se disponham ao seu exame.
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Estes problemas até aqui apontados como capazes de alcançar os textos clássicos e medievais reaparecem contudo quando se trata de examinar os textos compostos durante o Renascimento europeu, agravados ainda por novos fatores que lhes são agregados, pois, produzidos em momento de efervescência cultural, comportam uma riqueza de linguagem que é ao mesmo tempo, filológica, estilística e referencial. Se, nos aspectos filológicos esses textos preferem as formas atestadas nos escritores clássicos, de quem se imitam também os modelos versificatórios e as estruturas de composição do discurso literário; no aspecto referencial, o problema é outro: além de rechearem seus textos com as diversas referências culturais retomadas ao universo religioso pagão e à produção cultural greco-romana, os escritores do Renascimento semeiam em suas obras inúmeras referências a sua própria contemporaneidade: fatos e personalidades do mundo cultural, político, econômico e religioso são mencionados pelos autores que, nos séculos XV e XVI, dispuseram-se à composição em latim.
Tratando-se desses séculos, recorde-se que correspondem, na vida europeia, a uma época complexa, formada por intrincados jogos de poder que abrangiam os estados nacionais em formação, prenhe portanto de fatos e personalidades cuja memória muitas vezes não se preservou além da citação que, nesses textos, a eles foi feita pelos que podemos denominar “autores humanistas latinos”.
Estes não foram poucos, sabemos que houve uma profusão de autores que, em toda a Europa, e até mesmo na América recém-descoberta, dedicaram-se ao processo escritural valendo-se da língua de Virgílio. Ademais, é necessário afirmar que a intensidade dessa produção pode também ser medida por critérios qualitativos. A esse respeito, transcrevemos aqui texto de Roland Mousnier:Os humanistas exprimiram-se através de uma valiosa literatura em latim.(...) O entusiasmo pela Antiguidade era tal que a República (de Veneza), os príncipes e os papas consideravam os humanistas como secretários indispensáveis. A correspondência latina deste tempo representa espantosos exercícios de estilo, com períodos harmoniosamente cadenciados, com palavras significativas, bem escolhidas e enlaçadas com arte. O assunto não tem a mínima importância. Os humanistas(...) fizeram, principalmente, uma poesia latina, na maioria das vezes imitada de Catulo, Virgílio, Ovídio, mas brilhante de engenho, delicadeza e arte, onde aprenderam a exprimir diretamente os sentimentos verdadeiros, a estimar a forma, a escolher os vocábulos, discernir os matizes, compreender o valor dos ritmos e das palavras. Os italianos Beccadeli, Pântano de Nápoles (morto em 1503), Poiziano, de Florença (morto em 1494), Marulo (morto em 1500), Navagero de Veneza (morto em 1523), foram imitados em toda a Europa onde a poesia latina, praticada desde bem cedo, tomou grande surto a partir de 1503. Na França existiram 109 poetas latinos no século XVI. Esta literatura produzia nos estudantes o efeito de uma boa retórica. Os escritores utilizavam-na para aprender a arte de escrever. Todos os poetas em língua nacional começaram pelos versos latinos. (MOUSNIER, 1957, p. 30)
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Mas se a fala de Mousnier deixa entrever um uso propedêutico para a composição latina – vista como etapa obrigatória para o bom desempenho em língua nacional – o que dizer-se daqueles autores que, por opção, mantiveram-se como usuários do latim? Qual(is) o(s) motivo(s) para tal prática? Qual o corpus que esta produção abarca? E, mais importante, que haveria de comum entre tais textos?
Consideramos primordial esta última questão, pois sua resposta aponta para a comunhão de pensamento e estilo entre autores de diversas nacionalidades; configurando, no Renascimento, algo semelhante, porém posterior, ao que Curtius denominou Idade Média Latina.
Respostas às questões acima só podem ser dadas à proporção em que se examinem os textos em si. Esse exame, logicamente, só poderá ser executado como produto de obra coletiva, realizada por pesquisadores diversos e ao longo de décadas. Isso abre passagem a um novo questionamento: em que pode, um pesquisador brasileiro, contribuir para esse levantamento?
A possibilidade de contribuição, cremos, não fica restrita a mas certamente apresentará melhores frutos se centrada nas obras de autores oriundos da Península Ibérica. A herança cultural, os laços históricos, a grande intercessão entre o pensamento ibérico e o latino-americano facilita enormemente essa tarefa que poderá revelar frutos insuspeitados para a compreensão da própria cultura brasileira.
Dessa forma, o centrar-se nos autores ibéricos é estratégia que promove, ao mesmo tempo em que economiza esforços do pesquisador, maior integração entre os estudos clássicos – pelo exame do uso do latim -, do pensamento humanista – em sua vertente ibérica – e da herança cultural brasileira, analisando a repercussão daquele pensamento em nossa formação histórica.
