O Marrare número 14
Confira em O Marrare - Entrevista com Salgado Maranhão: "Poeta é aquele que não sabe ser de outro jeito."

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A QUESTÃO DA SEBENTA

Lídia Bantim Frambach
Organização e seleção
lidiabantim.24@gmail.com

Em 1883, o professor catedrático de História Eclesiástica Portuguesa, Dr. Avelino César Calisto, em uma de suas aulas, referindo-se ao prefácio do livro O perfil do marquês de Pombal (1882), acusa Camilo Castelo Branco de "inteligência mercenária". No mesmo ano, a resposta de Camilo é publicada em o folheto I de A Questão Sebenta pela Livraria de Ernesto Chadron, Porto.
Em 1886, os nove folhetos de A Questão Sebenta são reunidos em Boémia do Espírito, com o título "Sebenta, Bolas e Bulas".
Nessa edição de 1886, Camilo faz uma série de alterações, acrescentando ou eliminando notas, datas, títulos e modificando a redação de alguns trechos.

Foto Camilo Castelo Branco por João Duarte Freitas*





























Alexandre Cabral, o organizador dos dois volumes de Polêmicas de Camilo, afirma que

Foi no último quartel da vida que Camilo Castelo Branco sustentou esta polémica, versando problemas que, em maior ou menor grau, sempre foram da predilecção do seu espírito. Simplesmente, a crença nos dogmas religiosos, que em várias ocasiões manifestou com fervoroso entusiasmo, achava-se de certo modo abalada. Um ano antes, portanto em 1882, havia publicado A brasileira de Prazins, a que se seguiu, em 1886, o seu último romance, Vulcões de lama. Em ambos, a pena adestrada do ficcionista deleita-se a descrever as cenas extravagantes dos exorcismos praticados pelos missionários, assim como as reacções desfavoráveis que tais práticas ocasionaram nas compleições rudes.
(...) Indubitavelmente, na produção dessa época [1882-1886] reflete-se uma posição diversa e, digamos, singular do escritor, como Homem e como Escritor, em face dos fenômenos da vida e das relações sociais (CABRAL, s.d., p.167, v.I).
 

Para esta sessão, escolhemos dois textos da edição de 1886: Camilo Castelo Branco, 2 de abril de 1883, e a resposta do Dr. Avelino César Calisto, 17 de abril de 1883.

Camilo Castelo Branco
Advertência
Nestes artigos contenciosos, a que fui provocado, é fácil entrever os insultos e as ignorâncias a que respondo. Como aparei em pleno peito os dardos todos, aí estão bem assinalados, na réplica, os estragos do ferro. O leitor compreenderá o tamanho da injúria pelo diâmetro da desafronta. Reimprimo estas contraditas a libelos crudelíssimos, pois ambiciono que os futuros infelizes das letras aprendam de mim a sofrer mas também a reagir, a não tombar aos primeiros encontrões de inimigos endiabrados ou sinistramente idiotas. Nunca poderei perdoar aos agressores, por isso mesmo que nunca os tinha ofendido, nem sequer os conhecia de nome, nem me constava que o imbecilismo produzisse tão perigosos maníacos. 1886.

A PRELEÇÃO DO SR. DOUTOR AVELINO CÉSAR CALISTO, LENTE DE DIREITO ECLESIÁSTICO PORTUGUÊS
No dia 23 de Março próximo passado, enviei ao Sr. Doutor Catedrático acima referido a seguinte carta:
"Ill.mº e Ex.mº Sr. Doutor Avelino César Calisto. Na 27.ª lição litografada, proferida por V.Ex.ª na aula de Direito Eclesiástico Português, no corrente mês de Março, lê-se o seguinte período:
... E no entanto, a inteligência do grande marquês já foi posta em dúvida por uma das inteligências de maior vulto da nossa moderna literatura. Mas desgraçada inteligência! Ela é posta em almoeda e ao serviço de qualquer causa em troca de miseráveis e mesquinhos interesses. Inteligência mercenária que convenientemente dirigida seria a glória de um país, e deste modo a desonra de uma literatura e do país a que pertence.
" Venho pedir a V.Ex.ª a mercê de declarar se o abaixo assinado é o escritor a quem V.Ex.ª dirige as alusões injuriosas do período Trasladado. S. Miguel de Ceide, etc."

