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As margens filosóficas no romance A maçã no escuro, de Clarice Lispector:
Mirian da Silva Pires
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ
mspires@click21.com.br
As margens filosóficas no romance A maçã no escuro, de Clarice Lispector: O objetivo deste trabalho é analisar o romance de Clarice Lispector, A maçã no escuro, em interface com o discurso filosófico de Baruch Espinosa, cuja Ética permeia o texto da Autora. Sustentado na adequação entre o corpo e o pensamento, Martim, o personagem central do romance, ressignifica a sua compreensão do mundo, e desenvolve uma atitude ética e solidária na consideração do outro. O conhecimento alcançado lhe dá a habilidade de “pegar no escuro uma mação sem que ela caia”.
Palavras-chave: Clarice Lispector, Ficção, Espinosa.
The philosophical edges in the Clarice Lispector’s The apple in the dark’s romance: The aim of this work is to analyze Clarice Lispector’s The apple in the dark’s romance, in interface with the philosophical discourse of Baruch Espinosa, whose Ethics permeates the Author’s text. Supported by the adequacy between the body and the thought, Martim, the main character in the romance, re-means his understanding of the world and develops an ethical and solidary attitude in the consideration of the other. The reached knowledge gives him the ability of “catching in the dark an apple without letting it fall”.
Key-words: Clarice Lispector, Fiction, Espinosa.
Em tudo, em tudo você terá a seu favor o corpo.
O corpo está sempre ao lado da gente.
É o único que, até o fim, não nos abandona.
Clarice Lispector,
O objetivo deste trabalho é fazer uma leitura do romance A maçã no escuro, de Clarice Lispector, publicado em 1961, cuja trama acompanha a trajetória de Martim na construção paulatina de um novo paradigma existencial. Essa construção, em consonância com a obra literária da autora, agrega um caráter filosófico ao drama singular do personagem. Na primeira parte desse estudo, serão apontadas questões relativas à caracterização do discurso poético da autora. A seguir, serão feitas considerações a respeito da Ética de Baruch Espinosa e, finalmente, o trabalho se voltará para a análise propriamente dita de A maçã no escuro, tendo em conta, principalmente, sua interface com os postulados filosóficos Espinosa.
As fronteiras do discurso
De modo geral, o discurso literário de Clarice Lispector costuma mostrar-se permeável a outros tipos de discursos, como o filosófico e o religioso.
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O conhecimento do homem, suas questões fundadoras na busca de si próprio e do mundo que o cerca, são referências temáticas da narrativa clariciana, cujo suporte simbólico ganha significação na medida em que esses outros saberes – o filosófico e o religioso – são incorporados na sua construção discursiva.Na verdade, a busca do conhecimento é uma disposição natural no ser humano, capaz de dinamizar a civilização. Segundo Harold Bloom (2009), tanto o pensamento filosófico como a criação poética inauguram novos paradigmas para o conhecimento humano. No livro intitulado Onde encontrar a sabedoria, Bloom afirma que tal busca é mais bem realizada na literatura do que na filosofia que, empenhada na procura do saber, não o tem. A literatura, porém, sem se dispor a buscá-lo, simplesmente o expressa. Nessa medida, ele dirá, Homero é mais sábio do que Platão, motivo pelo qual o filósofo grego, ressentido dessa supremacia, decreta a expulsão dos poetas na sua República. Bloom entende ainda que o melhor, na filosofia de Platão, está na sua criação de Sócrates, imortalizado como o personagem de uma importante ficção que fará dele, Platão, um grande poeta. Sem querer polemizar com os postulados de Bloom, interessa a este estudo inferir que, no texto literário, ficção e filosofia podem coabitar, ficando esta subsumida àquela, uma vez que, neste caso, a prerrogativa é a da poesia.
A ficção de Clarice Lispector, conquanto se encontre no âmbito da criação poética – aqui entendida como ato criador ou poiésis -, abre-se para uma dimensão filosófica. Todo discurso, inclusive o literário, conforme esclarece Bakhtin (2010, p.276), traz consigo uma “intenção discursiva ou a vontade discursiva do falante, que determina o todo do enunciado, o seu volume e as suas fronteiras.” Assim é que, apesar da interface com outro campo do saber, o discurso clariciano se mantém especificamente literário. Assim, a sabedoria ou o conhecimento não podem ser perquiridos em seus textos a partir de métodos científicos de verificação, mas deve ser apenas constatada, como acontece na própria vida, como resultado de alguma experiência existencial fundadora.
