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“Na paz subalterna da de criar figuras” – uma leitura de Amigo e amiga, de Maria Gabriela Llansol
Luci Ruas
Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ
Universidade Gama Filho
luciruas@uol.com.br
Para Jorge Fernandes da Silveira, com quem iniciei o curso de leitura de Maria Gabriela Llansol, na passagem dos seus 40 anos de magistério na UFRJ.
Se vós, que participais neste Curso sem a autoridade de uma biografia, admitirdes, por hipótese, que a morte é uma imagem inflorescente ___________ ela será separada da sua unidade devastadora, de tal modo, que da sua corola em funil cairão bolhas florais, com os hábitos de cortes.
Um dos ouvintes imaginosos deste Curso, com que principiei a leccionar-me a mim mesma.
Perguntou-me se as imagens inflorescentes seriam também imagens curativas.
- Que achas?
O ouvinte participativo, que não achava o desenrolar das linhas deste Curso difícil mas, principalmente estimulante, intuiu logo:
“a rosa da inflorescência” – o que a faz rodar -, é o elo da cura e da beleza. ( LLANSOL.2004,p.159)
“Na paz subalterna da de criar figuras” – uma leitura de Amigo e amiga, de Maria Gabriela Llansol: Propõe-se, neste trabalho, discutir a relação morte/vida no texto intitulado Amigo e Amiga – curso de silêncio de 2004, de Maria Gabriela Llansol. Como se nasce e como se morre parecem ser as interrogações que percorrem o texto, sem querer se esgotar. A certeza de que o homem é um ser-para-a-morte é a força que impulsiona o seu processo de criação, celebrando, na escrita, a idéia de que “ficamos no tempo” para, como aponta João Barrento, “viver o Ser no Tempo de forma plena e múltipla”. Llansol registra, em Amigo e Amiga, a experiência dolorosa de criar uma escritura sem ter o Amigo ao lado, para inscrevê-lo no Tempo, como ausência que se presentifica na “espuma do texto”, gerada pela força da linguagem. Escrito como curso de silêncio, o texto de Llansol move-se como “trilhador de mundos”, “partido em fragmentos”, “flutuando, por impulso do ar”. Desta forma também se vai inscrevendo o Amigo, como matéria textual, mais nada. Todavia, é deste “nada” que se faz a celebração da plena experiência de ser.
Palavras-chave: Literatura portuguesa; contemporaneidade; morte e literatura
“In the subaltern peace of creating images” – a reading experience of Amigo e amiga, by Maria Gabriela llansol: This paper discusses the relationship between death and life in Amigo e Amiga – curso de silêncio de 2004 (Male friend and female friend - a silence path in 2004), by Maria Gabriela Llansol. How one is born and dies seem to be the issues addressed in the novel, but without exhausting them. The awareness that man is a being-toward-death is the force that drives the process of creation, celebrating, in written discourse, the idea that we are “stuck in time”, in João Barreto’s words, “to experience Being in Time, in a full and multiple form”. Llansol records, in Amigo e Amiga, the painful experience of creating a text without the presence of a friend to inscribe him in Time, as the absence that becomes presence in the “foam of the text”, which is generated by the strength of language. Written as a silence path, Llansol’s text unfolds as a “world tracker”, “broken into segments”, “floating, driven by air”. In this way, the Friend is gradually inserted into the narrative as a textual subject, nothing more than this. However, it is out of this “nothingness” that the full experience of being is celebrated.