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Assim sendo, fazendo deste o norte de nossa ação, iniciaremos este trabalho examinando a recepção e repercussão do Humanismo em Portugal. Entretanto, como tal ação não contribuiria diretamente para o esclarecer da existência e das características de uma literatura latina europeia de caráter humanista, preferimos, para examinar mais acuradamente essa questão, determo-nos em um autor que bem sintetize tanto a presença de uma produção literária humanista em Portugal, quanto comporte em sua produção aquela teia de referencialidades em que se reflete toda a problemática de seu tempo, assim como apresenta um uso modelar da língua latina.
Dentre os autores a que tivemos acesso, Diogo Pires foi aquele que melhor correspondeu a esse perfil, e, portanto, de quem analisaremos uma fração da obra, detendo-nos no poema Vellet Amoribus Renuntiare. A importância de Diogo Pires no quadro teórico que acima delineamos será demonstrada em seguida. Passemos, enfim, ao brevíssimo exame da recepção e repercussão do Humanismo em Portugal.
É sabido que Portugal desponta no contexto europeu a partir de 1385, quando é resolvida a crise sucessória com a ascensão da Casa de Avis e se obtém o definitivo reconhecimento, por parte dos castelhanos, de que o reino português constituía nação à parte. O afastamento das pretensões castelhanas ao território português concedeu ao país a estabilidade externa de que necessitava para desenvolver-se economicamente. Por essa razão Portugal despontaria, já no século seguinte, como uma nação comercial amparada em seu poderio militar, repousando ambos na unidade nacional construída em torno à coroa.
A busca por novas rotas marítimas levou às Grandes Navegações e à consolidação de uma política externa baseada no comércio e distribuição de especiarias e outros produtos no mercado europeu. Gozando de posição atlântica, sem estar sujeito à concorrência das cidades italianas no Mediterrâneo ou aos bloqueios de rota estabelecidos pelos turcos após a queda de Constantinopla, Portugal pôde atravessar o século XV desfrutando de um círculo virtuoso de crescimento econômico e militar.
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Outro fator que favoreceu Portugal foram as crises dinásticas na coroa castelhana, que fortaleceram economicamente o país, aberto a receber seus refugiados. Assim, ao longo do século XV, Portugal tornou-se o afluente privilegiado da elite burguesa castelhana – em sua grande parte judia – que escapava das decorrências econômicas das crises políticas e também do ambiente antissemita crescente no país. Capitalizado, o país começou a estabelecer feitorias comerciais na África, iniciando sua expansão ultramarina – a mais longeva dentre as das nações europeias.
Em decorrência do aquecimento econômico e do enriquecimento de boa parcela da população – aquela envolvida com a expansão comercial ultramarina –, criou-se no país um ambiente propício ao desenvolvimento das letras e artes. Esse ambiente, reiterado pela necessidade de exercer um papel mais ativo junto às demais cortes europeias, impõs um maior refino das camadas nobres e burguesas do país, motivo pelo qual buscaram, na Europa – principalmente na Itália – preceptores, professores, artesãos, músicos, etc; toda sorte de profissionais capazes de colocar a elite e as cortes, real e eclesiástica, lusitanas à altura de sua riqueza material, dentre esses recém-chegados, constava a figura do italiano Cataldo Parísio Sículo: estava aberto o caminho para a renovação artística e cultural que desembocaria no Humanismo português.
Os historiadores da Arte consideram a chegada de Cataldo, em 1485, o marco inicial do Humanismo português. As ideias novas trazidas por este, nomeado preceptor do príncipe herdeiro D. Afonso, detonariam o processo de aggiornamento das artes lusitanas com o que se praticava em Itália. Rapidamente as artes recebiam os ventos que levariam os portugueses ao porto da tradição clássica: nova safra de escritores lançava-se à tarefa de apropriação dos valores e pressupostos clássicos, e também à de executar novas obras, acordes com esses valores. Já no início do século seguinte, despontariam autores como, além de Cataldo, Damião de Góis, Diogo de Teive, Inácio de Morais, o escocês George Buchanan, André de Resende, Antônio de Cabedo, Amato Lusitano, Pedro Sanches, Henrique Caiado, Luís Teixeira, Lourenço de Cáceres, Manuel da Costa e Diogo Pires.
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Suas obras eram, na maioria, escritas em latim e tributárias dos paradigmas poéticos e mesmo de gosto praticado pelos romanos, mais valorizados então do que durante toda a Idade Média. O corpus dessa produção constitui-se em expressivo subconjunto da literatura portuguesa do século XVI, cuja falta de análise engendra, cremos, uma lacuna que tem impedido aquilatar-se com precisão o papel e a importância desta literatura em seu tempo e no contexto das demais congêneres europeias.
Entrementes, a partir de 1476, com o fim das guerras dinásticas em Castela e sua posterior união com a coroa aragonesa, temos a fase final do processo de unificação dos reinos que formariam a Espanha contemporânea. Com a unificação do território em torno aos Reis Católicos (Fernando V de Aragão e Isabel Iª de Castela), a Espanha volta a ser um vizinho inoportuno para Portugal, por desfrutar das mesmas condições geográficas do vizinho, com o adicional de possuir território maior e possessões no Mediterrâneo, onde Aragão era já uma potência.
