O Marrare número 15
Homenagem ao prof. Dr. Leodegário A. de Azevedo Filho

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PROFISSIONALISMO E DIDATISMO

Monica Rector
University of North Carolina, Chapel Hill, EUA
prector@mindspring.com



Homenagem a Leodegário A. de Azevedo Filho
Se eu pudesse escrever uma carta para o Leo…Olá amigo,
Eu diria:
Olá professor, doutor, filólogo, literato,
Mas estes títulos desaparecem quando os jovens nos julgam velhos e a aposentadoria apaga
nossa identidade, então
Eu diria apenas:
Olá amigo,
.

Este título é permanente. Leodegário era assim. Tocava-se a campainha da casa, ele abria a porta e dizia: Entre, entre. Quanto tempo! Que bom vê-la. Sempre havia um lugar, ou melhor, muitos ao redor da mesa. Nunca faltava um whiskizinho e, lógico, os quitutes da Ilka. O papo rolava. O relógio parava. As palavras se desdobravam em frases, sentenças, num discurso tão variado e infinito quanto a erudição do amigo. Camões estava sempre presente. Não gostava do whisky, mas sua presença era sentida. Da mesa ía-se à sala contígua, onde os livros contavam histórias de muitos séculos e se juntavam uns aos outros numa festa intelectual. Eram os outros amigos sempre presentes, convidando os novos que chegavam a ingressar no círculo da amizade.

Leodegário me ensinou tanto, tantas vezes, sua generosidade era uma dádiva ao compartilhar o conhecimento por puro prazer sem nada pedir ou exigir de volta. Lá pelas tantas o relógio decidia voltar à ativa, era a hora do sono chegar e dos sonhos literários descansarem até o dia seguinte.

palavras suas que serão transmitidas pelos mestres e nos pensamentos dos novos alunos que continuarão a jornada. E quando todos estes se ausentarem, você continuará eternamente presente nas linhas, nos parágrafos, nos textos que o tempo não destruirá.


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E Camões diria:
O cisne, quando sente ser chegada
A hora que põe termo a sua vida,
Música com voz alta e mui sentida,
Lamentos pola praia inabitada.
Deseja ter a vida prolongada,
Chorando do viver a despedida;
E, com grande saudade da partida,
Celebra o fim tão triste jornada.
Todos nós somos o cisne, pois não queríamos o fim de sua jornada.
Amigo Leo, você está aqui, sempre presente.
Saudades.

Profissionalismo
Falar da obra do Prof. Leodegário A. de Azevedo Filho, a quem tomarei a liberdade de chamar pelo primeiro nome, Leodegário, levaria um livro inteiro. Fizemos a opção de escolher alguns textos para comentar certos aspectos e o profissionalismo do autor quanto ao critério da pesquisa, que o tornou um Mestre como M maiúsculo e um pesquisador sem igual. Por isso, mesmo em vida, muitas homenagens já lhe foram prestadas, como a publicação do volume Estudos universitários de lingua e literatura (1993).

Nesta obra, homenagem ao mestre, que conta com a colaboração de inúmeros intelectuais e discípulos de Leodegário (666 pp.), há uma “Apresentacão” primorosa de outro mestre, Antonio Houaiss, que não dispensa elogios à sua arte e pessoa. Esta Apresentação é seguida de um curriculum vitae abreviado, que se destaca pela qualidade e não pela quantidade da obra e do percurso de Leodegário. Sua formação foi variada, e efetuada tanto nacional como internacionalmente. Na carreira universitária os títulos se acumulam quer como docente quer como administrador acadêmico. Suas atividades de magistério incluem os vários graus de formação, até dedicar-se inteiramente ao ensino superior, orientando muitas dissertações de mestrado e teses de doutorado, e participando em múltiplas bancas e concursos públicos. Quanto aos cargos administrativos exercidos, destaca-se, a nível estadual no Rio de Janeiro, seu papel de diretor do INELIVRO, Instituto Estadual do Livro e, a nível federal, o de coordenador geral do PRODELIVRO do Ministério de Educação. Participou em inumeráveis seminários, simpósios e congressos no Brasil e no estrangeiro, afiliou-se a destacadas Associações Científicas e Literárias. Deste curriculum abreviado constam 21 prêmios, incluindo a Comenda da Ordem do Infante Dom Henrique, conferida pelo Governo de Portugal. Os livros e ensaios ultrapassam a centena, dos quais destacaremos apenas alguns. No entanto, Leodegário será principalmente lembrado pelo seu estudo camoniano, sendo possivelmente sua palavra a última e mais respeitada sobre a Lírica de Camões.