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Key-words: Portuguese literature; contemporaneity; death; literatureSe escolho este trecho como epígrafe para o trabalho que ora apresento é porque tenho a convicção de que este é o caminho a percorrer, se como leitora (ou como legente) pretendo acompanhar este Curso de Silêncio sobre o qual se desenham as Figuras que vão compor aí o universo de Maria Gabriela Llansol: um urso, um elefante, um cavalo mulher que mergulha na água lustral do mar, uma ave que levanta voo, uma árvore que se vai compondo em ramos que se multiplicam para formar uma alta copa onde a textuante (a escritora) se acolhe em companhia de todos os seus textos e da ausência do amigo, Orfeu dilacerado pelo tempo, desfeito em tempo para acolher-se a uma gruta de onde podem emanar os sinais de um amor que busca vencer as limitações do tempo e os impulsos ambíguos de Eros e Tánatos, para tornar-se ágape. Orfeu dilacerado é A. Nómada (não sei se é delírio, mas esse nómada, cujos passos errantes se fazem ouvir, evoca, em forma anagramática, a palavra mônada, princípio da unidade, da singularidade do ser).
Assim se propõe, portanto, como resumo, este trabalho: discutir a relação morte/vida no texto intitulado Amigo e Amiga – curso de silêncio de 2004, de Maria Gabriela Llansol, que afirmo compor, em prosa poética, um novo cantar de amigo.
A certeza de que o homem é um ser-para-a-morte é a força que impulsiona o seu processo de criação, ao celebrar, na escrita, a idéia de que “ficamos no tempo” para “viver o Ser no Tempo de forma plena e múltipla”. Nesse percurso, Maria Gabriela vive uma jubilosa / dilacerante história de amor construída, segundo um bilhete escrito numa folha de árvore, ao longo de pelo menos quarenta anos. Llansol registra, em Amigo e Amiga, a experiência dolorosa da ausência, ao criar uma escritura sem ter o Amigo ao lado, para inscrevê-lo no Tempo. O texto move-se como “trilhador de mundos”, “partido em fragmentos”, “flutuando, por impulso do ar”. O Amigo é matéria textual, mais nada. Todavia, é deste “nada” que se faz a celebração da plena experiência de ser.
Contrariando a escrita convencional, representativa, em que a narrativa teria o propósito de contar a história de uma vida, Llansol investe na criação de um universo figural. Se o Amigo está morto e o dia começa marcado pelo medo de principiar, a escritora enfrenta-o. O que não pode ser comunicado de viva-voz e face-a-face torna-se confidência lançada “às águas do Curso de Silêncio”, em que as palavras escritas dispõem-se como inflorescências, oferecendo-se à leitura e à possibilidade de criar sentidos.
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A provocação
“Parei longos meses na fotografia que antecede o primeiro capítulo de Amigo e Amiga. Curso de silêncio de 2004. É uma cena fulgor aberta no sorriso de Maria Gabriela Llansol e Augusto Joaquim. Um sorriso andando, alheio à pose. Uma imagem que é já texto, não porque seja parte de qualquer álbum de memórias, mas porque convoca o trajecto sem repouso de uma obra absolutamente singular.” – diz-nos Luís Morão, num texto publicado no “Espaço Llansol”. Concordo, mas apenas em parte, uma vez que a fotografia, mesmo que os fotografados não tenham sido instados a fazer qualquer pose, guarda uma estreita relação com o(s) objeto(s) representado(s). Por espontânea que seja, a fotografia ainda é representação. Outra coisa é o sorriso. Se a fotografia fixa as imagens, o sorriso provoca o intérprete, convocando-o a investigar o que se situa por trás da imagem, aquilo que a câmera, sem revelar, faz pressentir. O sorriso revela as imagens captadas num tempo de ser feliz.
