Alfarrábios
POLÊMICA ENTRE MACHADO DE ASSIS E EÇA DE QUEIRÓS
Nadiá Paulo Ferreira
Universidade do Estado do Rio de Janeiro/ UERJ
nadia@corpofreudiano.com.br
Lídia Bantim Frambach
Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro
lidiabantim.24@gmail.com

Réplica do original de Teixeira Lopes, 1903, que se encontra na Praça Barão da Quintela, Lisboa, inaugurada a 26 de Julho de 2001.1
Na revista O Cruzeiro, em 16 de abril de 1878, Machado de Assis (Morro do Livramento, Rio de Janeiro, Brasil, 1839, Cosme Velho, Rio de Janeiro, Brasil, 1908), sob o pseudônimo Eleazar, publica uma resenha do segundo romance de Eça de Queirós (Póvoa de Varzim, Portugal, 1845, Neuilly, França, 1900): O Primo Basílio, que começou a ser escrito, em 1874, quando ele é nomeado cônsul em New-Castle-Upon-Tyne, na Inglaterra. Nesse texto, Machado não só afirma que o escritor português aderiu às novas tendências literárias da escola de Émile Zola, mas também que O crime do padre Amaro é uma imitação do romance La Faute de L’Abbé Mouret de Zola.
- 1 -
O crime do padre Amaro é publicado, pela primeira vez, na Revista Ocidental,em 1875. Um ano depois, esse romance é publicado em forma de livro e, em 1880, é reeditado em sua versão definitiva, com o subtítulo Cenas da vida devota. O texto “Idealismo e Realismo”, escrito para ser publicado sob a forma de prefácio, na segunda edição de O Crime do Padre Amaro, é a resposta de Eça às críticas de Machado de Assis. No entanto, só alguns fragmentos são selecionados e publicados com o título “Nota à segunda edição”. O texto integral só será publicado, depois de sua morte, em Cartas inéditas de Fradique Mendes (1879).
IDEALISMO E REALISMO2
Aqui está pois um livro que eu escrevo pela segunda vez! Habent sua fata libelli!
Considerar-se-á talvez que esta reconstrução paciente é uma puerilidade, uma lamentável dissipação de esforço; que, num romance eivado originariamente de defeitos indestrutíveis, não é com adjectivos intercalados, entrelinhas e tiras coladas ao lado, que se melhoram os caracteres mal observados, que se dá luz e cor a paisagens mortas e que se rectificam os desenvolvimentos de uma paixão, erradamente seguidos...
Isto creio que é exacto quando se trata de um trabalho puramente imaginativo, conto de fadas ou novela ideal.
Se eu criei um príncipe encantado ou um galã à Antony, e lhes dei, na minha edição original, cabelos louros e sonhos místicos – não é realmente útil refazer, numa nova edição, o meu trabalho, para dar ao herói cabelos negros e pesadelos carnais. É uma fantasia substituindo outra fantasia. Melhor seria escrever um livro novo, e apresentar o mesmo galã com outro nome, outra barba e outras paixões.
- 2 -
É porém diferente, penso eu, tratando-se de um romance de observação e de realidade, fundado em experiências, trabalhado sobre documentos vivos. Se eu quiser apresentar o tipo de um jogador, e o improvisar com reminiscências de leituras meio esquecidas, e sem mais notas do que aquelas que tenha acolhido uma noite, numa soirée honesta de praia de banhos, vendo primos joviais talharem uma batota doméstica a feijões – arrisco-me a fazer um jogador falso, pueril, vago e convencional.
Mas se, depois, eu frequentei a roleta bem instalada que o Estado patrocina, ou as baixas espeluncas da população do vício, se analisei, observei, colhi em flagrante a paixão, as expressões vivas em plena acção, estou habilitado talvez a pintar um jogador mais real e mais humano; e se, pela graça de um Deus favorável, o meu livro tiver uma segunda edição, eu devo claramente reconstruir o meu tipo com as observações e os documentos que acumulei – exactamente como, num tratado de medicina, um prático introduz, numa segunda edição, os últimos resultados das experiências recentes.
Quando publiquei pela primeira vez O Crime do Padre Amaro, eu tinha um conhecimento incompleto da província portuguesa, da vida devota, dos motivos e dos modos eclesiásticos. Depois, por uma frequência demorada e metódica, tendo talvez observado melhor, eu refiz simplesmente o meu livro sobre estas novas bases de análise.