Clarice Lispector nos legou uma produção literária diversificada em romances, contos e crônicas. À variedade de seus textos corresponde, naturalmente, uma multiplicidade de sujeitos organizadores de enunciados, já que, ainda com Bakhtin (2010, p.282), “A vontade discursiva do falante se realiza antes de tudo na escolha de um certo gênero de discurso. Essa escolha é determinada por um dado campo da comunicação discursiva, por considerações semântico-objetais (temáticas) (...)”.
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Para Bakhtin todo enunciado vem submetido a um gênero, o qual realiza (ou pretende realizar) a sua intenção. Não obstante, porém, à diversidade de produção da Autora, qualquer que seja a forma com que se apresente seu texto, o tema referido circula sempre em torno do espanto e da inadequação existencial de seus personagens diante dos fatos ordinários da vida. Por conseguinte, seja nos contos, seja nos romances ou nas crônicas, sua obra ganha a visibilidade de uma autoria que pode ser prontamente reconhecida.A construção discursiva da ficção de Clarice Lispector atinge, para além do espaço ficcional, outras comunidades, em movimento reflexionado, que redunda na polifonia do discurso clariciano. É nessa medida que sua ficção apresenta fortes marcas filosóficas, éticas e religiosas, para lembrar algumas. Tais estratégias alargam os níveis de compreensão do texto, construído na possibilidade heterogênea do discurso.
De acordo com Barthes (1982), existe para a comunicação literária uma “zona vigiada” que limita seu discurso, o qual não se esgota numa arte para si, abstraída de outras vozes extratextuais, tampouco está aberto a qualquer linguagem, por assim dizer, mundana. No primeiro caso, corre o risco de se exilar na própria originalidade e, no segundo, de cair na vulgaridade. A compreensão filosófica na ficção de Clarice Lispector, sem transgredir essa “zona vigiada”, opera como um suprassentido na medida em que reorienta a trama narrativa, desdobrando a leitura para um segundo nível de compreensão, ainda que não substitua o primeiro. A busca do conhecimento, inferida no plano alegórico da narração, não se dá, certamente, de forma sistemática ou prerrogativa, como seria na epistemologia filosófica, mas no movimento mesmo que anima o acontecimento, à semelhança da experiência existencial humana.
É possível ainda observar, em relação ao discurso literário, os efeitos poéticos gerados pelo arranjo estratégico da linguagem. O arranjo, de acordo com Barthes (1982, p.22), é uma técnica da literatura que “permite dar a uma mensagem única a extensão de uma infinita peripécia.” Uma das marcas da literatura clariciana é a capacidade de estender “ao infinito” mensagens simplórias e ínfimas, como a da mulher sentada horas diante de uma barata semi-esmagada, em A paixão segundo G. H., ou, como diz a narradora do conto “A quinta história”, “Farei pelo menos três histórias (...). Embora uma única, seriam mil e uma, se mil e uma noite me dessem” (LISPECTOR, 1987, p.81). Desse modo, seus textos sobrepõem diversos graus de leitura.
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Além do arranjo referido acima, como uma tática da linguagem literária de Clarice Lispector, é possível identificar ainda na sua escritura o recurso a que Umberto Eco (2003) chama de “ironia intertextual”. Para Eco, essa forma de ironia não é a que comumente entendemos, mas um modo estratégico de construção da linguagem. Citando Eco: “É que, para ser preciso, a ironia intertextual não é, tecnicamente falando, uma forma de ironia. A ironia consiste em dizer não o contrário do verdadeiro, mas o contrário daquilo que se presume que o interlocutor acredite se verdadeiro.” (ECO, 2003, p.217). Com tal recurso, pode-se, ao mesmo tempo, legitimar cada nível de leitura operado no texto, sem que um anule ou diminua o outro, embora a cada novo sentido inferido o texto se acrescente. A ironia intertextual, segundo Eco, não exclui o leitor menos instrumentalizado, porque não nega o primeiro nível de interpretação do texto, “e não configura uma conventio ad excludendum em relação ao leitor ingênuo.” (ECO, 2003, p.217). Uma história assim construída, que se estende ao infinito (“uma única, seriam mil e uma, se mil e uma noite me dessem”), seduz leitores de segundo nível. Ainda conforme diz Eco: “Para transformar-se em leitor de segundo nível é preciso ler muitas vezes, e certas histórias deve-se lê-las ao infinito.” (ECO, 2003, p.208).