Parei longo tempo para olhar, não a fotografia, mas a capa deste Curso de silêncio, desenhado pelo toque suave ou violento das palavras que compõem as quatro partes em que se escreve – “O golpe” (p. 11 à p. 46), “Delírio em Parasceve” (p.47 à p. 107), “Estere” (p.109 à p. 141) e “Estou bem” (p. 143 à p. 240) – a que se soma uma Adenda, que é como se organiza este texto de Maria Gabriela, publicado em 2006, dois anos depois da morte de Augusto Joaquim, com quem viveu pelo menos 40 anos (ao longo deste trabalho serão utilizadas, para os textos de Maria Gabriela Llansol, as seguintes abreviaturas: AA, para Amigo e Amiga – curso de silêncio 2004, e IQC, para Inquérito às quatro confidências.). A capa se tinge de verde, terra, lilás, incluindo-se aí o azul, a cor do luto de Llansol, vivido em intensidade dramática (o fato de afirmar que a sua história é sem drama e sem consolação não exclui o tom dramático que adquirem algumas cenas, tensamente vividas pela que a si mesma chama “textuante” – outra forma de ser narradora). Esse azul é também, todavia, a cor do espaço para onde levanta voo a ave bordada por uma criança, como se encenasse a “acção suspensa de um acontecimento iminente _________” – diz Llansol –, o da morte – completo eu. O bordado se faz sobre um desenho de Augusto Joaquim.
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E se, nesse texto, depois do “golpe”, do delírio que a prepara para um outro estágio, do sentimento de incapacidade para qualquer ação produtiva, a escritora experimenta a paz subalterna que deriva de uma outra paz – a de criar Figuras -, como leitora tenho o dever de experimentar conferir-lhes sentido. O luto azul aí se confunde com a liberdade de levantar o grande voo que não só materializa a distância do Amigo feito ausência, mas também assegura-lhe um lugar nesse testemunho de dor de quem, saindo da esterilidade provocada pela perda, entrega-se ao poder de criar.
A leitura
Nessa escritura complexa, em que o discurso se faz num ir-e-vir constante, sem que se estabeleça – na aparência – entre as cenas uma relação de causa e consequência, é possível perceber, como afirma Luís Morão, uma espécie de dupla vertente da escrita de Llansol. Primeiro, “a recolha e transfiguração de uma experiência do comum”, do cotidiano experimentado no andar pela rua, no ir à farmácia para comprar remédios, no receber visitas durante a doença do companheiro. Todavia, essa experiência do vivido não chega ao texto com a quotidianidade das coisas comuns, dos objetos decalcados do real, ainda que compareçam a esse real os sentimentos que frequentam as páginas do texto. “Não se pretende um real reconhecível na sua legibilidade imediata, a falsidade de um conhecimento de apropriação, mas o encontro do diverso ou da diferença que cada ser ou situação comporta, aquilo que o vivo tem como potência de sentido e que é a tarefa e a aventura de existirmos”, afirma o crítico. Continuo a citá-lo:
As exigências colocadas por esta aventura inscrevem-se numa demanda filosófica que parte do quadro emancipatório da modernidade, mas que recusa a entropia eco-sociocultural da modernidade tardia. Daí uma segunda vertente, que convoca para um mesmo plano de imanência, e como forças que o intensificam e fazem devir, nomes da convulsão e da abertura da história, nomes como Müntzer, Bach, João da Cruz, Pessoa, mas também a ervilha, a árvore, o cão, qualquer um, qualquer coisa, o movimento de qualquer um e qualquer coisa em cada momento de permanência do universo.(Mourão, 2002Ano, p.)