Não respondeu. O silêncio do Sr. Calisto é, a um tempo, resposta e desprezo. Mau expediente.
O professor escorrera desbocadamente do alto da cátedra sobre os seus alunos essas imundícies da calúnia. Elas entraram-me em casa com a Sebenta ─ uma sarjeta dos esgotos do corpo docente. A digestão intelectual dos capelos em jurisprudência, lá dentro, só se pode conhecer cá fora pela Sebenta. A fama deles não sopra pelo clarim clássico de prata refulgente. Assim que transpõe as barreiras, aquela fama coimbrã, maltrapilha, de trejeitos garotos, faz da Sebenta uma trombeta, e vem corneteando por aí fora. As litografias, fecundadas pelos doutores, gemem uns partos sujos que, depois de grudados vinte e quatro horas nos cérebros, em formação e em formatura, dos alunos, são sacrificados à Vénus cloacina.

Aqui está como eu provoquei os vitupérios deste professor:
No Proémio de um esquecido livro que intitulei O Perfil do Marquês de Pombal, disse eu, antevendo profeticamente o êxito, que o meu livro não podia agradar a ninguém ─ nem aos absolutistas, nem aos republicanos, nem aos temperados. E expliquei o que eram os temperados na linhagem política.
Acrescentei que não amava nem desamava alguma das facções militantes. Dividindo a política geral em três escolas regimentares, calculei que a absolutista decerto do me rejeitaria o livro porque eu não participava do seu ódio religioso ao inimigo do jesuíta. E assentei que a religião da dogmática infalibilidade do papa que decretou a extinção da Companhia de Jesus não merecia que a gente se esfalfasse e indispusesse por conta dela, nem tinha um sério direito a queixar-se do marquês de Pombal, cujas pretensões não chegaram até à infalibilidade; porque o ministro, caluniado, matando e expulsando o jesuíta a pontapés, era menos repreensível que Clemente XIV abolindo a Companhia depois de consultar o Espírito Santo, como se inferia da BULA Dominus ac Redemptor noster por causa disto, um ilustre catedrático de Teologia escreveu na Civilização Católica que eu não percebia o que era Infalibilidade do papa. Efectivamente não percebo: parece-me ser coisa mais fácil endireitar a sombra da vara torta. Não sou dos crentes na Infalibilidade do papa. Efectivamente não percebo: parece-me ser coisa mais fácil endireitar a sombra de uma vara torta. Não sou dos crentes na infabilidade dos homens, por isso mesmo que a não entendem. Em matéria de fé desvio-me do singular espírito de Telleyrand, bispo d'Autun, que acreditava na Bíblia porque era bispo e porque não lhe percebia palavra ─ parce que je n'y entends absolument rien. Os que não são bispos, como eu tenho a infelicidade de não ser, podem acreditar somente o que percebem sem ofender as conveniências nem desflorar o pudor arqueológico das venerandas Teologias de Coimbra.
Quanto à Democracia, essa confirmou a minha suspeita de que não daria a importância de ler o meu livro ─ porque não o refutou. É claro que se o lesse, refutava-o triunfantemente. Portanto, não tendo eu por mim a clerezia infalibilista, nem o liberalismo racionalista com um Deus convencional, nem a demagogia refractária a todos os deuses, qual seria o grupo político que me comprou a pena, a consciência e o trabalho para escrever o Perfil do Marquês de Pombal? Onde iria eu com o manuscrito senão ao editor que me deu por ele a bagatela que lhe pedi, contentando-me com o rico estipêndio de o ver impresso? E, se alguém disser que o meu livro foi negociado com um partido, qual poderia ser o parvo partido que o comprasse? Por exclusão de partes, a bestialidade ficaria adstrita ao infamador, esgarrado do bom senso, que me irrogasse a calúnia.