A par dessa sedução, e corroborando com ela, a escritora opera as técnicas narrativas a partir de algumas estratégias de enunciação, como os paradoxos, as tautologias, o discurso indireto livre, o fluxo de consciência.
Ética e utopia
A filosofia e a ficção, na obra de Clarice Lispector, encontram profunda afinidade com a Ética de Espinosa (1632-1677). A aproximação entre ambos os autores revela o topos comum a que chegam, ou seja, eles apontam para uma utopia ética redentora, que visa a recuperar, na condição humana, a natureza essencialmente divina pela via do conhecimento (PIRES, 1977). Para Clarice, o conhecimento se faz na forma de uma procura, cujo resultado, se não suspende o homem de sua limitada condição, ao menos o leva à superação do medo. Liberto do medo, o homem pode atualizar em si o potencial divino através do exercício da virtude, tomada no sentido grego de areté, que não é senão o talento ou potência enquanto excelência de uma qualidade que pode ser apreciada tanto nos homens quanto nos deuses. Da mesma forma, para Espinosa, o conhecimento aperfeiçoa no homem a sua própria natureza, à medida que aumenta sua potência ou virtude. Diz o filósofo:
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Por virtude e potência entendo a mesma coisa, quer dizer (...), a virtude, enquanto se refere ao homem, é a própria essência ou natureza do homem, enquanto tem poder de fazer alguma coisa que só podem ser compreendidas pelas leis da própria natureza. (ESPINOSA, 1979,p.230).
É o conhecimento que permite ao homem agir de acordo com a sua virtude: “Agir absolutamente por virtude não é outra coisa (...) que agir segundo as leis da própria natureza. Mas nós agimos na medida somente em que conhecemos (...).” (ESPINOSA, 1979,p.241). Cada indivíduo, no esforço essencial de persistir na sua existência, será tanto mais bem sucedido quanto mais exercitar a própria virtude ou potência. O benefício se estenderá a todos os outros indivíduos, porque o que é bom e útil para um homem, segundo a sua natureza, é bom e útil para a natureza humana como um todo. Assim, a virtude redunda, ao fim, numa atitude ética, política, de alcance universal. Espinosa alia a singularidade inalienável de cada homem ao interesse comum: “O bem supremo daqueles que seguem a virtude é comum a todos e todos podem igualmente alegrar-se com ele.” (ESPINOSA, 1979,p 247).
A experiência existencial dessa virtude é a adequação possível entre o corpo e a mente. O corpo, de acordo com Espinosa, participa da extensão infinita da presença de Deus, enquanto a mente (ou alma, ou espírito, ou pensamento, sinônimos na Ética do filósofo) participa do pensamento infinito de Deus. Assim, corpo e mente são modos finitos sustentados na essência eterna e infinita de Deus (também entendido como Natureza). Em outras palavras, a natureza humana é parte intrínseca da Natureza divina. A potência humana é, pois, um atributo da própria natureza alcançado na proporção em que o homem é capaz de adequar corpo e pensamento. Nessa relação de correspondência, cada homem, corpo e pensamento finitos, está graduado na potência infinita de Deus.
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Sendo um complexo de corpo e pensamento, o homem só se compreende “sentindo e pensando”, pois as afecções que lhe incidem no corpo, co-incidem no pensamento. Os estímulos mundanos equalizam-se no corpo através das sensações percebidas, de modo que mundo físico ou sensível e mundo mental ou abstrato tornam-se uma e mesma experiência de existir. O conhecimento, adquirido a partir da adequação referida, mantém o homem na sua plenitude de sentir/pensar e promove, então, nova postura diante do mundo. E na medida em que o indivíduo é ativo em relação aos sentimentos, ele realiza a própria essência.
O corpo a corpo do conhecimento
O romance A maçã no escuro concentra grande parte das estratégias narrativas de Clarice Lispector. Nesta obra, o narrador acompanha a trajetória de Martim, que sofre a perda da função interpretativa da linguagem. Sendo assim, a realidade que o circunstancia, no primeiro momento, está destituída de significação, reduzida apenas ao mínimo necessário para as demandas imediatas das tarefas na fazenda de Vitória, onde trabalha. Aos poucos, ele vai “descortinando” o sentido simbólico que se inscreve através da palavra até ressignificar de novo a sua relação com o mundo.
