O Marrare número 15
Homenagem ao prof. Dr. Leodegário A. de Azevedo Filho

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UMA JÓIA DA BIBLIOGRAFIA CAMONIANA

Vitor Aguiar
Universidade do Minho
Vmaguiare silva@sapo.pt



D. José Maria de Souza-Botelho, Morgado de Mateus, ao realizar os minudentes e laboriosos trabalhos de investigação que haveriam de conduzir à sua célebre edição de Os Lusíadas (Paris, na Officina Typographica de Firmin Didot, 1817), foi o primeiro camonista a prestar atenção às informações que Manuel de Faria e Sousa registou no § 27 da «Vida del Poeta» publicada no tomo I da sua edição das Rimas varias de Luis de Camoens (Lisboa, en la Imprenta de Theotonio Damaso de Mello, 1685): «Aviendo, pues llegado el P. a Lisboa el año 1569. el de 1572. publico por médio de la Estampa su Lusiada, aviendosele concedido Privilegio Real en 4. De Setiembre de 1571. Dió con el un gran estallido en todos los oidos, y un resplandor grande a todos los ojos màs capazes de Europa. El gasto desta impression fue de manera, que el mismo año se hizo otra. Cosa que aconteció rara vez en el Mundo; y en Portugal ninguna más de esta. Y porque esto ha de parecer nuevo, y no facil de creer, yo asseguro que lo he examinado bien en las mismas dòs ediciones que yo tengo; por differencias de caracteres; de ortografia; de erratas que ay en la primera, y se ven emẽdadas en la segunda; y de algunas palabras con que mejorò lo dicho». Na «Vida del Poeta» que precede a sua edição dos Lusiadas (1639), não há menção de duas edições ou impressões do poema datadas de 1572, mas, como demonstrei em estudo anterior1, .

Faria e Sousa disseminou ao longo desta obra diversas anotações que demonstram o seu conhecimento da existência de uma «primeira impressão», que denomina «el original», e de uma «segunda impressão», na qual foram emendados lapsos e erros da primeira.

Ao analisar na «Advertencia» e na «Nota I» desta mesma «Advertencia» as diferenças existentes entre alguns exemplares das duas edições de 1572, o Morgado de Mateus coligiu dados ecdóticos relevantes, mas o seu contributo mais valioso para o esclarecimento destas questões está consubstanciado no Supplemento da Nota Primeira da Advertencia, folheto impresso em Paris, em Junho de 1818. O Morgado mandou imprimir tantos exemplares do Supplemento quantos os exemplares da edição -210 exemplares – e atribuiu às páginas do folheto a numeração de 415 a 424, na sequência da paginação da obra impressa na oficina de Firmin Didot, tendo enviado um exemplar a todas as instituições e personalidades que tinham recebido a edição de Os Lusíadas, com a finalidade evidente de o Supplemento ser agregado a cada exemplar da edição. Infelizmente, raros terão sido aqueles que procederam à junção do Supplemento e este, dadas as suas escassas dez páginas, facilmente se extraviou nas bibliotecas públicas e privadas. O exemplar descrito na Collecção camoneana de José do Canto tem 413 páginas, tal como outros exemplares existentes em diversas bibliotecas portuguesas e estrangeiras. As reproduções fac-simile da edição do Morgado de Mateus publicadas pela Livraria Sam Carlos (1972) e pela Livraria J. Carvalho Ribeiro (2000) não compreendem o Supplemento. O exemplar da edição do Morgado conservado na Biblioteca Nacional de Paris apresenta 424 páginas, isto é, tem incorporado o Supplemento. Os exemplares que pertencem à Biblioteca da Casa de Mateus estão também acompanhados do Supplemento.

No arquivo da Casa de Mateus existem as provas tipográficas do Supplemento corrigido pela mão do Morgado, com a emenda de algumas “gralhas”, com duas alterações das variantes do poema e também com duas modificações da redacção do texto do próprio D. José Maria de Souza-Botelho3.