Quer isto significar que O Crime do Padre Amaro, publicado agora, dá em absoluto, na sua realidade complexa, o padre e a beata, a intriga canónica, a província em Portugal nesse ano da graça de 1879? Oh! certamente que não! O quadro tem infelizmente lacunas, lados de natureza mal estudados, recantos de alma explorados incompletamente, amplificações, exageros de traço... "É, no entanto, toda a soma de observação e de experiência que eu possuo sobre este elemento parcial da sociedade portuguesa. A outros, mais penetrantes e mais hábeis, compete recomeçar este estudo, e decerto com realidade superior.
É por meio desta laboriosa observação da realidade. Desta investigação paciente da matéria viva, desta acumulação beneditina de notas e documentos, que se constroem as obras duradouras e fortes. Se as minhas são fracas e efémeras, é que eu não soube surpreender a verdade com suficiente penetração, e não provém decerto de que o método não seja eficaz.
- 3 -
A arte moderna é toda de análise, de experiência, de comparação. A antiga inspiração que em quinze noites de febre criava um romance, é hoje um meio de trabalho obsoleto e falso. Infelizmente já não há musas que insuflem num beijo o segredo da natureza! A nova musa é a ciência experimental dos fenómenos – e a antiga, que tinha uma estrela na testa e vestes alvas, devemos dizê-lo com lágrimas, lá está armazenada a um canto, sob o pó dos anos, entre as couraças dos cavaleiros andantes, as asas de Eloá; a alma de Antony, os suspiros de Graziela, e os outros acessórios, tão simpáticos mas tão arcaicos, do velho cenário romântico!
O Crime do Padre Amaro recebeu no Brasil e em Portugal alguma atenção da crítica, sobretudo quando foi publicado, ulteriormente, um romance intitulado – O Primo Basílio. E no Brasil e em Portugal escreveu-se (sem todavia se aduzir nenhuma prova efectiva) que O Crime do Padre Amaro era uma imitação do romance do Sr. Zola – La Faute de l'Abbé Mouret – ou que este livro do autor do Assommoir – e de outros magistrais estudos sociais, sugerira a ideia, os personagens, a intenção de O Crime do Padre Amaro.
Eu tenho algumas razões para crer que isto não é correcto. O Crime do Padre Amaro foi escrito em 1871, lido a alguns amigos em 1872, e publicado em 1874. O livro do Sr. Zola, La Faute de l'Abbé Mouret ( que é o quinto volume da série Rougon-Macquart ), foi escrito e publicado em 1874.
Mas (ainda que isto pareça sobrenatural) considero esta razão apenas como subalterna e insuficiente. Eu podia, enfim, ter penetrado no cérebro, no pensamento do Sr. Zola, e ter avistado, entre as formas ainda indecisas das suas criações futuras, a figura do abade Mouret – exactamente como o venerável Anquises, no vale dos Elísios, podia ver, entre as sombras das raças vindouras, flutuando na névoa luminosa do Lete, aquele que um dia devia ser Marcelo! Tais coisas são possíveis. Nem o homem prudente as deve julgar mais extraordinárias do que o carro de fogo que arrebatou Elias aos Céus – e do que outros prodígios provados.
- 4 -
O que, segundo penso, mostra melhor que a acusação carece de exactidão, é a simples comparação dos dois romances. La Faute de l'Abbé Mouret é, no seu episódio central, o quadro alegórico da iniciação do primeiro homem e da primeira mulher no amor. O abade Mouret (Sérgio), tendo sido atacado de uma febre cerebral, derivada principalmente da sua exaltação mística no culto da Virgem, na solidão de um vale abrasado da Provença (primeira parte do livro), é levado para convalescer ao Paradou, antigo parque do século XVII a que o abandono refez uma virgindade selvagem, e que é a representação alegórica do Paraíso. Aí, tendo perdido na febre a consciência de si mesmo a ponto de se esquecer do seu sacerdócio e da existência da aldeia, e a consciência do universo a ponto de ter medo do sol e das árvores do Paradou como de monstros estranhos – erra durante meses, pelas profundidades do bosque inculto, com Albina que é o génio, a Eva desse lugar de legenda.
