O Marrare número 15
Homenagem ao prof. Dr. Leodegário A. de Azevedo Filho

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A MORTE ENQUANTO LUTO DA VIDA

Antônio Sérgio Mendonça
Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFF
Universidade do Estado do Rio de Janeiro/ UERJ
asm@celacan.com.br

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O soneto camoniano, em pauta, graças aos estudos iniciados por Emmanuel Pereira Filho e consolidados hoje por Leodegário A. de Azevedo Filho, pode ser dito como pertencente ao corpus possibile (quanto à questão da autoria) e nos leva, de início, a três conclusões, e isto parece, sem dúvida, um paradoxo temporal... .

a) Por causa da existência de dupla conexão cultural, ou seja, da hiperdeterminação entre a raiz bíblica da tradição tardo-gótica e de sua inclusão na forma fixa do soneto clássico de pendor quinhentista, estaremos, sem dúvida, diante da fusão entre algo místico de natureza judaica e algo ático se formalmente considerado. No entanto, além disso, a presença clássica se ampliará, pois nele (soneto) estará também uma ática e trágica (dramatúrgica) concepção singular de discurso melancólico; logo, estamos diante de um texto esteticamente maneirista;

b) Não resta dúvida de que esta concepção de vida não nos remete apenas, como em outros textos do poeta, à brevidade e/ou fugacidade do tempo, mas ao fato de este não justificar-se diante de seu eclipse, de que o poeta se lamenta por não ser prévio, diante de um culto à morte tido como um gozo supremo da sua existência. Isso vai configurar a semântica da concepção singular de discurso melancólico ali apresentada;

c) O tema clássico da VENTURA, primo-irmão semântico da FORTUNA (“tiquê”), dedicados ao vir-a-ser da vida, seja este premonitivo, predestinado ou teleológico, dá, textualmente, enfim, lugar, para além da versão de Juromenha, à melancolização da desventura e não de desgraça. E a melancólica desventura maneirista torna-se o avesso da ventura clássica.

Dito isto, torna-se necessário distinguirmos, em seguida, metodologicamente, o discurso melancólico da melancolia enquanto estrutura psíquica e/ou clínica, visto que, como já afirmamos, o texto poético, a Camões atribuído, restabelece, em ato, uma singular concepção de discurso melancólico.

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Freud, em seu exemplar Luto e Melancolia, irá conceber esta estrutura psíquica como uma estrutura clínica singular que, por apresentar o delírio mórbido em ato, estaria, a seu juízo, mais próxima da psicose. Ali, na lide da aflição, por não ceder mais lugar a angústia, haverá a “colação” no objeto amoroso, que é suposto como tendo sido “perdido para sempre”. O efeito dramático de tal perda irá gerar, em ato, o desinteresse fálico pela vida, mas Freud abriu a possibilidade de fazer-se luto desta entrega mórbida pela refalicização do objeto amoroso perdido. Em suma, o fálico no lugar da perda.

Já Jacques Lacan, em seu seminário dos anos 50, intitulado A Relação do Objeto, irá dar prosseguimento à convicção freudiana de a melancolia ser uma estrutura clínica singular. Ela se distinguiria da psicose, para Lacan “tipificável” apenas, conforme seu seminário “As Psicoses”, pela paranóia e pela esquizofrenia, mas a diz: O MASOQUISMO propriamente dito, onde o Ato de mesmo nome incidiria sobre o sujeito, levando-o ao declínio mórbido e desfalicizante deste mesmo Ato. Esta sua obra, contudo, pertence ao período que Jean-Claude Milner classificou de “Lacan do Classicismo”. Mas, já afetado, parcialmente, por sua teoria do campo do gozo, o aventado campo lacaniano, o psicanalista Serge André em seu livro A Impostura Perversa, tomando o artista francês Céline como referência, vai estudá-la no campo da perversão. Contudo, não do Fetichismo, de quem Lacan já a tinha (Melancolia) distinguido, por dizê-lo um Ato Masoquista incidente sobre (Outro) e não sobre o Sujeito. Ali, por analogia referencial (implícita) com a leitura freudiana de Dostoievski, Serge André aborda a relação Céline: vida e obra. Todavia, se Freud via no tema parricida de Dostoievski, explicitamente no personagem Dimitri de Os Irmãos Karamazov, a questão perversa (maníaca) como ínclita na obsessão parricida, Serge André vê demonstrada na obra de Céline uma concepção melancólica que visava a suprir seu destino maníaco na própria vida real.

Como se vê, ali (na obra de Serge André) vai-se da melancolia (estrutura clínica) para o discurso melancólico no e do artista. Não se trata de sua vida maníaca gerar uma visão melancólica de mundo, e sim, de esta vir “tamponar“, “dublar“, suprir o gozo havido na outra.