Contudo, a Espanha possuía um calcanhar de Aquiles: a grande dívida pessoal de Isabel de Castela com diversos banqueiros judeus espanhóis, originada pela necessidade de cobrir os gastos militares que a conduziram ao poder. A solução encontrada pela monarquia foi o recrudescimento da Inquisição no país, seguida sucessivamente pela conversão (forçada) dos judeus espanhóis, com expulsão e confisco dos bens daqueles que se mantivessem fiéis à fé ancestral, ocorrida em 1492.
A situação se agrava com a conquista de Granada e a descoberta da América, também em 1492: A Espanha, agora “livre” dos judeus - e das dívidas com estes -, possuía uma fonte inesgotável de riquezas. Portugal estava acuado no Extremo Ocidente, restando-lhe, para manter-se como nação, a alternativa de expandir-se através do controle das rotas do Atlântico Sul, consolidando-se, à semelhança do que realizavam os espanhóis na América, como potência comercial e colonial.
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Essa nova etapa da expansão portuguesa impunha o controle dos centros produtivos das mercadorias que Portugal distribuía no mercado europeu; assim, era mister controlar as rotas de navegação do Índico e das principais cidades comerciais indianas, levando a confronto com o Império Turco não em sua vertente europeia, mas pelo lado oposto; nos estados indianos, então, seus vassalos.
O confronto inicia-se com a Batalha de Chaul (1508). Os portugueses, visando destruir a frota turca no Índico, são derrotados por uma frota que congregava as do sultanato de Gujarat, do reino de Cambaia e Calecute, além das tropas de rumes, marinheiros egípcios enviados pelo Sultão de Babilônia como reforço em apoio aos indianos. As perdas lusas foram então enormes, incluindo aí D. Lourenço, filho do governardor da Índia portuguesa, D. Francisco de Almeida.
Um ano mais tarde, uma nova armada portuguesa, enviada pelo mesmo governador, derrotaria enfim as mesmas tropas, neutralizando a presença da marinha turca no Índico, Mar Vermelho e Golfo Pérsico. Essa batalha, chamada de Diu por ter ocorrido nas costas de dita cidade, significa o pleno alcance dos objetivos portugueses: o controle definitivo das rotas de navegação do Atlântico Sul e do Índico, controle esse que seria mantido até 1612, quando a Holanda consegue suplantar Portugal, através da conquista do Ceilão (hoje Sri Lanka).
Em 1509, portanto, Portugal conseguira garantir um “espaço vital” semelhante ao que a Espanha obtinha na América; contudo, o preço pago pelos portugueses pelas guerras no Oriente foi bem mais alto que o dos espanhóis, pois o confronto com um exército organizado como o turco seria bem mais dispendioso. A crise econômica daí decorrida deveria ser, pensava-se na corte de D. Manuel I, resolvida de modo semelhante ao utilizado pelos vizinhos ibéricos: beneficiada pelo crescimento econômico, a burguesia judia portuguesa deveria, mesmo que manu militari, arcar com os custos dessa expansão.
Recrudesceria o antissemitismo também em Portugal, em crescendo cujos pontos altos seriam o batismo forçado da população judia em 1498, o massacre de judeus em Lisboa (1506) e, por fim, a instalação da Inquisição em território português (1536).
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É nesse ambiente paradoxal, em que Portugal ocupa uma posição de potência, com uma riqueza material e cultural impressionante e em sintonia com o momento histórico vivido pela cultura europeia, mas onde - em prol da defesa do modelo social que, se era economicamente burguês, ainda mantinha muitos dos resquícios feudais – sacrificam-se ao mesmo tempo a diversidade cultural e o dinamismo econômico do país, que homens como Diogo Pires despontaram como escritores. Foi também este Portugal e suas dicotomias que acabariam servindo como pano de fundo para as temáticas do poeta, cuja biografia e produção escritural analisaremos agora.
Nascido em Évora em 1517, Diogo Pires é representante daquela geração que presenciou - e viveu - a escalada de antissemitismo que grassou pela Península Ibérica desde fins do século XV. Nascendo um ano após a instalação da Inquisição em Portugal, Diogo Pires certamente foi batizado e educado dentro dos padrões usuais entre os cristãos-novos; contudo, com o recrudescimento da vigilância sobre esses, e sofrendo a ameaça constante de que qualquer denúncia pudesse torná-lo alvo do Santo Ofício, toma, em 1535, a decisão de abandonar o país. Sabe-se que iniciou estudos de medicina em Salamanca naquele mesmo ano, mas no ano seguinte já se encontrava em Liège, e, no mesmo ano, matriculou-se na Universidade de Louvain, onde começou a publicar composições suas.
Em 1540, Diogo Pires já se encontrava na Itália, fixando-se inicialmente em Ferrara. Em princípios de 1549, mudou-se para Ancona, período em que, povavelmente, sua família esteve reunida. Contudo, a eleição do papa Paulo IV em 1555 insala na cidade nova onda de antissemitismo de que seu pai seria vítima, queimado pela Inqusição em 1556.