Albina e Sérgio, seminus como no Paraíso, procuram sem cessar, por um instinto que os impele, uma árvore misteriosa, da rama da qual cai a influência afrodisíaca da matéria procriadora; sob este símbolo da árvore da ciência se possuem, depois de dias angustiosos em que tentam descobrir, na sua inocência paradisíaca, o meio físico de realizar o amor. Depois, numa mútua vergonha súbita, notando a sua nudez, cobrem-se de folhagens; e daí os expulsa, os arranca o padre Arcângias, que é a personificação teocrática do antigo Arcanjo.
Na última parte do livro, o abade Mouret recupera a consciência de si mesmo, subtrai-se à influência dissolvente da adoração à Virgem, obtém por um esforço da oração e um privilégio da graça a extinção da sua virilidade, e torna-se um asceta sem nada de humano, uma sombra caída aos pés da cruz; e é sem que lhe mude a cor do rosto que ele asperge e responsa o esquife de Albina, que se asfixiou no Paradou, sob um montão de flores de perfumes fortes.
E dito isto, parece ficarem indicados e suficientemente lúcidos, os motivos que tenho para não supor O Crime do Padre Amaro uma tradução malfeita da Faute de l'Abbé Mouret. E não insisto na diferença das datas, apesar dela constituir o que se chamava, creio eu, em lógica, uma impossibilidade metafísica, porque sou bom cidadão, e o art. 6.º da Carta impõe implicitamente o dever de não descrer dos milagres. Somente devo dizer que os críticos inteligentes que acusaram O Crime do Padre Amaro de ser apenas uma imitação da Faute de l'Abbé Mouret, não tinham, infelizmente, lido o romance maravilhoso do Sr. Zola, que foi, talvez, a origem de toda a sua glória. A semelhança casual dos dois títulos induziu-os em erro.
- 5 -
Com conhecimento dos dois livros, só uma obtusidade córnea ou má fé cínica poderiam assemelhar esta bela alegoria idílica, a que está misturado o patético drama de uma alma mística, a O Crime do Padre Amaro, simples intriga de clérigos e de beatas, tramada e murmurada à sombra de uma velha Sé de província portuguesa.
– Mas, dir-me-ão indignadamente pessoas bem intencionadas, como se podem produzir tais acusações? – Meu Deus, bem simplesmente. Dos dois livros, a crítica decerto conheceu primeiro O Crime do Padre Amaro, e quando um dia, por acaso, descobriu, anunciado num jornal francês, ou viu numa vitrina de livreiro, a Faute de l'Abbé Mouret, estabeleceu imediatamente uma regra de três, concluindo que a Faute de l'Abbé Mouret devia estar para O Crime do Padre Amaro como a França está para Portugal. Assim achou sem esforço esta incógnita: PLAGIATO! Ou ainda, o que é mais provável, e mais grato ao Sr. Zola, conhecendo já a Faute de l'Abbé Mouret, apenas viu anunciado O Crime do Padre Amaro, estabeleceu logo a mesma regra de três, com os termos invertidos – e achou a mesma incógnita: PLAGIATO! Sic itur ad abyssum!
Mas parece que esta Faute de l'Abbé Mouret, tem sido para mim uma vasta e rica mina de arte, de onde eu vou, todas as manhãs, desenterrar a minha provisão de caracteres, de paisagens, de imagens e de adjectivos. Assim fui amargamente acusado de ter copiado o Paraíso do Primo Basílio, do Paradou, da Faute de l'Abbé Mouret. O Paraíso, se por acaso leram e se lembram daquele meu livro, é um terceiro andar barato, para os lados da Bemposta, alugado ao mês, onde uma senhora e um cavalheiro se vão amar duas vezes por semana, do meio-dia às três. O Paradou, como já disse, é aquela vasta e maravilhosa floresta, onde erram, quase nus, Sérgio e Albina, procurando, num instinto amoroso, a árvore iniciadora da ciência!
–Mas então – dir-me-ão ainda – onde está a imitação?
- 6 -
–Pois não vêem? Para-dou, Para-íso – há evidentemente plagiato nas duas primeiras sílabas !
Que isto não pareça provir de um espírito rebelde e irreverente para com a crítica. Ninguém a respeita mais do que aqueles que fazem obras de observação e de realidade.