Egresso de um mundo onde já não se reconhecia, ele opera um corte profundo na existência e salta, com o prodígio desse ato, para o “coração da liberdade” (LISPECTOR, 1982, p.38). A transição para o novo estado é provocada por um crime que ele comete e ao qual chamará de “grande pulo” (LISPECTOR, 1982, p.31). Com esse crime, “matou um mundo abstrato e lhe deu sangue” (LISPECTOR, 1982, p.37). O “mundo abstrato” no qual vivera até então impõe um hiato na sua experiência entre o pensar e o sentir.
Tratava-se de um mundo apenas mental, de tal forma Martim perdera o contato dinâmico com a vida, cristalizado na rigidez daquela estrutura. Era um mundo sem surpresa onde nada acontecia:
Ao contrário de um natural apodrecimento - que seria obscuramente aceitável por um ser orgânico perecível -, sua alma se tornara abstrata, e seu pensamento era abstrato, ele poderia pensar o que quisesse e nada aconteceria. Era a imaculabilidade. Havia uma certa perversão em se tornar eterno. Seu próprio corpo era abstrato. (LISPECTOR, 1982, p.42).
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Quando Martim “matou um mundo abstrato”, ele perdeu, igualmente, o sistema linguístico que codificava este mundo. Sobre isso dirá o narrador: “Aquele homem rejeitara a linguagem dos outros e não tinha sequer começo de linguagem própria” (LISPECTOR, 1982, p.32). O que ele perdera, afinal, não foi a faculdade de articular palavras, mas a faculdade enunciativa da linguagem. Sabe-se que, na verdade, toda linguagem já se apresenta sobredeterminada, e como afirma Barthes (1982, p.22), “nascer não é mais do que encontrar esse código pronto e precisar acomodar-se a ele”. A tentativa de se comunicar com a própria linguagem não passa de um esforço utópico, ainda conforme as palavras de Barthes:
A razão está em que essa mensagem primeira, que deveria servir a dizer imediatamente minha pena, essa mensagem pura que desejaria denotar simplesmente o que está em mim, essa mensagem é utópica; a linguagem dos outros (e que outra linguagem poderia existir?) me devolve essa mensagem não menos imediatamente decorada, sobrecarregada de uma infinidade de mensagens que eu não quero. (BARTHES, 1982, p.19).
Ao ter rejeitado a “linguagem dos outros”, Martim esvazia a realidade, e se dispõe à aventura de ressignificar a sua história que, se não lhe dá a condição de uma linguagem própria, ao menos lhe possibilitará a escolha de “retirar da língua do mundo, que é a pobre e poderosa língua das paixões, uma outra fala, uma fala exata.” (BARTHES, 1982, p.22)
Com efeito, A maçã no escuro apresenta um personagem descontextualizado, que acorda dentro da escuridão da noite e inicia uma fuga sem rumo. Sem memória, Martim anulou o passado e não tem nenhuma perspectiva de futuro. Sabemos que a amnésia é a ausência total ou parcial de memória; a memória é um meio pelo qual a história se constrói, se mantém e é celebrada. De acordo com o mito, Mnemósine ou Memória, divindade olímpica, partilhou o leito com Zeus, de cuja união nasceram as nove musas, destinadas a “cantar condignamente a vitória dos Olímpicos” (BRANDÃO, 1991, p.151) sobre os Titãs, bem como inspirar os poetas na louvação das virtudes humanas. Tanto uma atividade quanto outra - louvar os deuses ou as virtudes dos homens - são atributos solares que se opõem ao destino trevoso dos Titãs, divindades ctônicas, que ao serem derrotados pelos deuses olímpicos foram “lançados nas trevas do Tártaro.” (BRANDÃO, 1991, p. 456).
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Assim, ao faltar à memória apagam-se os feitos iluminados e a história, obnubilada cai no esquecimento. Martim, tomado de amnésia, vai inaugurar uma nova história para a sua vida, a partir de outra forma de conhecimento, menos solar e mais sensível, de modo que aprende “a pegar no escuro uma maçã - sem que ela caia.” (LISPECTOR, 1982, p.321).