No mesmo ano - ou no início do seguinte - Diogo Pires deixou a Itália e se fixou em Ragusa, hoje Dubrovnik, na costa dalmática da Croácia, cidade então independente, principal responsável pelo comércio do Ocidente cristão e o Império Turco.
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Embora saibamos que escrevera ainda em Portugal, foi a partir da publicação de seus Carmina em Ferrara (1545), que começou a buscar o reconhecimento de seus contemporâneos. Convém notar que essa obra foi publicada sob o pseudônimo de Didachus Pyrrhus Lusitanus, nome com que aderira ao costume então comum de manter um nom-de-plume latino ao tempo em que, realçando sua condição de português, também ocultava ser de origem israelita. Em 1563, outra obra sua foi editada em Ferrara - embora Pires já vivesse em Ragusa: o poema Ad Paulum.
Já em Ragusa, publicou outra obra: De illustribus familiis quae hodie Rhacusae exstant anno MDXXCII. Produção que certamente lhe abriu muitas portas naquela cidade; pois foi em Ragusa que conseguiu a estabilidade necessária para dedicar-se a sua produção poética, vivendo na cidade, ou na vila de Castelnuovo, então, dependente de Ragusa e atual Herceg-Novi, em Montenegro. Mas foi em Ragusa, cidade com que se identificou a tal ordem que é, hoje, considerado um poeta local, que Diogo Pires, aliás Didacus Pyrrhus Lusitanus, aliás Flauius Iacobus Eborensis - aliás qualquer versão desses nomes para português, espanhol, italiano, latim ou croata - faleceu em 1599; não sem pedir utilizarem, em suas exéquias, seu nome hebraico de Isaías Cohen, aliás, Yeshaiya Cohen.
No entanto, ainda que exilado em Ragusa, e sem jamais retornar a Portugal, Diogo Pires nunca deixou de ocupar-se de temas próprios à sociedade portuguesa. Manteve correspondência com intelectuais lusos de sua época, como Antônio de Cabedo, Ignácio de Morais e Amatus Lusitanus, pseudônimo de João Rodrigues, de quem era aparentado.
Já em seus últimos anos, Pires editou - desta vez com o novo pseudônimo de Flauius Iacobus Eborensis - a obra que o deixaria célebre entre os lusos: Cato Minor siue dysticha moralia ad Ludimagistros Olissyponenses (1592). De fato, a única de suas obras a alcançar o reino, e também única constante da Biblioteca da Ajuda - seus outros textos, inclusive manuscritos inéditos, estão espalhados pela Itália e Croácia.
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O Cato Minor teve ainda uma segunda edição, em 1596, o que seria prova de seu êxito, pois se sabe das dificuldades de promoção de obras poéticas, principalmente editadas por autor residente alhures e versando sobre temas mais afeitos a uma terceira nação.
O exílio tornou-se tema constante em sua obra, e mesmo em poemas que abordavam outros assuntos Diogo Pires acabava por inserir menções à sua situação, assim como uma forma de praticar a damnatio memoriae dos Reis Católicos, que considerava como responsáveis diretos pela situação dos judeus ibéricos.
Por escrever sobre temas relativos a Portugal sem habitar o país, os poemas de Diogo Pires findam por apresentar um ponto de vista diverso do dos poetas no reino: as ações militares empreendidas por Portugal contra os muçulmanos na Índia, que teriam pouca repercussão no país, acabavam tendo consequências para quem, nos Bálcãs, vivia em região limítrofe ao mesmo império turco cujas fronteiras orientais os portugueses ameaçavam. Essa premissa é condição sine qua non para a correta interpretação das obras de Diogo Pires, e torna-se de fundamental importância em texto como o do poema Vellet Amoribus Renuntiare, cuja análise procederemos a seguir.
Apresentaremos o texto e nossa proposta de tradução do poema em duas colunas justapostas: a primeira, à esquerda e em negrito, apresenta o texto do poema tal como nos foi transmitido, enquanto a segunda, à direita e em caracteres normais, mostra nossa tradução. Em seguida, serão apresentados nossos comentários – linguísticos, estilísticos, históricos e literários ao texto. Convém ainda notar que todos os termos incluídos em nossa tradução, e que não têm uma correspondência imediata no original latino, estão apresentados entre colchetes. Antes, entretanto, vale apresentar os fatos que levaram à execução da obra:
Mesmo já tendo obtido o controle sobre a navegação no Índico, faltava ainda aos portugueses uma base para reabastecimento de seus navios e aquartelamento de tropas. E é com esse intuito que, já Tristão da Cunha e Afonso de Albuquerque se voltaram para Diu, cidade da costa norte da Índia, que oferecia excelentes condições defensivas e um porto do calado necessário para os navios portugueses. Intentos fracassados de conquista foram efetuados em 1521 – por Diogo Lopes Siqueira – e em 1523 – por Nuno da Cunha.