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Leodegário foi iniciado na tradicional escola estilística espanhola de Dámaso Alonso. Além de aplicar a teoria, também se desdobrou em fazer um histórico da mesma, como se vê no artigo “Dimensões da estilística”. Preocupado com a linguagem, Leodegário deste cedo percebeu que qualquer narrativa tem como cerne a língua, então a ela se dedicou, enveredando pelos meandros da Filologia e depois da Linguística. Desde o início, não deixa de mencionar o nome de Charles Bally como sendo “o primeiro a colocar a Estilística como ramo da Ciência da Linguagem, ao lado da Linguística” (1984: 211). Mas para Leodegário, a Estilística é a Linguística Sincrônica, aquela “apresenta uma estética explícita”, predominando “a emoção ou reacção subjectiva” (221). Apesar de sua utilidade, o mestre reconhece que, no final do século XX, outras leituras de “interpretação vertical” são métodos mais adequados para a análise literária.

A principal obra de Leodegário é o estudo da lírica camoniana, publicado em vários volumes. São textos estabelecidos à luz da tradição manuscrita, em confronto com a tradição impressa, num total de 7 volumes: 1. História, metodologia e corpus, 2. Sonetos, 3. Canções e odes, 4. Tercetos e oitavas, 5. Éclogas e sextina, 6. Redondilhas, e 7. Glossário.

Trata-se de um trabalho exaustivo, de muita paciência, meticulosidade e erudição – um resgate histórico. Na Introdução, no primeiro volume, discorre sobre a tradição impressa desde as duas edições quinhentistas e vai até a primeira metade do do século XX. A seguir menciona os problemas históricos e metodológicos da lírica e da crítica textual. Depois analisa em detalhes a edição dos textos líricos no século XVI. Enumera o elenco básico das edições, dos manuscritos, salientando o índice do Cancioneiro do Padre Pedro Ribeiro, de Cristovão Borges, de Rhythmas da Biblioteca Nacional de Lisboa, o COD. 4413 – Cancioneiro de Luís Franco Correa, etc. São 21 manuscritos ao todo. Mostra a seguir a análise crítica de critérios anteriores. Aborda as “questões históricas e metodológicas que envolvem o sério problema da lírica de Camões ao longo de quarto séculos” (190). A segunda parte do livro trata da constituição do corpus, mencionando que até então os corpus dependiam de uma tradição impressa duvidosa. Quando aborda o corpus dos sonetos, Leodegário enfatiza que Camões usava o soneto italiano renascentista, mas com um esquema diferencial para os tercetos. Conclui que dos 400 sonetos examinados do poeta, há somente 65 que podem integrar o corpus como incontroversos, 25 que “aguardam o aparecimento de novos manuscritos para a confirmação” (305), 152 sem prova aceitável e 16 com um testemunho tardio do Cancioneiro Fernando Tomás e 6 rejeitados. A seguir, analisa o corpus das Canções. Mostra que das 10 canções atribuídas a Camões, só 9 correspondem ao critério estabelecido. O corpus das Odes é parecido ao das Canções, mas sem commiato (envoi). Das mais de 20 Odes atribuídas ao poeta, Leodegário prova que apenas 6 podem integrar o corpus irredutível. Com relação às sextinas, apenas uma, com base no Cancioneiro do Padre Pedro Ribeiro e/ou no Cancioneiro de Luís Franco Correa, pode ser considerada autêntica. Das 15 composições em oitavas, só 3 podem ser consideradas autênticas, as demais “são apócrifas ou de autoria problemática” (387). Com referência às éclogas, das 16 apenas 5 são consideradas incontroversas. Quanto às redondilhas, das 171, Leodegário apenas considera 37 autênticas. O autor conclúi que dos 133 textos em 8 gêneros podem ser considerados autênticos e incontroversos apenas os seguintes: 65 sonetos, 10 canções , 6 odes, 6 tercetos, 1 sextina, 3 oitavas, 5 éclogas e 37 redondilhas.

No segundo volume da lírica camoniana, Leodegário, como pesquisador consciente e humilde, diz que a sua palavra não é a última palavra sobre a lírica camoniana e que erros pode haver. Cita um texto de Emmanuel Pereira Filho: “Para isso, só há um caminho possível. É, metodicamente, programar o erro. Eis porque falamos de humildade. É preciso ter a resignação beneditina de enfrentar o problema, com plena consciência de que 90% dos esforços serão em vão. Os 10% que restarem, ainda assim só constestáveis a posteriori, será a grande meta e a contribuição que ficará” (1989: IV). Leodegário inclusive sugere uma terceira etapa de trabalho, na qual “devem ser estudados os textos com única e isolada atribuição a Camões”, e de “autoria duvidosa ou com frágil contestação de autoria camoniana” (1989: XIII).