A aventura de Martim vai contemplar o conhecimento na revitalização da faculdade de sentir/pensar, enquanto a sua aprendizagem segue paulatina ao estímulo sensível que advém com a experiência dos cinco sentidos, até se tornar uma presença vigorosa no mundo.
Revitalização do tato
O primeiro movimento de Martim vai se dar na escuridão da noite. A ausência de luz subtrai-lhe parte dos estímulos externos a que a visão está acostumada. Na cegueira dessa fuga, toda sua percepção será focada no tato: o chão, sob os seus pés, torna-se um mundo concreto, embora invisível, com uma firmeza que lhe sustenta incondicionalmente os passos. O con-tato efetivo com o terreno, que mapeia com a planta dos pés, aviva-lhe a memória tátil e atualiza, para ele, um caminho imediato.
Depois de longa caminhada às cegas, ele se torna seu próprio centro de referência: “De olhos cerrados pareceu-lhe que rodava em torno de si próprio numa tontura não de todo desagradável” (LISPECTOR, 1982, p.17). Essa circularidade é bastante significativa para Martim, porque estabelece um modus vivendi que o orienta na nova trajetória existencial, cumprida, a partir de então, em círculos ou ciclos subseqüentes. Ali ele adormece, em contato direto com a terra, e, já em plena luz do dia, encontra-se “sentado no meio de uma extensão deserta que se perdia de vista para todos os lados” (LISPECTOR, 1982, p.19). Naquele momento, Martim não contava senão com seu corpo para recomeçar uma história. E contar com o corpo era, também, a maneira mais original de se estar no mundo, ou nas palavras de Merleau-Ponty: “O problema do mundo, e, para começar, o do corpo próprio, consiste no fato de que tudo reside ali” (MERLEAU-PONTY, 1994:227).
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Com pouco ou nenhum pensamento, a atenção concentra-se no tato, em estado de alerta sensitiva: “Na tarde mais tranqüila, ele agora caíra numa clarividência vazia e humildemente intensa que o deixava corpo a corpo com o pulso mais íntimo do desconhecido.” (LISPECTOR, 1982, p.47).
É bastante significativo que, ao chegar à fazenda onde vai se refugiar, Vitória lhe ordene: “- Limpe os pés antes de entrar.” (LISPECTOR, 1982, p.62). O mundo de Vitória, Martim mais tarde saberá, está protegido pela mesma assepsia que gerava a “imaculabilidade” do seu velho mundo.
Revitalização da visão
Uma vez instalado na fazenda, Martim entra em contato com um nível mais primitivo de conhecimento, que prescinde da comunicação pela fala, bastando-lhe olhar:
O homem não antecipou nada: viu o que viu. Como se olhos não fossem feitos para concluir mas apenas para olhar.
(...). E num engano de que certamente precisou, um engano tão certo quanto a queda certa de uma maçã, ele teve um sentimento de encontro: pareceu-lhe que no grande silêncio ele estava sendo saudado por um terreno da era terciária, quando o mundo com suas madrugadas nada tinha a ver com uma pessoa; quando o que uma pessoa podia fazer era olhar. O que ele fez. (LISPECTOR, 1982, p.76).
Naquele estágio, era como se o homem estivesse experimentando uma nova semiose do olhar: “O homem não antecipou nada: viu o que viu. Como se olhos não fossem feitos para concluir, mas apenas para olhar.” (LISPECTOR, 1982, p.76). O pensamento, por enquanto, mantinha-se tão incipiente quanto as sensações ainda inomináveis. Martim ia aprendendo lentamente:
Mas, dia após dia - acabado o trabalho penoso que não saberia fazer se Vitória não o comandasse -, ele descia da luz aberta e superior do campo, de onde vinha cego de incompreensão. E guiado por uma obstinação de sonâmbulo, como se o tremor incerto de uma agulha de bússola o chamasse - ia enfim ao terreno terciário de vida apenas fundamental, a par de sua (...). O silêncio das plantas estava no seu próprio diapasão: ele grunhia aprovando. Ele que não tinha uma palavra a dizer. E que não queria falar nunca mais. Ele que em greve deixara de ser uma pessoa. (LISPECTOR, 1982, p77).