A génese do Supplemento está explicada no início do folheto. Após a publicação da monumental edição da epopeia de Camões, a Biblioteca Real de Paris adquirira na Alemanha um exemplar da edição de 1572 de Os Lusíadas, tendo sido facultado o seu exame ao Morgado de Mateus. Este verificou que o exemplar adquirido pela Biblioteca Real era diverso do exemplar que ele próprio possuía, e que devia à amizade do seu sobrinho Visconde da Lapa, e dos exemplares pertencentes a Lord Holland4 e a António Ribeiro dos Santos, Conservador-chefe da Biblioteca Pública de Lisboa, e em tudo conforme ao exemplar desta mesma Biblioteca, emprestado a D. José Maria pelo bibliotecário José Joaquim da Costa de Macedo

A comparação realizada entre os diversos exemplares conduziu o Morgado a concluir que o seu exemplar, o de Lord Holland e o da Livraria de António Ribeiro dos Santos pertenciam à mesma edição, que denominou primeira edição, e que os exemplares da Biblioteca Pública de Lisboa, da Biblioteca Real de Lisboa e da Biblioteca Real de Paris pertenciam a outra edição, que denominou segunda edição.

O exame comparativo incidiu primeiramente, como era lógico, sobre a portada: «Na primeira, a Tarja he hum tanto mais larga, e quasi nada menos alta que a da segunda: o Pelicano que tem em cima ve-se na primeira com o collo voltado à nossa direita, em quanto na segunda he voltado à esquerda: os filetes das columnas descem na primeira da direita para a esquerda, e vice versa na segunda : os typos deste frontispício são naquella maiores que nesta» (p.415). Pela primeira vez, após dois séculos e meio sobre a edição de 1572 e após terem sido publicadas tantas edições do poema, o Morgado de Mateus atentava na posição divergente, segundo os exemplares, do colo e da cabeça do pelicano! Faria e Sousa, ao contrário do que afirma Jorge de Sena5, não registou nenhuma diferença entre as portadas das «dòs ediciones que yo tengo».

Na sua análise comparativa, o Morgado anotou outras características tipográficas que diferenciam as duas edições : «Na primeira o Alvará contém 34 regras, com a data impressa em lettra redonda, a vinte e quatro dias do mes de setembro. Na segunda tem 33 regras, e na 22 principia a mudar a partição, e acaba com a data assim a XXIj de setembro. Naquella os caracteres italicos da censura são menores que nesta, e pelo contrario os da assignatura do Censor» (p. 416). Poderia o Morgado de Mateus acrescentar que na segunda edição – a edição com o colo e a cabeça do pelicano voltados para a esquerda do leitor – ocorre uma gralha -«volmes» em vez de «volumes» -, que a palavra «titulo» está reduzida à abreviatura «tit.» e que desaparece a palavra «mês» na data do alvará. Existem ainda numerosas diferenças de ortografia tanto no alvará régio como na autorização censória, quase todas indiciando que a chamada segunda edição obedece a um modelo ortográfico mais moderno («virem» em vez de virẽ», «cantos» em vez de «cãtos», «santa» em vez de «sancta», «fe» em vez de «fee», «por» em vez de «per», etc.). Estas diferenças tipográficas e ortográficas e as referidas alterações de redacção permitem concluir que o alvará régio e o parecer censório foram objecto de uma nova composição tipográfica e não apenas de modificações ou emendas pontuais. As modificações da portada devem ter acompanhado esta nova composição tipográfica.