Os românticos (como confessa Sainte-Beuve) odiavam a crítica, e com razão, pelo mesmo motivo por que os monarcas absolutos detestavam a opinião pública. Para os românticos, a poesia ou a prosa desciam directamente da inspiração, como o direito dos reis descia directamente de Deus. O crítico, simples raciocinador, não tinha direito a achar defeitos ou mesmo a examinar de perto o que a inspiração, a musa, mandavam lá de cima a um Musset ou a uma George Sand. A poesia era um presente divino. O crítico, não iniciado, não podia avaliar pelas regras triviais do senso comum aquilo que cantava ou declamava um homem que vivia em comunicação permanente com o ideal. O poeta, o artista, o romancista, eram assim seres excepcionais, fora da lei e da regra humana, eleitos, formando uma legião de seres entre o homem e o anjo! A sua vida mesmo não participava das condições humanas:
Aimer, prier, chanter, voilà toute ma vie...
diz Lamartine! Pode compreender-se a sua irritação quando um Cuvillier-Fleury, um Pontmartin, um Planche, pretendiam julgá-lo pelas leis razoáveis com que julgavam os outros homens.
– Nós somos cristos! – exclamava Novalis. – E um Cristo suporta mal um folhetim hostil...
Nós, porém, burgueses que não vivemos em comunicação permanente com o ideal, que nunca recebemos o beijo da musa, a quem a forma aérea jamais disse:
Poète, prends ton luth et me donne un baiser...
nós, homens, consentimos em ser julgados por homens. Estudando a realidade humana e social, aceitamos como um favor um conselho, uma prática, todas as admoestações daqueles que, vivendo na humanidade e na sociedade, têm uma experiência própria dessas realidades.
- 7 -
E isto não é só respeito pelos críticos, pelos príncipes da crítica, pelos seus gros bonnets, os ditadores da opinião, os especialistas – e de qualquer homem, o mais obscuro, ainda que nunca escrevesse uma linha, podemos aceitar indicações preciosas.
Quando se trata de eloquência ou de retórica, decerto só se pode admitir o crítico que conheça estas artes ilustres. Mas quando escrevemos de paixões ou de vícios, todo aquele que os sentiu, ainda que os não saiba exprimir, pode julgar-nos e apontar-nos o erro. Só um poeta sabe apreciar Graziela, obra de eloquência lírica, mas um simples carpinteiro pode discutir o Assommoir, obra de realidade social.
Eu, por mim, adoro a crítica: leio-a com unção, noto as suas observações, corrijo-me quando as suas indicações me parecem justas, desejo fazer minha a sua experiência das coisas humanas.
Foi por ocasião do aparecimento destes meus livros, O Crime do Padre Amaro e O Primo Basílio, que se começou a falar em Portugal no Realismo e numa outra instituição que me dizem chamar-se a ideia nova. Ora o meu nome tem sido geralmente, em Portugal e no Brasil, associado a este realismo e a esta nova instituição. Designo-a pelo nome genérico de instituição, porque ignoro se é uma nova arte, uma nova política, uma nova religião ou uma nova filosofia; não sei mesmo se não será um novo clube ou uma companhia de seguros! Não creio que tivesse nascido em França, em Inglaterra ou na Alemanha, as três grandes nações pensantes. Suponho que é de origem portuguesa e inteiramente local. Ignoro os seus fins, o seu programa, os seus métodos, se já lançou, como é do estilo, a sua carta aos Coríntios e se nos traz alguma nova concepção do Universo!
Contudo, eu sou, nos documentos que tenho presentes, designado como «um dos seus chefes». Deduzo pois que há outros – talvez sete, como diante de Tebas! Num livro de versos que recebo agora, comentado por um mestre douto e amado, leio, a pág. 2, que «Lisboa recebeu com Hossanas os pregoeiros da ideia nova». Concluo que tivemos, como outros quaisquer, a nossa entrada triunfal em Jerusalém, e vejo daqui a nossa estimável estação dos Caminhos de Ferro, sonora de cantos e verde de palmas!... Em todo o caso, parece que foi breve o dia das alegrias e dos risos, porque um jornal recente me diz: «Aí estão, pois, aos golpes desse prodigioso atleta, prostrados por terra e mordendo o pó, os da ideia nova!» Concluo que fomos derrotados por um monstro solitário, um ser disforme no género de Polifemo ou do amante de Ônfale, e que, dos da «ideia nova», como da ala dos cavaleiros saxónios depois da jornada de Hastings, não resta mais do que um estendal de cadáveres, sobre que pairam os corvos de Usk!...
- 8 -
Tal foi a vida breve e morte trágica de uma ideia nacional que, segundo os jornais me afirmam, nos custou a vida, a mim e aos outros chefes!...