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Revitalização do olfato
De acordo com Ackerman (1992, p.42), “O olfato foi o primeiro dos nossos sentidos a se desenvolver.” E, mais ainda mais, “Nossos hemisférios cerebrais eram, inicialmente, botões nas pontas dos caules olfativos. Pensamos porque cheiramos.” A percepção olfativa guarda estreita ligação com os hábitos que adquirimos, porque nos acompanha diuturnamente no ritmo da respiração: “Se cobrirmos os olhos, deixaremos de ver, se taparmos as orelhas, deixaremos de ouvir, mas, se bloquearmos o nariz para não sentir mais cheiro, morreremos.” (ACKERMAN, 1992, p.26)
Por conseguinte, o olfato impregna indelevelmente a memória e o seu apelo arrebata Martim para o antigo mundo abstrato. A experiência acontece quando Vitória o encarrega da limpeza do curral. No primeiro momento ele rejeita o cheiro forte do lugar - “Por nojo, o homem que repentinamente se tornara de novo abstrato como uma unha quis recuar” (LISPECTOR, 1982, p.89).
Não obstante, a memória mítica supera os resquícios de uma memória mais circunstancial e ativa a carga simbólica que aquele espaço deflagrava: “Ele a contragosto pareceu entender que as coisas se tivessem arranjado de modo a que num estábulo um dia tivesse nascido um menino” (LISPECTOR, 1982, p.90). Com a alusão bíblica do nascimento de Jesus, Martim agregava um novo significado à sua própria história.
Revitalização auditiva
Simbolicamente, a vaca está ligada à fertilidade, “é a própria essência da renovação e da esperança na sobrevivência” (CHEVALIER e CHEERBRANT, 1988, p.926). Sua proximidade desperta em Martim o vigor sexual, através do qual restabelece de fato o relacionamento com o outro humano. O caminho que o leva à interação afetiva com a mulata, criada da fazenda, é propiciado pela sonoridade do riso espontâneo e constante da mulher que ressoa em Martim como um chamado:
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Mas a mulher ria muito. Na verdade pode-se dizer que ria demais. Sem um pensamento, ele sabia o que significava o riso. E à vezes era como se o riso fosse um mugido: ele então erguia a cabeça atordoado, chamado, poderoso. Mas aguardava. Como se a paciência fizesse parte do desejo, ele aguardava sem se apressar. (LISPECTOR, 1982, p.100).
Apesar do símile que aproxima riso e mugido, o riso é, definitivamente, a expressão de um estado de ser mais complexo e superior (BERGSON, 1983) àquele em que Martim se reconhecia no momento, no cuidado diário com os bichos. Com o riso, a mulata franqueia-lhe a passagem para a experiência humana propriamente dita. A mulata que “ria muito”, “que ria demais”, provoca em Martim uma ação responsiva (Bakhtin, 2010, p.275), lançando-o, enfim, nos limites de uma história:
É que uma pessoa podia se entender toda na mulata. O homem encontrou nela um passado que, se não era seu, lhe servia. O que ela suscitava no homem era ele próprio, Martim mal a olhava, e sabia que ela estava ali. Com ela se podia tratar de homem para homem, só que para chegar a isso ela era uma mulher. (LISPECTOR, 1982, p.101).
A nova experiência aciona seu processo de amadurecimento, lançando-o, de vez, na possibilidade histórica da própria existência, pois só “Então os dias começaram a passar” (LISPECTOR, 1982, p.102). Aos poucos, agora, começa a integrar as referências perceptivas num só conjunto que, posto em perspectiva, lhe dá o esboço de uma visão de mundo:
As vidas individuais ele não as entendia. Mas ao olhá-las em conjunto - a mulata que fora pesadamente sua e que agora enchia o balde com água cantante, Francisco serrando madeira, Vitória corajosa, Emerlinda espreitando, e a fumaça saindo alta da cozinha - isso, ele já pareceu entender como conjunto. (LISPECTOR, 1982, p.103).
A renovação da visão, do olfato, da audição e do tato potencializa em Martim sua natureza sensível, embora ainda o mantivesse num certo nível de imanência física, conferido na imagem que ora se repete com a proximidade da mulata: “Sentia o calor que vinha dela, e assim devia ser; corpo a corpo com o pulso mais íntimo do desconhecido.” (LISPECTOR, 1982, p.101). O movimento seguinte do personagem será no sentido de reconstruir o mundo com o pensamento.