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Contudo, Diu acabaria sendo oferecida aos portugueses por Bahadur Shá, sultão de Gujarat, em 1535, em troca do apoio destes na guerra que movia contra o Grão-Mogol de Delhi. Mais tarde, o próprio Bahadur Shá tentaria retomar Diu em 1538, tendo agora como aliados Coja Sofar, sultão do estado vizinho de Cambaia, e as tropas turcas de Solimão Paxá. Essa tentativa foi frustrada pela armada portuguesa, que impediu os mercenários egípcios de Solimão Paxá de levarem reforços e suprimentos aos turcos, e também pela resistência de António da Silveira, que impediu a invasão da cidade, sendo esses os fatos narrados por Diogo Pires em Vellet amoribus renuntiare.
Esta batalha, que asseguraria a posse de Diu para os portugueses, garantiria também o controle, por parte destes, da navegação no Índico por décadas. Ademais, Diu só retornaria a controle indiano em 1961, quando Nehru invadiria o “Estado da Índia”, tomando-o a Salazar.
Ergo ego periurae seruire puellae
natus? Et ingratum ferre supercilium?
Acaso nasci eu para servir à menina perjura?
E trazer infeliz o rosto?
Nec mens sana meos uanos culpabit amores?
Nec mea uicturum Musa mouebit opus?
A mente sã não culpará meus amores vãos?
A minha Musa não moverá a obra vencedora?
Mars inuicte, faue: dicam crudelia regum (5)
funera, dicam acies et noua bella canam.
Ó Marte invicto, favorece-me: descreverei os cruéis funerais do reis,
descreverei as tropas e cantarei as guerras recentes.
Iam mihi uictor equis Siluerius ibit in albis
aureus et lauru tempora uincta geret.
Já a mim o vencedor Silveira irá, vestido de dourado em cavalos brancos,
e coroará a têmpora vitoriosa com o louro dourado
Pone duces bello capti, captaeque triremes,
atque expressa nouis oppida imaginibus. (10)
Põe em novas imagens os generais do cativo na guerra,
as trirremes tomadas, e as cidades subjugadas.
Inde peregrinae gazae, et captiua sequentur
agmina tot linguis dissona barbaricis.
Daí seguirão as riquezas estrangeiras,
e as cativas multidões dissonantes com tantas línguas bárbaras.
Victor "Io" medio clamabit ab agmine miles;
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huic quoque in aerata casside laurus erit.
O soldado vencedor clamará “eu” em meio a tropa;
para este também haverá louros no capacete de bronze.
Qua croceis Aurora rotis innititur, et qua (15)
Indus odoratas in mare raptat aquas,
[Lá] onde a Aurora repousou [seus] halos dourados
e por onde o Indo rouba ao mar [su]as águas perfumadas,
stat Cambaia Dios, sedes non gratior [quam] ulla,
non magis Eois regibus apta domus.
fica Diu Cambaia, morada não mais agradável que alguma [outra],
uma casa não mais apta aos reis do Oriente.
Huius aduersos Solimanus scandere muros
tentabat crebris undique missilibus. (20)
desta Solimão [Paxá] tentava por todos os lados
escalar os muros de defesa.
Vtque erat ingenio uano, ni Thracia signa
protinus obsessa ciuis in arce locet,
mas como era um intento vão, [tentava] com artilharia pesada,
mas sequer a Trácia colocaria logo os sinais de sítio no cume da cidade,
excidio genti uenturus et illa minatur
quae solet irato uictus ab hoste pati.
e ela ameaça ao povo com um futuro massacre
que costuma o vencido sofrer do inimigo irado.
Vt uero auratas Quinas circumtulit heros (26)
inclitus, arripuit semiuir ille fugam.
Como em verdade o ínclito herói desbaratou as quinas douradas,
o semi-homem tomou-se em fuga.
Non secus incestam Ptolemaida classe subacta
nigra per Ionium uela dedisse ferunt;
Com a frota egípcia derrotada, as negras velas que vagam pelo mar jônico
não navegam ao longo da costa impura,
sic fugientem una uidit rate Nereus illum, (30)
a quo indigna modo uincula pertulerat.
assim, Nereu o viu fugindo em uma balsa,
da que mal executou as indignas amarras.
Siste gradum, Solimane! Hic sunt quae regna petisti;
hic ager; hic ingens praeda parata tibi.
Detém a marcha, Solimão! (32)
Como mensageiro resolutíssimo irás ao rei do Ísmaro; (34)
Nuncius Ismario regi certissimus ibis;
hic concisa tuae robora militiae. (35)
Ali estão os reinos que pediste; (32)
ali o campo; ali as grandes pilhagens preparadas para ti. (33)
ali a abatida nata da tua milícia. (35)
Ille ratem subigit uicina in regna Canopi,
et profugo Nilus tuta latebra fuit.
Aquele conduz, contra a corrente, sua barca aos reinos vizinhos a Canope,
e o Nilo foi um esconderijo seguro ao fugitivo.
Haec ego magnifice; blandum risisse Cupido
dicitur et uati triste parasse iugum.
[enquanto]eu magnanimamente [cantava] estas coisas;
diz-se ter Cupido sorrido e preparado um suave jugo para este poeta triste.