Eu sou pois associado a estes dois movimentos, e se ainda ignoro o que seja a ideia nova, sei pouco mais ou menos o que chamam aí a escola realista. Creio que em Portugal e no Brasil se chama realismo, termo já velho em 1840, ao movimento artístico que em França e em Inglaterra é conhecido por «naturalismo» ou «arte experimental». Aceitemos porém realismo, como a alcunha familiar e amiga pela qual o Brasil e Portugal conhecem uma certa fase na evolução da arte.
Este movimento tem encontrado em Portugal grandes hostilidades. Também no Brasil (não o digo sem algum despeito patriótico), se tem combatido o realismo com um talento superior e com ideias.
A opinião, porém, que os nossos inimigos fazem deste movimento literário, parece ser a seguinte: «Que é uma «escola» e se chama a escola realista. Que foi o Sr. Zola que a inventou, um belo dia, em Paris. Que o seu fim é pintar com minuciosidade quadros obscenos. E, finalmente, que tem uma retórica especial, abstrusa, torturada, rutilante, sem gramática e sem vernaculidade!»
É-me desagradável afectar um tom pedagógico e vir dar um desmentido autoritário a estas afirmações de pessoas estimáveis...
Mas na realidade o naturalismo nem foi inventado pelo Sr. Zola, nem consiste em descrever meticulosamente obscenidades, nem tem retórica própria, nem sobretudo é uma escola!
- 9 -
Em Portugal sempre houve uma tendência tenaz para subdividir a arte em escolas – o que prova, de resto, uma literatura de gramáticos e retóricos. Inventámos assim toda a sorte de escolas literárias – mais, certamente, em número, do que as de instrução primária! Chegámos a ter a escola de Lisboa, a escola de Coimbra, a escola de Castilho... coisas que nos parecem hoje tão antigas como o rapto de Helena ou as façanhas do impetuoso Ájax. Ainda conservamos, porém, as grandes escolas: clássica, romântica, satânica, elegíaca, e toda a sorte de confrarias das letras, isoladas em cubículos e celas, separadas por paredes-mestras : o cubículo de Boileau, o cubículo de Lamartine, o cubículo de Byron, o cubículo de Petrarca... Até o subtil e fino Baudelaire tem o seu cubículo! E aqueles grupos inimigos, arreganhando-se o dente, uns usando a cabeleira de Racine, outros o capacete de Percival, outros os cornos de Satã, outros a frauta pastoril de Semedo, ali vivem sepultados nas suas prosódias rivais, murando-se dentro delas, como o anão chinês dentro do seu vaso de porcelana...
Agora, temos a escola realista !
Não – perdoem-me – não há escola realista. Escola é a imitação sistemática dos processos de um mestre. Pressupõe uma origem individual, uma retórica ou uma maneira consagrada. Ora o naturalismo não nasceu da estética peculiar de um artista; é um movimento geral da arte, num certo momento da sua evolução. A sua maneira não está consagrada, porque cada temperamento individual tem a sua maneira própria: Daudet é tão diferente de Flaubert, como Zola é diferente de Dickens. Dizer «escola realista» é tão grotesco como dizer «escola republicana». O naturalismo é a forma científica que toma a arte, como a república é a forma política que toma a democracia, como o positivismo é a forma experimental que toma a filosofia.
Tudo isto se prende e se reduz a esta fórmula geral: que fora da observação dos factos e da experiência dos fenómenos, o espírito não pode obter nenhuma soma de verdade.
Outrora uma novela romântica, em lugar de estudar o homem, inventava-o. Hoje o romance estuda-o na sua realidade social. Outrora no drama, no romance, concebia-se o jogo das paixões a priori; hoje, analisa-se a posteriori, por processos tão exactos como os da própria fisiologia.
- 10 -
Desde que se descobriu que a lei que rege os corpos brutos é a mesma que rege os seres vivos, que a constituição intrínseca de uma pedra obedeceu às mesmas leis que a constituição do espírito de uma donzela, que há no mundo uma fenomenalidade única, que a lei que rege os movimentos dos mundos não difere da lei que rege as paixões humanas, o romance, em lugar de imaginar, tinha simplesmente de observar. O verdadeiro autor do naturalismo não é pois Zola – é Claude Bernard. A arte tornou-se o estudo dos fenómenos vivos e não a idealização das imaginações inatas...