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Durante o tempo em que me detive na possibilidade de leitura dos dados pictóricos da capa (o que não provoca uma paisagem!!!), avaliei as duas frases que o atiraram para a leitura e que já agora provocam esta minha leitura da narrativa. Encontram-se em Inquérito às Quatro Confidências, livro escrito após a morte de Vergílio Ferreira, do qual se pode dizer que é um diário de homenagem ao grande escritor. Cito-as. A primeira é "Escrevo sem romantismo, sem drama e sem consolação" (p. 69) e talvez resida aí um grande paradoxo, uma vez que, nesse Curso de silêncio dirá que essa é “a maior experiência de dor de uma mulher resistente” (p. 25). Não é possível experimentar a “maior experiência de dor” sem experimentar o dilaceramento e a escritora não foge a essa regra, ao manifestar o desejo de que “nunca mais o amor a atormente” e de “repelir todos os ensinamentos” e fechar-se nas ervas. Este paradoxo leva-me a outro, se o confrontar com outro pensamento de Inquérito às Quatro Confidências segundo o qual "o homem não dispõe de corpo para imaginar o universo, os fins últimos e as razões primeiras, mas (…) está aqui, // caminhando no há que há" (p. 60). Como experimentar tudo isso sem se fragmentar? Talvez a escritora se sustente da idéia de que a história do homem – e, por conseguinte, a do seu amor – escreve-se descontínua na inexorável continuidade do tempo. Somos seres para a morte e um dia seremos surpreendidos pelo fim. Eis a natureza do golpe que dá título ao primeiro módulo desse texto. Dizê-lo, só num Curso de silêncio! Mas à descontinuidade da vida, Maria Gabriela propõe uma alternativa que não me parece frequentar outros textos seus. Como o que se conta é uma história de amor humano no tempo da sua vivência, e como os discursos de amor são sempre fragmentários, escrevendo-se apenas nas suas Figuras - o encontro, a promessa, a carta, o insondável, o recôndito, a ausência (esta definitiva) – Maria Gabriela lança mão de uma estratégia para provocar “o eterno retorno ao mútuo”, já que agora não tem mais ao lado o seu “ambo”.
Faz com que cada um dos 129 capítulos – ou fragmentos – de que se compõe o texto tornem sobre o imediatamente anterior, como em fluxo e refluxo contínuo, fazendo coincidirem as palavras e expressões finais com o inccipit do fragmento – ou capítulo – seguinte. Compõe-se então uma intrincada sintaxe que propõe impedir o término da ação. Além disso, numa carta escrita sem destinatário definido, em meio ao delírio que a faz criar figuras descontínuas,há um tempo simbólicas e evocativas, ela descobre que, apesar de desejar “que o amor não volte mais a atormentá-la” e que esse “sonho desejante” da mulher “é legítimo”, há uma possibilidade de encontrar saída:
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(...) verifiquei que o fulgor estava em mim e que, de modo algum, podia fugir-lhe, ou suspendê-lo. Se o fulgor não abolia os fragmentos, o seu corpo cantante era unidade e unificação, a força de coesão do Há. (LLANSOL, 1996, p. 98)
Descobre a harmonia precária a que chama “a fragilidade do fulgor”. E, como o funâmbulo do Inquérito às quatro confidências, aí deve equilibrar-se. Esse Há, grafado com inicial maiúscula e prova inequívoca do que se consubstancia em forma, em coisa existente, não é, todavia, o que simplesmente se inscreve no tempo para ser. É o Há que se consubstancia num corpo cantante e se reconhece como unidade, capaz de promover a unificação. Assumindo a distância necessária para ver a mulher que se afirma como uma esfinge, portanto, dona de um enigma a decifrar, esse sujeito é o mesmo que, no fluxo constante da escrita, vai nomear o capítulo – ou fragmento – seguinte com o mesmo Há, registrando, logo a seguir: “Ela era a prova final do seu lampejo, escrevi ao fulgor” (p. 99). Observe-se que essa mulher que se descobre como fulgor (“o fulgor estava em mim”) também se reconhece como corpo “cantante”, como o lugar de superação de uma fratura com e contra a qual luta ao longo do processo de construção da sua escritura. Mesmo que falte uma tecla ao piano em que ouviu e/ou entoou cânticos de júbilo, esse corpo se faz ele mesmo capaz de entoar cânticos. Além disso, assume-se como força de coesão.
Ora, ao longo do processo de construção do texto extremamente complexo de Maria Gabriela Llansol, encontra-se uma expressão recorrente, síntese da função que a escritora desempenha no seu ato de escrita: é a expressão “corp’ a escrever” – ela mesma o afirma. Não será, portanto, equivocado afirmar que o corpo cantante que declara o seu poder de coesão frente à ameaça de desintegração e de perda definitiva não é outro senão o corpo textual, que, nesse curso de silêncio, nessas idas e vindas que se verificam ao longo das páginas de aflição e angústia, entoa o que em momento algum é dito ao leitor: um cantar de amigo, em que o eu feminino canta o seu silêncio e a sua clausura, experimentando a espera e a ausência. Enquanto espera, canta e tece um tapete que não se desfaz.