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Ressignificando a história
Com a revitalização dos sentidos, Martim fecha o primeiro grande círculo de sua trajetória e conclui a sua “pré-história pessoal” ao subir a encosta, a propósito de um trabalho exigido por Vitória. Da encosta divisa toda a fazenda e, na clareza dessa visão,
Porque do alto da encosta, a mulher pesquisava o chão, ele inocente e desprevenido reconheceu de súbito o campo como o divisara ao chegar pela primeira vez à fazenda. Daquela vez em que, bêbado da fuga, apoiara-se exausto naquela coisa vaga que é a promessa que é feita a uma criança quando esta nasce. (LISPECTOR, 1982, p.107).
No alto da encosta o homem é tocado pela “pela visão de um mundo enorme que parece fazer uma pergunta. E que parecia clamar por um novo deus que, entendendo, concluísse desse modo a obra de outro Deus.” (LISPECTOR, 1982, p.108). Ali, todo o conhecimento revelado através do corpo começa a ganhar agora a compreensão do pensamento, o mundo que ele avista não está mais isento de significação e exige dele uma linguagem que o codifique. A lição seguinte de Martim será recuperar essa linguagem sem, no entanto, repetir os equívocos do seu velho mundo.
Convencido de que agora tinha uma missão, a de concluir “a obra de outro Deus”, ele concentra todo seu esforço na busca de uma palavra que fosse redentora, projetando reformar a realidade não apenas para si mesmo, mas também para o outro: “Porque acontece que ele queria a palavra.” (LISPECTOR, 1982, p.158). Martim queria a palavra numinosa para recriar o sentido da vida com o mesmo vigor do Logos divino. Na origem grega do termo, além de significar O Verbo de Deus, Logos também é a palavra corrente na conversação, bem como relação, inteligência, senso comum (ISIDRO PEREIRA,1969, p.350). A palavra que Martim buscava era fruto do pensamento lógico, uma vez que lógico indica o “que serve à palavra”.
Pelo pensamento lógico, ele se sente próximo da grande transformação: Então, embebedado de sim mesmo, arrastado pela insensatez a que podia levar o pensamento lógico, ele pensou com tranqüilidade o seguinte: se conseguisse esse modo de compreender, ele mudaria o mundo. (LISPECTOR, 1982, p.160).
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O contexto semântico que liga logos e lógica também congrega luz. A intenção da palavra criadora se manifesta, de fato, sob a reverberação da luz solar:
O sol parado ia se aprofundando cada vez mais dentro dele (...). (LISPECTOR, 1982, p.158).
O sol retorcido queimava sua cabeça deixando-o tranqüilo e louco. (LISPECTOR, 1982, p.159).
A vaidade de Martim acaba sendo estimulada pela visão iluminada do campo, “E cheio de si, rebentando de sol como um sapo, a tarefa lhe pareceu grande e simples (...)” (LISPECTOR, 1982, p.160). Na condição de “novo deus” Martim se deixa “solarizar”, absorvendo para si um poder cuja representação simbólica é o próprio Sol: “Enquanto símbolo cósmico, o Sol ocupa a posição de uma verdadeira religião astral, com as figuras dos deuses-heróis gigantes, encarnações das forças criadoras e da fonte vital de luz e de calor que o astro representa (...)” (CHEVALIER & CHEERBRANT, 1988, p.839).
O sol também representa, na sua contraparte negativa, “o malogro feito de orgulho ou de delírio de poder” (idem, p. 840). Ainda que na tarde clara do campo, quando “tudo rebentava de silêncio” (LISPECTOR, 1982, p.159), não tenha conseguido encontrar a palavra criadora, Martim não desiste e, “Nessa noite, pois, ele acendeu a lamparina, pôs os óculos, pegou uma folha de papel, um lápis; e como um escolar sentou-se na cama (...). E agora, assim como aprendera a calcular com números, dispôs-se a calcular com palavras.” (LISPECTOR, 1982, p.162). É bastante significativo o fato de Martim pôr os óculos, denotando a exigência de acuidade visual. Até então, a única referência aos óculos fora no começo da fuga, quando os apalpou no bolso. Durante todo tempo, porém, prefere ver as coisas a seu modo, evitando a luz direta e aprendendo um jeito de saber sem precisar olhar; desta feita, necessita apurar a visão até otimizá-la com as lentes, a fim de corrigir a imperfeição, ajustando o foco ao alcance comum. Nessa altura, ele perde a maneira própria de ver o mundo, de conhecê-lo a seu modo, nos limites da sua miopia.