Na continuação do seu exame comparativo, escreve D. José Maria Souza-Botelho que a maior diferença entre as duas edições «consiste, 1º na ortographia, 2º nos erros typographicos, e 3º finalmente em hum muito pequeno numero de palavras mudadas no texto: de tudo o que proseguirei a dar exemplos e annotações» (p.416). Em conformidade com este esquema, o Morgado de Mateus apresenta exemplos das diferenças ortográficas das duas edições, recolhendo exemplos ilustrativos nos dez cantos do poema. Colige, depois, os erros tipográficos, contabilizando 160 erros na primeira edição e 133 na segunda, dos quais 80 estão contidos naquela – por conseguinte, metade dos erros da primeira edição foi corrigida na segunda – e 53 são próprios desta última. Dado o alto número de erros, o Morgado não efectua o seu levantamento completo, apontando em cada canto alguns significativos exemplos. Já em relação às variantes, adopta outro critério: «darei aqui a nota de todas as diversidades que observei» (p.420). Além de o critério distintivo entre erros tipográficos e variantes não ficar esclarecido, acontece que o inventário das variantes apresenta diversas lacunas, nalguns casos importantes. Aponto alguns exemplos:6

Canto II:est. 1, v. 7: «Quando as fingidas gentes se chegárão» (1.ª ed. = D/E); «Quando as infidas gentes se chegárão» (2.ª ed. = S/Ee).

Canto III: est. 8, v.2: «Dos montes Hyperboreos aparecem» (1.ª ed. = D/E); «Os montes Hyperboreos aparecem» (2.ª ed. = S/Ee); est. 68, v.8: «Que a faz fazer aas outras companhia» (1.º ed. =D/E);«Que a fez fazer aas outras companhia» (2.ª ed. =S/Ee).

Canto IV: est. 49, v.1 : «Eis mil nadantes aues polo argento»(1.ª ed. = D/E); «Eis mil nadantes aues pello argento» (2.ª ed.=S/E).

Canto V: est. 53, v.1: «Como fosse cosa impossibil alcançalla» (1.ª ed.=D/E); «Como fosse impossibil alcançala» (2.ª ed.=S/Ee); est.58, v.7: «Comecey a sentir do fado amigo» (1.ª ed. =D/E); «Comecey a sentir do fado imigo» (2.ª ed.=S/Ee).

Canto VI: est. 38 , v.6: «Do Eolo Emisperio está remota» (1.ª ed.=D/E);«Do Eoo Emisperio estâ remota» (2.ª ed.=S/Ee); est 85, v.6: «De quem foge o ensifero Oriente» (1.ª ed.=D/E); «De quem foge o ensifero Orionte» (2.ª ed.=S/Ee).

Canto VIII: est. 11, v.3: «Por quem no Estigio jura a fama» (1.ª ed.=D/E); «Por quem no Estigio lago jura a fama» (2.ª ed.=S/Ee); est. 65, v.3: «Nam causaram, que o vaso da iniquicia» (1.ª ed.=D/E); «Não causaram, que o vaso da niquicia» (2.ª ed.=S/Ee).

Canto IX: est. 30, v.2: «Estão em varias ondas trabalhando»( 1.ª ed.=D/E); «Estão em varias obras trabalhando» (2.ª ed= S/E); est.52, v.6: «Tomassem porto, como desejava» (1.º ed.=D/E); «Tomassem perto, como desejava» (2.ª ed.=S/E); est.86, v.5: «Pera lhe descobrir da vinda esphera» (1.ª ed.=D/E); «Pera lhe descobrir da unida esphera» (2.ª ed. =S/Ee); est. 91, v.2: «Por feitos mortais e soberanos» (1.ª ed.=D/E); «Por feitos imortais e soberanos» (2.ª ed.=S/Ee).

Canto X: est. 59, v.4: «Que de imigos mil vera qualhado» (1.ª ed.=D/E); «Que de inimigos mil verâ qualhado» (2.ª ed.=S/Ee); est. 87, v.6:«Co largo cinto douro, que estrellantes» (1.ª ed.=D/E); «Co largo cinto douro, que estellantes» (2.ª ed.=S/Ee); est. 126, v.5: «Ve nos remotos ventos outras gentes» (1.ª ed.=D/E); «Ve nos remotos montes outras gentes»( 2.ª ed. =S/Ee).