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Nesse tecido não faltam nem as aves do mundo que cantam o amor, nem o desejo de morte pela ausência do amado, nem os ramos da árvore verdejante, nem as “inflorescências” que poderão garantir a cura de um mal orgânico, doloroso e hostil, que impulsiona o desejo de morte. Como a mulher que “seu sirgo tecendo” entoa “cantar de amigo”, Maria Gabriela provoca-nos o que a fiandeira medieval provocou na sua alocutária: que, como quem “avuitor comeu”, deve adivinhar o jogo de mostrar/esconder que se manifesta no cantar.O cantar de amigo ocupa as páginas dessa narrativa, contaminando-a com os traços da forma lírica, constatada na contínua descontinuidade das cenas, tanto aquelas em que o fulgor parece revigorar-se, quanto naquelas em que se revele mais frágil. Na música que acompanha as mesmas cenas, em que o piano parece compor a psalmodia já presente em outro texto. Na construção não propriamente de personagens, mas de figuras que se tornam ativas à medida que são convocadas e se manifestam. Na oscilação contínua dessa voz que ora fala em primeira, ora em terceira pessoa, conforme esteja dentro ou fora dos acontecimentos, mas sempre revelando sua disposição ao leitor atento.
A intrincada forma de montar esse jogo (ela nos fala de um puzzle) aproxima-se do leixa-pren, modo de garantir a continuidade do movimento de pensar e refletir sobre os acontecimentos graves que a tomam por inteiro. Nesse movimento contínuo, o imaginário vai tecendo as “imagens inflorescentes”, derivas do próprio discurso, “imagens curativas”, que a salvem do trauma, conforme as pode interpretar o leitor, sedento do desejo, ou do dever de decifrar, de conferir sentido ao que brota sem ordem ou aparente razão.
Conjunto de cenas inflorescentes, como quer Maria Gabriela, Amigo e Amiga. Curso de silêncio de 2004, é escritura resultante de um processo em que, como nos disse Barthes, se penetra num túnel de amor onde se experimenta o encontro, o júbilo e, no momento da saída, a profunda dor de uma separação insuperável. A memória, entretanto, é capaz de conduzir a uma atitude criativa, que transforma em beleza a dor dilacerante. (Barthes, 1977, p. 16.) Ou, para manter o diálogo com Luís Morão, posso com ele afirmar: “se quisermos colocar as coisas num outro plano, é um teste acerca das possibilidades de a escrita poder continuar a ser vida fazendo-se mesmo ‘em certas circunstâncias de terrível abandono ao irremediável (AA, p. 55)”.
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Resposta ao duro golpe desferido contra a continuidade do amor humano, este curso se revela como o roteiro nada ingênuo ou cotidianamente utilitário ou pedagógico de uma aprendizagem. A de como transformar em discurso o itinerário de uma vida já cumprida para que outra – a vida do discurso literário – venha a existir. “Na condição de discurso amoroso, ele só pode ser enunciado, como afirmou Barthes, “em rajadas de linguagem” que lhe brotam graças a circunstâncias íntimas, aleatórias.” (p. 15) Daí que as “quebras desse discurso” possam ser designadas como figuras, “gestos do corpo captado em ação e não contemplado em repouso”. Sujeito transfigurado em sujeito do discurso, a voz apaixonada de Maria Gabriela pode desdobrar-se em duas: a da textuante, responsável pelo fazer discursivo, e a daquela que não é mais do que figura do enunciado. “As duas vozes são, entretanto, capazes de interlocução, porque afinal o escritor, sujeito histórico, é o que vai buscar, “ao sabor do seu imaginário”, essas figuras, segundo as suas necessidades, seus imperativos ou prazeres”, inscrevendo no corpo textual as marcas deixadas pelos afetos no seu próprio corpo. Daí que, nesse texto, o golpe se transforme em imagens delirantes, convulsivas, caminhando em fluxos (as rajadas de linguagem) para o “estar bem” das páginas finais. Não nos iludamos, porém, ao ponto de imaginar que o discurso de Llansol terá encontrado um repouso, um apaziguamento, uma salvação. Entre a autoridade de quem pode construir uma biografia e a inevitabilidade de criar o discurso figurado, o silêncio desse curso é uma forma permanente de insurreição. Falar aí implica silenciar, assim como “curar” não significa escrever uma história de amor – volto a citar Roland Barthes – como “tributo que o apaixonado deve prestar ao mundo para com ele se reconciliar”. Daí que o discurso produzido tenha muito de romanesco, mas sem romance, e assim se entregue ao leitor. Volto à epígrafe, para lembrar essa cumplicidade necessária entre escritor/escritura/leitor.