No mesmo livro, e com a mais sã consciência, duvidei da apregoada sabedoria do marquês de Pombal. Como contrafortes dessa perigosa passagem, citei fragmentos das suas orações académicas em que não há gramática nem senso comum. Afirmei, autorizado por um dos seus mais lisonjeiros biógrafos, o conde da Carnota, que ele estivera sete anos em Londres, e não aprendera o idioma Inglês. Quanto às suas preconizadas providências, mostrei de relance, e mostrarei prolixamente, se quiserem, que os seus oráculos foram D. Luís da Cunha, em tudo que respeita ao santo ofício pela Carta ao Príncipe ou Testamento Político;
Que o outro colaborador nas suas reformas inquisitoriais foi o cavalheiro de Oliveira;
Que Alexandre de Gusmão, secretário de Estado de D. João V, deixou escrito, e já corre impresso, tudo quanto o marquês legislou sobre companhias da América, indústrias nacionais, minas, erário, e distinções odiosas entre cristãos-novos e velhos;
Que a reforma da Universidade promanou do Verdadeiro Método de Estudar do cônego Luís António Verney, à vista do qual a Junta da providência literária, formada de admiradores daquele evolucionista, organizou os Estatutos da Universidade, sem que a limitada ciência e o descultivado espírito do ministro cooperassem com um § na obra de homens doutíssimos e especialistas como D. Fr. Manuel do Cenáculo;
Que, finalmente, o médico hebreu António Nunes Ribeiro Sanches lhe sugeriu pelas suas cartas, umas impressas, outras inéditas, as providências reformatrizes em política, na economia, na governação, nos estudos médicos, nas escolas de agricultura, na conservação das colónias, na criação do Colégio dos Nobres, ao qual foi Sanches quem deu o nome quando deu o alvitre.
Aqui está o que me fez duvidar dos encarecidos talentos do marquês de Pombal como académico e como ministro, destituído de toda a originalidade. E, se também desdourei, como quer que fosse, a sua capacidade diplomática, não me esqueceu de indicar de passagem as provas da sua insignificante representação, com o Quadro Elementar à vista, nos sete anos que demorou em Londres.
Estas divergências da opinião do Sr. Doutor Calisto motivaram a brutalidade da afronta a um homem, há mais de vinte anos obscurecido em uma aldeia, estranho desde a sua mocidade às parcialidades políticas, e que nunca recebeu estipêndio senão o que os editores lhe deram por frívolos trabalhos de novelas.
Quanto mais doutoral e magistralmente procederia este mestre, se, em vez de insultar o autor do mau livro, argumentasse vitoriosamente contra as ignorâncias e aleivosias da obra, para imprimir no espírito dos seus discípulos a convicção de que eu deturpara a história, detraindo os talentos do celebrado estadista! Muitíssimo mais útil e frutífero seria isso aos seus alunos do que iludir-lhes a contar-lhes, na mesma Sebenta, pág. 238, que "o rei D. Manuel se opusera a Alexandre VI, quando este papa nomeou arcebispo de Braga seu "sobrinho" o cardeal D. Jorge, "bispo portuense", alegando que não fora ouvido na nomeação; e é isto tanto mais para notar (diz o prelector) se atendermos a que D. Manuel foi um dos reis mais submissos às decisões da Cúria e um dos mais respeitadores das suas infalíveis vontades".
Tantos desacertos quantas palavras. Deploravelmente para especialista!
Este D. Jorge era o cardeal de Lisboa, vulgarmente chamado de Alpedrinha, que primeiro renunciara à mitra bracarense em seu irmão. D. Manuel não impugnou formalmente a nomeação: queixou-se do nomeado; mas obedeceu, como se vê, e Alexandre VI lho agradece no Breve de 8 de Julho de 1502.
O caso passou desta maneira:
 