Parce, puer, per quas conscendis in aethera pennas (40)
perque leues arcus et (mea regna) faces.
Poupa, menino, as penas com as quais te elevas no éter
e com as que ergues os arcos ligeiros e as tochas nupciais (sobre meus reinos).
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En adsum, non iussa quidem, non saeuo recuso
uincla pati, nullum deprecor imperium.
Eis-me aqui, certamente não (recuso su)as ordens,
não recuso suportar os vínculos ao cruel, não peço nenhum poder.
Vinum oro: ut nobis toties cantata puella
aut amet aut certe saeuiat illa minus. (45)
vinho peço, para que a menina, tantas vezes cantada por nós,
ou ame ou sem dúvida ela se enfureça menos.
Passo agora a tecer comentários estilísticos e literários ao poema. O dístico inicial da obra (“Ergo ego periurae seruire puellae/ natus? Et ingratum ferre supercilium?”) traz já um recurso linguístico incomum para os tradutores acostumados aos textos clássicos: Pires usa o verbo no infinitivo como elemento introdutor de uma oração adverbial final - o recurso usual na língua clássica, ad seruiendum, seria, como se vê, o de colocar o verbo no acusativo, precedido de ad, funcionando pois como expressão de finalidade. Contudo, Pires prefere aqui alinhar-se aos autores pós-clássicos, em que predomina o uso do infinitivo como complemento de adjetivo derivados de particípios.
Optamos também por traduzir o termo ingratus, a, um por “infeliz” que pareceu-nos mais afeito ao tema do que a forma dicionarizada descontente.
Os versos 3 e 4 do poema iniciam-se com um uso incomum do termo nec: ao invés do costumeiro uso como conjunção aditiva, têmo-la aqui como advérbio de negação, introduzindo as duas interpelações que os versos apresentam.
Na tradução do sexto verso, cometemos uma inovação: obviamente nenhum dicionário de latim trará “recente” como possível tradução para nouus, -a- um, no entanto, não devemos nos esquecer de que os fatos cantados por Pires eram realmente recentes, portanto, para melhor situar o poema no tempo de sua composição, cremos que o termo escolhido mais bem se adequa ao verso que o termo “novas” pedido por uma tradução mais literal.
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O quarto dístico (sétimo e oitavo versos: “Iam mihi uictor equis Siluerius ibit in albis/ aureus et lauru tempora uincta geret.”) exigiu um pouco de nossa criatividade para a tradução do adjetivo aureus, a, um que contém: referindo-se ao nominativo Siluerius, o termo pede a adjunção de algum complemento que esclareça a relação entre os termos, optamos assim, para elucidá-la, por “vestido de dourado”, ainda que este não corresponda fidedignamente ao termos latinos utilizados.
O décimo-quarto verso do poema (“Victor "Io" medio clamabit ab agmine miles;”) traz o termo “Io” que, supomos, seria uma alusão à composição das tropas portuguesas que defenderam a Diu: a escassa população de Portugal não poderia fornecer tropas em quantidade suficiente para defender todo o império que o país estava criando, daí o recurso a tropas mercenárias das demais nações europeias. Em se tratando de tropas navais, é natural que italianos, cujas cidades-estado já viviam em situação semelhante no Mediterrâneo, fossem o principal componente dessas tropas, daí portanto o termo italiano usado por Pires – que não deixa de ser uma pequena homenagem à Itália onde vivia e onde certamente compusera o poema.
O dístico seguinte (“Qua croceis Aurora rotis innititur, et qua/ Indus odoratas in mare raptat aquas,”) exigiu, para que melhor se traduzisse, a introdução de termos inexistentes no poema original; assim, ao advérbio qua, que é literalmente traduzível por “por onde”, preferiu-se, numa tradução mais liberal, o termo “Lá onde”, que indica que o lugar da narração não é o da narrativa. Ademais, já que a Aurora e o rio Indo são personificados, reforçamos os traços dessas lançando mão do possessivo “seu” e flexões.
É de se notar também que o verso diz ser o Indo quem rouba as águas do mar, refletindo a crença, ainda corrente no século XVI, de que as águas correriam dos mares para os rios, e não o inverso, como cientificamente se comprovaria mais tarde.
Os versos 26 e 27 (“Vt uero auratas Quinas circumtulit heros/ inclitus, arripuit semiuir ille fugam.”) do poema trazem um termo, “quinas”, que nenhum dos dicionários consultados foi capaz de explicitar. Nosso primeiro pensamento dirigiu-se, naturalmente, às quinas que ornam o escudo português, contudo tal acepção só teria sentido se o poema celebrasse uma derrota lusa, logo, tal raciocínio foi prontamente descartado. E, como a tradução apontava para algo dourado tomado como presa de batalha, ficou-nos patente tratar-se de bandeiras com o Crescente, símbolo do Islã.