O ouvinte participativo, que não achava o desenrolar das linhas deste Curso difícil mas, principalmente estimulante, intuiu logo:
“a rosa da inflorescência” – o que a faz rodar -, é o elo da cura e da beleza.( LLANSOL, 1996, p.159)
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Repare-se que o texto produz outra figura, já mencionada em outros momentos deste trabalho – “a rosa da inflorescência” – modo de distribuir as figuras no corpo do texto. Não é, todavia, uma imagem fixa: rodopia, estimula, provoca (no sentido original de criar a oportunidade da fala), é apenas um “elo” entre o que se pode entender como cura, não para apaziguar, mas para estimular a criação, ou seja, para devolver o apaixonado ao seu trabalho – o de criar realidades, o que o coloca em permanente situação de “perigosa segurança”, como já, disse Camões, ou em permanente estado de vigília. Amigo e Amiga, postos lado a lado na realidade criada pela ausência, compõem, não um romance de amor que “dê conta de toda uma vida”, ou pronunciam a palavra que lhes dê tal conta. Como os trovadores, que “constroem, de fato, uma anedota biográfica para explicar uma poesia”, Maria Gabriela cria uma outra oportunidade de experimentar o amar que “é, aqui, inventado, ‘encontrado’ [‘trovato’] a partir do poetado, e não vice-versa”. (AGAMBEN, 2006, p. 95). Entoam um cantar de amigo, onde o amor pode ser evocado nos seus limites de amor humano, e, portanto, finito. Um jogo que Maria Gabriela, sem o desvendar, enuncia, na confidência que ficou por dizer no diálogo com Vergílio Ferreira, que ora relembro:
A primeira confidência é que nada somos ______ (“Não se irrite”) O eu como nome é nada. Há um lugar de escravidão.
A segunda confidência é que nossos actos, mesmo a transumância ou a transplantação do azul da jarra, são menores que nós. (...)
A terceira confidência é que não há contemporâneos, mas elos de ausências presentes; há um anel de fuga. Na prática, é uma cena infinita – o lugar onde somos figuras.
A quarta confidência é sobre o desejo da repulsa da identidade. (...) De facto, deram-nos um nome, o nome por que nos chamam, mas não é um consistente – é um verbo.
O nosso verbo, por exemplo, é escrever. (LLANSOL, 1996, p. 47)
Talvez se possa dizer dessas quatro confidências que elas fazem a síntese do trabalho apaixonado da escritura – ou de fazer literatura, que é o mesmo. Maria Gabriela, ou Augusto Joaquim, ou Vergílio Ferreira, ou qualquer dos outros nomes que venham a adquirir nos textos que se sobrepõem, como nomes nada significam. Passam a significar quando se fazem elos de uma cadeia de ausências que se presentificam ao se tornarem figuras, resultados do único verbo (a palavra) que lhes coube e pelo qual são chamados: o verbo da sua paixão e do seu pensar – o verbo escrever. Dizia que ficou por fazer a Vergílio Ferreira uma quinta confidência, cujo enunciar é de minha inteira responsabilidade:
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(...) O dia toca-me no cérebro e sinto que “onde eu penso” está alegre, com movimentos amplos que atraem a noite – uma noite subtil – esta, em que o sonho vivo há-de ainda trabalhar delineamentos postos a disposição do ruah.