É fácil deduzir daqui que não foi o Sr. Zola o inventor do natutalismo. Ele é decerto uma forte e grande personalidade que deu ao movimento um grande e forte impulso. Ninguém como ele, nos seus escritos, o tem defendido e desprendido melhor do vago de teoria – e sejam quais forem os seus defeitos, o homem que escreveu o Assommoir ficará como um dos mais prodigiosos artistas deste século de artistas. Mas seria tão absurdo dizer que ele inventou o naturalismo, como dizer que Gambetta inventou a democracia!
Neste século, porém, no período científico do naturalismo, o Sr. Zola teve precursores ilustres: antes dele, estão os Goncourts; antes dos Goncourts, Flaubert, Taine e Sainte-Beuve – (porque o método do crítico penetrante que estuda um romancista, não difere do método do romancista que estuda um personagem) – e antes destes, havia ainda Stendhal, e ao lado dele, Balzac, e no século passado, Molière... Não me obriguem a remontar até Homero!... É verdadeiramente uma genealogia ilustre!
Mas, dir-me-á o leitor – o verdadeiro leitor, o cidadão que não é letrado nem teórico, mas simplesmente um ser impressionável, um átomo do grande público, que é no fim de tudo quem faz a arte – em que consiste pois esse famoso naturalismo? Que tenho eu com isso? Que posso eu lucrar com essa descoberta? Em que me interessa ela? Em que me educa, me diverte, me mostra a sua superioridade sobre a velha novela idealista? Porque me querem forçar a comprar o Sr. Zola, em vez de levar o meu dinheiro ao Sr. Júlio Sandeau?
- 11 -
Ora aqui tens, meu caro concidadão: supõe que tu queres ter na tua sala a imagem de Napoleão I passando os Alpes (estas fantasias são-te permitidas: a parede é tua, e podes cobri-la de escarros ou de figuras imperiais; são coisas que ficam com a tua consciência e com o Deus severo que te há-de julgar um dia). Que fazes tu? Chamas dois pintores: um que é idealista e que vem com a sua grenha, o seu casaco de veludo e o seu chapéu de aba larga, e outro que é realista, e que vem, como tu, de chapéu alto, com a sua caixa de tintas debaixo do braço. Dás-lhes o teu assunto e vais aos teus negócios.
E aqui está o que se passa na tua ausência sobre a tua parede:
O pintor idealista arregaça as mangas e brocha-te imediatamente este quadro: um píncaro de montanha; sobre este píncaro, um cavalo com as proporções heróicas do cavalo de Fídias, empinado; sobre esse cavalo premindo-lhe as ilhargas, Napoleão, de braços e pernas nuas, como um César romano, com uma coroa de louros na cabeça. Em volta, nuvens; em baixo, a assinatura.
Dir-me-ão: é falso! – Como, falso ? Este quadro foi, creio que é ainda, uma das jóias do Museu do Luxemburgo.
Durante esse tempo, o pintor realista, tendo lido a história, consultado as crónicas do tempo, estudado as paisagens dos Alpes, os uniformes da época, etc., deixou na tua parede o seguinte quadro: sob um céu triste, um caminho escabroso de serra; por ele, resfolgando e retesando os músculos, sobe uma mula; sobre a mula, Bonaparte, abafado em peles, com um barrete de lontra e óculos azuis por causa da reverberação da neve, viaja, doente e derreado ...
Qual destes quadros escolhes tu, caro concidadão? O primeiro, que te inventou a história ou o segundo, que ta pintou? O idealista deu-te uma falsificação, o naturalista, uma verificação. Toda a diferença entre o idealismo e o naturalismo está nisto. O primeiro falsifica, o segundo verifica.
Dir-me-ás talvez: mas isso é simples matéria de acessório, de decoração! E quando se trata de pintar a alma, o ser interior...
- 12 -
– Perfeitamente, aqui tens outro exemplo: Suponho (tudo é permitido a uma alma como a tua, amante da arte e curiosa da vida), suponho, digo, que se trata de te descrever uma menina que mora ali defronte, num prédio da Baixa.
Apresentam-se dois novelistas – o idealista e o naturalista. Tu dás-lhes o teu assunto: uma menina que se chama Virgínia e que habita ali defronte.