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Há ainda, no mesmo dístico, um termo, semiuir, cuja polissemia oferece uma sutil ironia em sua tradução: significando ao mesmo tempo “centauro” – alusão à cavalaria – e “afeminado”, a frase poderia, referindo-se à derrota de Coja Sofar, ser entendida como “o afeminado irrompeu em fuga”. Contudo, sabendo que é tática militar o uso da cavalaria para a perseguição de tropas em retirada, a frase também pode significar “o centauro interrompeu-lhe a fuga”. Na impossibilidade de colocar-se, em uma só frase, esses múltiplos sentidos, optamos por uma tradução mais “neutra”: “o semi-homem tomou-se em fuga”.
Os versos seguintes (28 e 29: non secus incestam Ptolemaida classe subacta/ nigra per Ionium uela dedisse ferunt;) apresenta uma série de interpolações – recurso aliás muito utilizado por Diogo Pires – que tornam sua interpretação opaca ao leitor que não perceba que o termo uela se desdobra na expressão “dare uela”, que significa “navegar”, e ainda em uela (nigra), que Pires toma também como nominativo de toda a frase, razão porque o verbo fero, fers, ferre,… faz-lhe concordância.
Temos ainda a preposição secus, regente de acusativo, seguida do termo incestam, que traduzimos por “ao longo da [costa] impura”; que, como visto, decidimos por elucidar usando o termo “costa”.
Há, ainda, a expressão “per Ionium ferunt”, que exige também maiores esclarecimentos: sendo o verbo fero, fers, ferre,… um dos mais polissêmicos da língua latina, escolhemos traduzi-lo por “saquear” forma atestada por Saraiva(2000), por estar mais condizente aos campos semânticos em curso. Já a expressão per Ionium poderia ser traduzida como “por entre o mar jônico”, “através do…”, mas cremos que não evidenciaria a contento o fato de que os mercenários egípcios seriam piratas que costurmeiramente assolariam a região do Peloponeso, desse modo, preferimos uma tradução mais simples, mas que deixa clara a questão: “saqueiam pelo mar jônico.”
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O dístico seguinte (“sic fugientem una uidit rate Nereus illum/ a quo indigna modo uincula pertulerat.”) constitui-se em sequência dos anteriores e narra a fuga interrompida de Bahadur Shá, representado pelo pronome demonstrativo illum – que, de passagem, esclarece-nos quanto à significação do termo semiuir anteriormente citado - e ainda corrobora a visão negativa do sultão, incapaz sequer de executar as amarrações de abordagem da balsa. Desnecessário dizer que preferimos traduzir o particípio presente ativo fugientem através do gerúndio “fugindo” porque assim imprimiremos maior dinamismo à oração.
Os dois dísticos seguintes encontram-se tão interligados que, para traduzi-los, é mais conveniente desconsiderar a ordem de seus versos, portanto fizemos, em nossa tradução, que o verso 34 antecedesse tanto a segunda oração do verso 32 quanto os de número 33 e 35: tratando-se de uma advertência a que Solimão Paxá não torne a cobiçar a cidade de Diu, Pires vaticina que “Nuncius Ismario regi certissimus ibis;” usando de uma metáfora, já que o “rei do Ísmaro” nada mais seria que o próprio Hades, ou mesmo o Demônio, tal como concebido igualmente por cristãos, muçulmanos e judeus.
O termo “Ismario” foi dos de mais difícil interpretação em todo o poema, uma vez que o sufixo –ius refere-se à origem de alguém, não esperávamos encontrar o termo nos dicionários consultados; confirmada essa hipótese, o termo Ismarus, -i apresentou-se como válido pois, a partir de sua descrição em Gaffiot: (“l’Ismarus, montagne de Thrace où séjourna Orphée.”), pudemos deduzir tratar-se de uma das entradas do próprio Hades. A citação desse termo representa uma mostra de erudição de Pires, posto que apenas Virgílio, em sua VIª Bucólica (v. 30), dá esta denominação ao monte por onde vagou Orfeu lamentando-se da perda de sua Eurídice.
Convém notar ainda que esta é a única vez em que o termo latino é apresentado em sua forma “renascentista”, pois Pires fez uso da grafia “nuncius” e não “nuntius” como atestada pelos dicionários consultados.
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Outra liberdade que tomamos foi a de traduzir o advérbio hic por ali e não como aqui, conforme atestam novamente os dicionários, esse procedimento realça o fato de que será junto ao “rei do Ísmaro” que Solimão encontrará seus objetos de desejo.
Os versos 38 e 39 (“Haec ego magnifice; blandum risisse Cupido/ dicitur et uati triste parasse iugum.”) apresentam recursos linguísticos que não encontramos nos textos latinos a que tivemos anteriormente acesso: trata-se de uma oração infinitiva passiva funcionando como objeto do verbo declarativo dicitur. Nesse caso, segundo Cart et alii (1986) “a construção impessoal muitas vezes dá lugar a uma construção pessoal, na qual a oração infinitiva deixa seu sujeito, que se torna, no nominativo, o do verbo principal” (Cart, 1986:132, §232 e 233).