Apesar destas e doutras ligeiras lacunas, o Supplemento da Nota Primeira da Advertencia, como justamente sublinha o Morgado de Mateus, efectua pela primeira vez a colação entre as chamadas duas edições de Os Lusíadas datadas de 1572, desde a portada, o alvará régio e o parecer censório até às variantes disseminadas no poema. Tal como Faria e Sousa, o Morgado concede maior crédito à edição com o colo e o bico do pelicano voltados para a direita, conjecturando que o Poeta tenha entregue para a impressão o manuscrito autógrafo do poema – que poderá ter vendido, bem como o privilégio real, a algum livreiro -, mas que não corrigiu as suas provas e que não foi responsável pelas alterações tipográficas e pelas variantes introduzidas na segunda edição. São conjecturas de difícil corroboração ou refutação. É possível, todavia, que Camões não tenha revisto as provas tipográficas da primeira impressão, uma vez que nela ocorrem alguns erros graves, mas é verosímil que o Poeta ou um revisor qualificado tenham intervindo na impressão ulterior, corrigindo erros manifestos daquela (embora deixando passar alguns e introduzindo outros novos).

Notas

1Vítor Aguiar e Silva, «A “guerra dos pelicanos”: O problema textológico da edição princeps de Os Lusíadas», A lira dourada e a tuba canora : Novos ensaios camonianos, Lisboa, Livros Cotovia,2008, pp. 25 ss.
2SJosé do Canto, ao terminar a sua apreciação da edição do Morgado de Mateus, escreveu o seguinte: «Depois de publicada a esplendida edição, fez imprimir o Morgado de Matteus uma nota comparativa da maior parte das differenças que se encontram nas duas edições com a data de 1572, que anda geralmente separada da obra principal, e é a seguinte : - Supplemento da Nota primeira da Advertencia. Datada de Paris. Junho de 1818. In folio de pp. 10, começando a numeração de 415 a 424» (Collecção camoneana, Lisboa, Imprensa Nacional, 1895, p. 17, col. 34).
3Agradeço à Dr.ª Fernanda Gonçalves, ao Dr. Henrique Barreto Nunes e ao Doutor. Armando Malheiro terem-me proporcionado o conhecimento das referidas provas tipográficas.
4Foi através do seu enteado, Charles de Flahault, general bonapartista exilado em Londres, que o diplomata Lord Holland emprestou o seu exemplar de Os Lusíadas ao Morgado.Este exemplar é célebre, porque no verso da página do título apresenta uma anotação em castelhano de frei Joseph Indio, na qual este religioso carmelita afirma ter assistido à morte de Camões, num hospital de Lisboa, «sin tener una sauana có que cubrirse» (cf. Aubrey Bell, Luis de Camões, Oxford University Press, Humphrey Milford, 1923, pp. 65 e 143-144). O exemplar de Lord Holland, textologicamente muito valioso, pertence hoje ao Harry Ransom Humanities Research Center da Universidade do Texas, em Austin.
5Jorge de Sena, Trinta anos de Camões, Lisboa, Edições 70, 1980, vol. I, p.190.
6Reproduzo as designações de «1.ª edição» e de «2.ª edição» utilizadas pelo Morgado de Mateus. As siglas equivalentes que aponho àquelas designações são as que figuram na reprodução fac-simile das duas edições datadas de 1572 publicada pela Academia das Ciências de Lisboa (1980): 1.ª ed.=D (pelicano voltado para a direita ou dextra do observador) = E (canto I, est. 1, v.7: «Entre gente remota edificaram»); 2.ª ed. =S (pelicano voltado à esquerda ou sinistra) = Ee (canto I, est. 1, v. 7: «E entre gente remota edificarão»).




Vítor Aguiar e Silva
Universidade do Minho

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