Francisco Lopes, enviado de D. Manuel a Alexandre VI, chegando a Roma, encontrou a expirar o arcebispo de Braga D. Jorge, que o havia sido pela renúncia do outro D. Jorge da Costa, cardeal de Portugal ─ que é o mesmo chamado de Lisboa, e de Alpedrinha. Lopes fez saber a Alexandre VI que não dispusesse do arcebispado vago sem ouvir as súplicas de S. Alteza. Respondeu o papa que já tinha provido o benefício no cardeal de Lisboa, apesar de outro cardeal lhe oferecer 15 000 ducados pela mitra. D. Manuel que destinava o arcebispado para um membro da sua família, em carta de 28 de Agosto de 1501, mostrou-se magoado não tanto no arbítrio habitual do pontífice como da condescendência de D. Jorge que aceitara a nomeação sem o consultar, e ameaça-o com embargar-lhe as rendas da mitra e desterrar-lhe todos os parentes, embora tivesse de estar excomungado vinte anos. Mas, seis meses depois, em 28 de Fevereiro de 1502, envia-lhe amigavelmente por Diogo da Gama as provisões para a posse. Estes debates correram pouco menos estranhos a Alexandre VI que nunca se desceu do seu propósito, nem D. Manuel formalmente e directamente lhe contrariou o velho abuso, senão direito consuetudinário, de prover quem lhe aprouvesse, por mais ducado, nas prelazias de Portugal. (Quadro Elementar, tomo X). Este incidente, por parte de D. Manuel, não foi uma impugnação briosa e digna de outros actos posteriores: foi meramente um despeito de família ferida nos seus interesses. Pedia, pelo menos, o grande rei que D. Jorge da Costa nomeasse coadjutor à vontade dele, para assim arrancar a mitra das garras do santo padre; mas o arcebispo respondia que não, que se sentia com força e saúde para administrar doze arcebispados. Afinal, o sucessor de S. Pedro prometeu a D. Manuel que, por morte do decrépito cardeal, proveria no arcebispado quem ele quisesse; ─ mera condescendência que virtualmente denegava reconhecimento do direito de padroado. O cardeal, porém, teimou em viver até aos 102 anos, e renunciou, quando quis, em um sobrinho, reservando 400 cruzados anuais.
Até aqui D. Manuel procedeu humilde e miseravelmente. Os actos decorosos do seu governo, as nobres resistências hostis ao Vaticano, à mistura com muita hipocrisia, desconhece-as o Sr. Doutor Calisto, quando o reputa extremado na submissão a Roma. Logo conversaremos a este respeito.
Vejamos agora umas miudezas que o pretor [deve ler-se prelector ─ A.C.] descurou levianamente. O catedrático Sr. Doutor Calisto denomina bispo portuense o sobrinho de Alexandre VI. Ora, o cardeal D. Jorge da Costa foi investido no bispado portuense e de Santa Rufina no pontificado de Júlio II, e não o era portanto ainda quando Alexandre VI o nomeou arcebispo de Braga.
Quanto a sobrinho, D. Jorge da Costa nem era parente de Rodrigo Bórgia, nem, a título de válido do papa, era sobrinho (nepote) de Alexandre VI, nem de algum dos cinco pontífices que o cumularam de benefícios.
Pelo que respeita à submissão de D. Manuel às infalíveis vontades de Roma, o Sr. Doutor parece-me moderadamente saturado da legislação de D. Manuel, a muitos respeitos, admirável príncipe, que se houve com os papas altivamente quando a justiça e a hombridade lho impunham. O Sr. Doutor Calisto sabe decerto que os pontífices, antes do reinado de D. Manuel, faziam a colação dos benefícios a seu talante, enviando aos bispos cartas precativas e monitórias, obrigando-os à execução dos seus despachos; e, se os prelados reagiam, sobrevinham de Roma as cartas executórias. Pois D. Manuel, em 10 de Dezembro de 1515, fez lei proibindo que ninguém pudesse impetrar do santo padre benefício de homem vivo, nem, contraditada a posse, citar alguém a responder no tribunal de Roma. Note-se o intemerato ânimo com que D. Manuel dirime e exautora a jurisprudência apostólica dos processos do direito pátrio. Chama a isto submissão o Sr. Doutor Calisto.
Mais. De Roma, nos anteriores reinados, vinham eleitos beneficiados estrangeiros. D. Manuel, em 3 de Novembro de 1512, por uma lei extravagante proíbe que os estrangeiros exerçam benefícios em Portugal.