Se no primeiro estágio de aprendizagem aquele homem se concentrara no corpo, nesse segundo momento vai se valer do pensamento. O mundo, reorganizado pelo pensamento, acaba por se apresentar diante dele como uma abstração, que nenhuma palavra poderia concretizar, de modo que Martim volta a experimentar a cisão do corpo com a mente: “E como um velho que não aprendeu a ler ele mediu a distância que o separava da palavra. E a distância que de repente o separou de si mesmo.” (LISPECTOR, 1982, p.164).
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A condição humana é viver em um mundo previamente codificado. Ao homem não é dado verbalizar a realidade com palavras isoladas. Conforme afirma Bakhtin (2010, p.283), “Aprender a falar significa aprender a construir enunciados (porque falamos por enunciados e não por orações isoladas e, evidentemente, não por palavras isoladas).”. Quando Martim procurou codificar a sua realidade, ele o fez buscando novos paradigmas, mas repetindo antigos enunciados. O fracasso dessa tentativa não se deu pelo fato de ele ter usado a “linguagem dos outros”, uma vez que é imperioso usá-la, mas sim pela inadequação entre sua experiência de sentir/pensar. Ainda que a linguagem se apresente sobredeterminada (e justamente por causa disso) há escolhas plausíveis a se fazer, que podem preservar a identidade da pessoa, dentre as quais é possível aquela com que “realizamos de modo mais acabado o nosso livre projeto de discurso”, como propõe Bakhtin (BAKHTIN, 2010, p.285).
Memória sensível
Entretanto, Martim tem a seu favor a memória recente do que foi sua experiência pessoal e solitária, que lhe deu, pouco a pouco, a consciência do próprio corpo, ameaçada então no embate frente à abstração da verdade alheia. Essa memória recente favorece-lhe uma última e definitiva experiência, agora revitalizada por mais um sentido, o gustativo, porém, a experiência não se resume à necessidade imediata do corpo, provocada com o apelo da fome que busca o sabor, mas alcança a dimensão simbólica do espírito com a fome de saber, o que dá à narrativa a conclusibilidade de um projeto discursivo enunciado desde o próprio título: A maçã no escuro. Eis a fala final de Martim: “Em nome de Deus, espero que vocês saibam o que estão fazendo. Porque eu, meu filho, eu só tenho a fome. E esse modo de pegar no escuro uma maçã – sem que ela caia.” (LISPECTOR, 1982, p. 321).
Voltar ao mundo antigo para restaurar a ordem rompida fecha o último grande círculo da trajetória de Martim. Contudo, a circularidade não refaz o equilíbrio anterior, pois o homem que volta não é mais o mesmo que partiu.
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Ele volta com a sabedoria dos iniciados: “Iniciado agora no silêncio - não mais no silêncio das plantas, não mais no silêncio das vacas, mas no silêncio dos outros homens (...).“ (LISPECTOR, 1982, p.392). O conhecido caráter introspectivo da ficção de Clarice Lispector não produz o isolamento de seu personagem numa aventura solipsista; ao contrário, essa é a condição necessária para que o personagem possa encontrar nele mesmo “o homem de todos os homens”, e emergir solidário na consideração do outro, porque, repetindo com Espinosa “o que é bom e útil para um homem, segundo a sua natureza, é bom e útil para a natureza humana como um todo”. Assim é que, ao final do romance, o personagem compreende e aceita, pelo bem de todos, a vigência das regras sociais, embora já não se escravize mais a elas.
REFFERÊNCIAS
ACKERMAN, Diane. Uma história natural dos sentidos. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1992
BERGSON, Henri. O riso. 2. ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1983
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BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 5.ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.
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ECO, Umberto. Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003.
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____. A legião estrangeira. 6 ed. São Paulo, Ática, 1987.
____. Para não esquecer. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo, Martins Fontes, 1994. (Col. Tópicos).
PIRES, Mirian da Silva. O tema do conhecimento na ficção de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997. Tese de Doutorado
Mirian da Silva Pires
Doutora em Literatura Brasileira,UFRJ,1997
Professora Adjunta de Literatura Brasileira,UFRRJ
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