O idealista não a quer ver nem ouvir; não quer saber mais detalhes. Toma imediatamente a sua boa pena de Toledo, recorda durante um momento os seus autores, e, num relance, cria-te a menina Virgínia deste modo: na figura, a graça de Margarida; no coração, a paixão grandiosa de Julieta; nos movimentos, a languidez de qualquer odalisca (à escolha); na mente, a prudência de Salomão, e nos lábios, a eloquência de Santo Agostinho...
Dir-me-ão: é mentira! – Como, mentira? Vejam a criação da Morgadinha dos Canaviais, um romance, e feito pelo talento delicado e paciente de Júlio Dinis, o artista que entre nós mais importância deu à realidade. E todavia a sua Morgadinha é bem extraordinária. Ali está uma burguesinha da serra, vivendo na serra, educada na serra, e querendo ser a personificação da mulher da classe média em Portugal: ama com a sinceridade heróica de Cordélia; tem com os sobrinhos o tom de maternidade romântica da amante de Werther; pensa, em matéria de moral, com a altivez de Bossuet; fala da natureza com o colorido místico de Lamartine; junta a isto, em intrigas sentimentais, a finura das duquesas de Balzac – e quando fala de amor, julgamos ouvir Rousseau declamar. Sem contar que tudo quanto diz, de poesia, de arte ou de religião, é de Chateaubriand!...
Mas voltemos à nossa Virgínia, que mora ali defronte. É agora o nosso escritor naturalista que a vai pintar. Este homem começa por fazer uma coisa extraordinária: vai vê-la!...
Não se riam: o simples facto de ir ver Virgínia quando se pretende descrever Virgínia, é uma revolução na arte! É toda a filosofia cartesiana: significa que só a observação dos fenómenos dá a ciência das coisas. Este homem vai ver Virgínia, estuda-lhe a figura, os modos, a voz; examina o seu passado, indaga da sua educação, estuda o meio em que ela vive, as influências que a envolvem, os livros que lê, os gestos que tem – e dá enfim uma Virgínia que não é Cordélia, nem Ofélia, nem Santo Agostinho, nem Clara de Borgonha – mas que é a burguesa da Baixa, em Lisboa, no ano da graça de 1879.
- 13 -
Caro concidadão, a qual dás tu a preferência? O primeiro mentiu-te. A Virgínia que tens diante de ti é um ser vago, feito de frases, que não tem carne nem osso, e que, portanto, não pertencendo à humanidade a que tu pertences, não te pode interessar. É uma quimera, não é um ser vivo. O que ela diz, pensa ou faz, não te adianta uma linha no conhecimento da paixão e do homem.
Uma tal Virgínia não pode ficar como documento de uma certa sociedade, num determinado período: é um livro inútil.
Tens diante de ti uma moeda falsa.
O segundo dá-te uma lição de vida social: põe diante dos teus olhos, num resumo, o que são as Virgínias contemporâneas; faz-te conhecer o fundo, a natureza, o carácter da mulher com quem tens que viver. Se a Virgínia, em conclusão, não é boa – evitarás que tua filha seja assim; podes-te acautelar desde já com a nora que te espera; é-te lição no presente, e, para o futuro, ficará como um documento histórico.
É uma verificação da natureza.
E aqui tens, caro concidadão, reduzido a fórmula familiar, ao alcance da tua compreensão e despido de névoas filosóficas, o que é o idealismo e o que é o naturalismo, na pintura, no romance e no drama.
Eça de Queirós, Brístol, 1879.
(QUEIRÓS, Eça de. Cartas Inéditas de Fradique Mendes. Porto: Lelo & Irmão, 1929, p. 161 -179).
- 14 -
1No Chiado (Lisboa), descendo pela Rua do Alecrim, em direção ao rio, chegamos ao Largo Barão de Quintela: em um pequeno jardim com palmeiras, temos uma escultura de pedra, em homenagem a Eça de Queirós, inaugurada em 1903, três anos depois da morte do escritor. António Teixeira Lopes (1866-1942), autor da escultura, coloca junto com o escritor, uma figura feminina, como símbolo da verdade. A legenda inscrita refere-se à posição de Eça com a verdade: "sobre a nudez da Verdade o manto diáfano da Fantasia". Durante um século essa obra ficou à mercê de vândalos, sendo paulatinamente destruída. Enfim, a escultura de pedra foi transportada para um museu para ser restaurada e uma réplica em bronze foi feita e colocada na Praça Barão da Quintela.
2Optamos pela grafia e pontuação originais.