Em seguida, já inteiramente imersos no campo lacaniano, surgiram dois trabalhos que iriam vincular de uma vez por todas a melancolia ao campo da perversão, quando, sem abolir as contribuições de Lacan e Serge André, diz-se que havia na sua origem um tipo de VERLEUGNUNG (desmentido) que se abatia sobre a própria referência fálica, ou seja, sobre a freudiana Bejahung (Afirmação Primordial).

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Tal concepção é encontrada nos trabalhos “A Estrutura da Melancolia e seu diagnóstico diferencial” e “Por uma Teoria Lacaniana de Melancolia” de, respectivamente, Rita Franci Mendonça e de nossa autoria (A. S. Mendonça) publicados no livro-texto A Clínica em Lacan, Porto Alegre, Edições do C. E. L, 2002. Lá, também, se irá distinguir a MELANCOLIA (uma estrutura clínica singular) não só do discurso melancólico, mas também da melancolização, um efeito melancólico das neuroses e da psicose. Como exemplo dos primeiros veremos a suposição de “decepação fálica” na Obsessão e de “decepção fálica” na Histeria, enquanto na psicose o efeito da melancolização irá comparecer como um “delírio de auto-hostilidade”.

No entanto, serão a escrita e a mentalidade do Barroco que nos apresentarão as mais típicas concepções do discurso melancólico, presente tanto no texto poético de um Quevedo, no nível do Barroco Ibérico, ao hiperdeterminar o gozo místico à morbidez da vida, quanto no “dramalhão” (“Trauspiel”) Barroco Alemão que, no ver do esteta Walter Benjamin, alegorizou a melancolia ao apresentar a amada como coisa-morta enquanto requisito para, valorizando-a esteticamente, fazer luto poético dessa mesma morte junto ao leitor. Nelas isto foi demonstrado plenamente.

Já no século XIX, pulando-se de propósito a camoniana contribuição quinhentista, a Melancolia bovárica, fosse romântica, realista e/ou naturalista, adviria como um vir-a-ser na histérica “decepção fálica” enquanto face teleológica do “morrer de amor”.

Mas nenhuma destas atribuições, quer clínicas, quer estéticas, é idêntica ao exemplo atribuído a Camões. Ali, porque de raiz clássica também se trata, se redenomina o tragicismo dramático de Édipo (o que não pediu para nascer), que estava, sem dúvida, na origem da conversão do drama clássico em cristão e que Lacan denominará, através de Paul Claudel, de tragédia cristã por conceber o luto como reconciliação da perda trágica (da “causa perdida”, onde se teria a vigência do “Pai Humilhado”). Assim, em nosso seminário inédito (CEL/RS, POA, 2005), no capítulo “A Estético-Erótica do Luto” dizíamos, ao separar o discurso melancólico, enquanto modalidade, em Ato, de sublimação estética, da melancolia quando clinicamente tomada: “Enquanto isto, do ponto de vista do fundamento estético da sublimação, trata-se de uma segunda, nova e singular alusão ao culto de impossibilidade do gozo. Ela é a Fortuna (“tiquê”) deste encontro faltoso” ("para Camões entre a morte e a vida cuja letra ‘morta’ é ali representada", cf. p. 33 do original). Ou seja, a obra poética camoniana, no soneto em pauta, propõe seu ato como luto da vida na afirmação do culto à morte. Por isto, também, afirmávamos noutro capítulo do mesmo seminário já então intitulado “Mais Ainda Sobre o Amor” (cf. p. 47 do original):

“(...) O luto que agora (inclusive, premonitivamente no soneto dito camoniano) passa a ser requisitado, está a exigir, para a psicanálise, uma nova visão do discurso melancólico. Essa, no entanto, já nos fora indicada pela cultura Ática, quando hiperdeterminava a ventura à morte, daí a desventura, como, também, pelo quinhentismo camoniano. As concepções psicanalíticas anteriores de melancolia, clínicas, inclusive, embora também tenham sido de suma eficácia em seus propósitos e objetivos intensivos, permaneceram insuficientes para a compreensão de uma Estética do luto.”

Em suma, o Luto aqui não é simplesmente da morte, pois foi a escrita da morte que passou a se constituir no luto precoce da própria vida.

Nota: Tal texto pretende ser apenas uma contribuição teórica, tanto no nível de teoria psicanalítica, quanto da teoria da Literatura, ao ensaio de Leodegário A. de Azevedo Filho intitulado “Camões: Um Soneto do Corpus Possibile" – “O dia em que eu nasci moura e pereça”.




Antônio Sérgio Mendonça
Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFF
Universidade do Estado do Rio de Janeiro/ UERJ

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