Porém, a oração de tradução mais conturbada das que se apresentam é a que inicia o verso 38 (“Haec ego magnifice”), e que se, à primeira vista, parece não se ligar a nenhuma das que o circundam, a pontuação indicou-nos, porém, pertencer ao mesmo período das que lhe sucedem, estando em elipse a conjunção que as une. Esta, percebemos logo, deveria evidenciar a concomitância entre os fatos realizados pelo eu-lírico e os de Cupido; portanto nossa opção recaiu, de imediato, sobre “dum”.
Porém, sendo ações concomitantes; qual verbo demonstraria a ação praticada pelo eu-lírico? O exame do texto deixa-nos duas hipóteses, as mesmas expostas quando da exortação a Marte: dico, as, are, dixi, dictum e cano, is, ere, cecini, cantum; mesmo sendo pleonástica qualquer escolha, preferiremos considerar o segundo verbo como elíptico no poema; devendo ser colocado no pretérito imperfeito do indicativo para demonstrar de modo inequívoco a concomitância entre as orações do período.
Outra elipse que o verso apresenta, embora seja esta bem mais frequente em textos latinos, é a do termo res quando precedido de pronome demonstrativo. Assim, expostos todos os termos elípticos dessa oração, terêmo-la como: “Dum haec res ego magnifice canebam”.
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Os versos seguintes representam uma total modificação no conteúdo temático da obra: os remas bélicos são totalmente postos de lado, e o poeta, até então vate das batalhas empreendidas pelos portugueses, torna-se mero vassalo de Cupido, renovando seus votos de fidelidade aos desígnios desse deus-menino e pedindo-lhe apenas a concessão de vinho, com o qual pretende conquistar ou aplacar a ira da “nobis toties cantata puella”.
No tocante aos aspectos que até aqui vimos comentando, no entanto, esses últimos versos são, de fato, outro poema: bem mais simples e modesto - em recursos estilísticos - que os versos anteriores, esses dísticos têm, prioritariamente, a função de apresentar algo da condição do poeta, que põe de lado o eu-lírico e retoma o tom interrogativo-melancólico dos dois primeiros versos. Um dado importante é que esses versos de encerramento desfazem a impressão inicial dos primeiros: a de referirem-se a Isabel de Castela normalmente citada, nos poemas de Pires, como “periura puella”. Dessa vez, no entanto, percebemos tratar-se de algum dos muitos amores que seus biógrafos alegam ter tido Diogo Pires.
Um dos fatos que mais nos chamou a atenção em nossa abordagem do autor foi que o fato de que Diogo Pires dava títulos a seus poemas, contrariando uso comum dos poetas em línguas nacionais de seu tempo. Sendo as obras, em sua maioria, conhecidas hoje por seu primeiro verso ou por outra denominação dada pelos editores que teve ao longo dos séculos. Tal é o caso de Vellet Amoribus renuntiare, título não diretamente relacionado à tônica bélica que ocupa quatro quintos da obra, mas à exposição da dor amorosa sentida por um eu-lírico que usa do vinho para fazer-se perdoar, ou para conquistar aquela a quem a obra é ofertada.
Visto por esse prisma poderíamos ver em Diogo Pires apenas um poeta de ocasião, que usaria de suas habilidades para propósitos não tão nobres; contudo, a disparidade mesma com que aloca versos de temas tão distantes em um mesmo poema, a variedade de tons com que tinge sua composição, que variam do bélico-altissonante ao cantar as glórias da pátria de onde tivera de se exilar ao sentimental-lacrimoso com que expõe sua situação amorosa, a estruturação rebuscada dos termos de suas orações, refletem não apenas um homem do Humanismo, afinado com os paradoxos do seu tempo e vítima de condições alheias a sua própria vontade e às quais, como o título do poema indica, renunciaria, se pudesse.
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Mas pensamos dever observar como todos esses paradoxos antecipam, na pessoa e na poética heterônimas de Diogo Pires, o sentimento barroco que vigoraria plenamente no século seguinte àquele em que Pires vivera, e no qual seu próprio país, Portugal, também se veria, em razão de um paradoxo da história denominado Alcácer-Quibir, engolfado pela Espanha.
REFFERÊNCIAS
GRANDE ENCICLOPÉDIA PORTUGUESA E BRASILEIRA. Lisboa e Rio de Janeiro: Editorial Enciclopédia, Limitada, s. d. Vol XXI.
______________. Dicionário da Mitologia Grega e Romana. 4 ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
MÉNARD, René. Mitologia Greco-Romana. São Paulo: Opus, 1991. 3v.
MOUSNIER, Roland. Os Séculos XVI e XVII: o Progresso da civilização europeia. São Paulo: Difel, 1957. (História Geral das Civilizações, Volume I, tomo IV)
RAMALHO, Américo da Costa. Estudos sobre a época do Renascimento. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian e Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, 1994, 2 v.
___________. Para a história do Humanismo em Portugal. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian e Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, 1994, 2 v.
Luiz Fernando Dias Pita
Doutor em Letras Clássicas, UFRJ, 2010
Professor Adjunto Língua Latina, UERJ
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