Neste volume, ao analisar cada soneto individualmente, Leodegário segue a seguinte metodologia: 1. Textos (fontes manuscritas, fontes básicas de tradição impressa); 2. Aparato crítico ( tradição manuscrita: genealogia do texto, elenco das variantes na tradição manuscrita, seguido dos versos com respectivos comentários; tradição impressa: genealogia do texto elenco das variantes na tradição impressa, seguido dos versos com respectivos comentários; glossário; leitura crítica do textos das principais edições modernas, seguido de breve anotação ao texto. Termina este volume com considerações gerais sobre a questão ecdótica, linguísitica e literária.

Didatismo
Leodegário como pesquisador organizado, meticuloso e cuidadoso transmite esta mesma responsabilidade para o ensino, os artigos e as obras ligadas à aprendizagem. Ele é ao mesmo tempo didata e autodidata.

Assim, Leodegário mostra a caminhada do/s autor/es e sua relação com as narrativas mais diversas, usando modelos diferentes de análise, segundo a possibilidade e o entorno. Leodegário inicia o leitor em vários conceitos teóricos, em seus usos e diferenciações. Neste percurso, o autor procura um caminho próprio, absorvendo leituras várias e variadas, integrando em sua experiência a vivência cultural e ambiental que tanto enriqueceu sua narrativa, pois a narrativa não é apenas um modo de contar a experiência, mas é um modo de vivê-la. Ao expor seu conhecimento pela narrativa, o leitor penetra os meandros linguísticos e literários e aprende o processo de apreciação e de análise criativa da narrativa.

Vejamos o livro Literatura portuguesa: história e emergência do novo. Este livro de 13 capítulos e de 156 páginas é um curso básico de literatura portuguesa. O professor que optar por usá-lo já encontra a ementa completa para seu curso e os alunos terão um livro de apoio. Mas Leodegário enfatiza que “este livro não é, insistimos neste ponto, nem uma obra didática, nem uma história da literatura portuguesa acabada e completa. É apenas um conjunto de ensaios que procuram surprender alguns momentos representativos da evolução literária em Portugal...” (19). Vários destes ensaios já haviam sido publicados previamente em revistas literárias.

O livro está dividido em cinco partes numa sequência cronológica. Começa na Idade Média e no Renascimento com as cantigas de Pero Meogo, que dão um exemplo do lirismo trovadoresco, seguido do teatro de Gil Vicente. O século XVI focaliza Camões e sua sextina. Para os séculos XVII e XVIII, Leodegário escolhe o discurso literário de Vieira e a “razão importuna” de Bocage. A quarta parte está reservada ao século XIX, escolhendo Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós como seus principais representantes. Finaliza com o século XX, mencionando as revistas literárias e a poesia de Fernando Pessoa, além de abordar a técnica narrativa de Augusto Abelaira, Virgílo Ferreira e Fernanda Botelho. Como o próprio autor diz, ele busca “uma unidade na diversidade” (14) na trajetória da literatura portuguesa através dos séculos. Para nós, o capítulo mais didático e melhor explicado é o referente a Fernando Pessoa e seus heterônimos, juntamente com seu ortônimo. Leodegário, além de dar uma explicação minuciosa da diferença e semelhança entre os heterônimos, ainda representa graficamente seus achados.

Este livro destina-se ao público universitário, que tenha uma base na teoria da literatura, abrindo os olhos do estudante para a forma de fazer um ensaio, com análise crítica literária e linguística, transmitido o que Roland Barthes chamava de “o prazer do texto”.

Esta síntese do profissionalismo e do didatismo de Leodegário é uma homenagem à sapiência do autor, ao conhecimento que legou aos seus leitores, ao incentivo a ler e assimilar sua obra, além da saudades que deixa e para a qual não há palavras.

REFERÊNCIAS
Azevedo Filho, Leodegário A. de. “Dimensões da estilística”. Revista da Universidade de Coimbra 31 (1984): 211-222. ---. Lírica de Camões, 1. História, metodologia, corpus. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984. ---. Lírica de Camões, 2. Sonetos, tomo II. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1989. ---. Estudos universitários de lingua e literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993. ---. Literatura portuguesa; História e emergência do novo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro-Universidade Federal Fluminense/EDUFF, 1987.




Monica Rector
Professora, PH. D.
University of North Carolina, Chapel Hill, EUA

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