Como não podia comunicar-lhe [ao agricultor que encontrou no comboio até a Portela] isto de viva voz, e face-a-face, e precisava de um ouvido concreto, lancei esta confidência às águas do Curso de silêncio que certamente há-de encontrar alguém legente que saiba do que falo quando me refiro ao ruah, e ao espírito de encanto das operações divinas.(LLANSOL, 1996, p.244)
Evocar aqui o ruah não garante a qualquer leitor a possibilidade do encontro de um espaço de transcendência, assim como o espírito de encanto das operações divinas não remete a qualquer espaço onde o divino possa se manifestar. Entregar uma confidência ao curso de silêncio corresponde a deixá-la adormecida, em estágio de dicionário, como diria Drummond, indiferente aos significados que a possam submeter, garantindo não a sua escravidão mas a possibilidade de brotar, ou de provocar sentidos, conforme o Fiat que esse leitor – ou legente – pronunciar.
A ultima página deste Curso traz de volta a imagem do anjo – o da anunciação -, que se insinua, ensejando-lhe as palavras finais:
________ a meio da casa [onde se acolhe para receber e produzir o encanto] há um quarto sem plantas ________ porque a luz desce à sua porta; todas as tentativas de aí criar flores ficaram goradas, mas, no entanto, há nele uma paz subalterna ________ que não me deixa terminar a frase. Paz dependente de outra paz, que o quarto procura. Assim dito, me envolvo no silêncio de nem sequer escrever.
Será esta a paz subalterna da de criar figuras? (LLANSOL, 2006, p.245)
O enlevo.
O texto encerra-se em aberto, anunciando a obra inconclusa, que convida à leitura e à nova escritura. O não saber se sobrepõe ao saber e reacende o desejo. A paz subalterna é silêncio libidinoso em busca da “outra paz, que o quarto procura”, desejo reacendido nessa que hoje deve ser o novo funâmbulo, companheira nômada do Augusto Joaquim e do Vergílio Ferreira. Num espaço distante onde podem amar esta língua sem impostura, que foi o seu fazer poético.
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“A experiência do evento da palavra” – diz-nos Giorgio Agamben, “é, [...], antes de mais nada, uma experiência amorosa, e a própria palavra é cum amore notitia, união de conhecimento e amor (...)”. O “parto da mente”, do qual nasce a palavra, é precedido, portanto, pelo desejo, que não encontra paz até que o objeto do desejo seja encontrado”. (2006, p. 93) Talvez seja esta a confidência de leitora – ou “legente”: quem sabe seja esta a realização do que se preparou em Parasceve? Esse morrer contente, que nos deixa como presente a obra intérmina de quem, sem vencer a morte, nos legou o testemunho da sua criação? Que, ao encontrá-la, terá legado ao “legente” a dupla tarefa de ler / escrever, configurando aí o sentido de busca do verbo amar – escrever ?
REFFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Sétima jornada. In: ___. A linguagem e a morte. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2006.
BARTHES, Roland. Aula. São Paulo, Cultrix, 1980.
BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Lisboa, Edições 70, 1980.
LLANSOL, Maria Gabriela. Inquérito às quatro confidências. Lisboa, Relógio d’ Água, 1996.
LLANSOL, Maria Gabriela. Amigo e amiga: curso de silêncio 2004. Lisboa, Relógio d’ Água, 2006.
Luci Ruas
Doutora em Letras vernáculas 1994
Professora Universidade Federal do Rio de Janeiro/Universidade Gama Filho
Pós-graduação Universidade Federal do Rio de Janeiro/ UFRJ
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