Mais. Quando um cardeal veneziano impetrou do papa os mosteiros vagos em Portugal por morte de D. João de Castro, D. Manuel mandou dizer positivamente ao cardeal que a coroa portuguesa não consentiria jamais que se executasse a provisão que obtivera: e não se executou. Outro exemplo de submissão: Leão X dera a D. Miguel da Silva o Mosteiro de Santo Tirso. D. Manuel envia zombeteiramente os parabéns ao agraciado; mas faz-lhe saber que sente muito não lhe poder dar posse, porque já tinha dado o mosteiro a outro. Ao mesmo tempo, porém, que ensinava o papa a respeitar os seus direitos de padroado, instava com Leão X que nomeasse o seu filho Afonso ─ bispo da Guarda aos oito anos de idade ─ arcebispo de Toledo, contra a vontade e os direitos de Carlos V. (Quadro Elementar, tomo X).
Por último. Quando os prelados de Braga e Porto entenderam que deviam exercer nas suas dioceses jurisdição absoluta temporal como o bispo de Roma, e se acostaram às excomunhões com a delegacia do papa, que fez D. Manuel? O que nenhum dos seus antecessores havia feito. Por lei de 16 de Dezembro de 1516 mandou que os bispos e seus vigários- gerais e ministros não pudessem publicar inibitórias contra os ministros reais, sem lho fazerem saber a ele primeiramente.
De modo que, as providências enérgicas e radicais da história manuelina, que o catedrático devia ter indigitado aos seus discípulos, esqueceram-lhe, ao passo que abriu grandes relevos num episódio particular em que o pundonor do rei transigiu humilhantemente.
Ele presume talvez que o enviar D. Manuel ao papa Leão X um elefante e um leopardo e uma pantera e soberbas baixelas era acto de submissão. Confunde com seráfica obediência uma bizarria oriental do esperdiçado possessor das riquezas saqueadas em Malaca por Afonso Albuquerque. Mas sabem como o embaixador de el-rei D. Manuel [,] depois que entregou as jóias e as feras, requereu, em nome de S. Alteza, ao magnífico Leão X? Que dessem corte os sacerdotes à devassidão das suas vidas e licenciosidade dos seus costumes, cingindo-se à disciplina da castidade e da santa modéstia. E ao mesmo tempo que enviava repreensões ásperas ao colégio dos cardeais, castigava com severas penas em Portugal dois prelados que andavam de amores sacrílegos com as esposas do Senhor.
Antes desta embaixada, tinha D. Manuel enviado outra a Alexandre VI, pedindo-lhe quisesse pôr ordem e modo na dissolução da sua vida, dos seus costumes, e expedição de breves, bulas, e outras cousas que se tratavam na corte de Roma, e de que toda a cristandade recebia escândalo. Um luterano perfeito! E o embaixador, para fazer bem soada a admoestação, requereu aos notários apostólicos que lhe dessem instrumento público dos protestos que fizera em nome de seu rei. E algum tanto frutificaram no papa estes avisos (observa o bispo de Silves), porque dali por diante governou menos devassadamente os seus Estados, dando demonstração de que lhe não fora desabrida a advertência. Por onde se Vê que o submisso era o papa, não era o rei.
*
Seja-me, pois, permitido assim, como duvidei dos talentos do grande marquês, duvidar agora da sapiência do Sr. Doutor Calisto em matéria que mais lhe corre obrigação saber para não desonrar o magistério. É para lamentar que os seus alunos fiquem tolhidos em história pátria, se depois de bacharéis não varrerem dos camarins da memória o lixo e a graxa das Sebentas se semelhante mestre. Que os bacharéis, depois de recolhidos aos seus lares, façam barrela à surrada trapagem de Coimbra, onde daqueles velhos atavios retóricos que lhe deu Camões, sòmente permanecem

... a fértil hera,
...e o sempre verde louro
à porta da taverna.

Afinal, este doutor é mais um dos ignorantes maus da quadrilha formidável que me saiu quando eu já ia no fim da estrada, estropiado, amparado no bordão do caminheiro que vem de uma assaz trabalhosa peregrinação. Os celerados timbram em me não deixar morrer correctamente com o meu amolecimento de cérebro!
Se este assalto se desse no tempo em que eu, em vez do bordão de encosto, usava badine de goma elástica, não viria a público com esta cataplasma, um pouco emoliente, dos meus queixumes. Mas que o difamador não vá pensar, comodamente para a sua arrogância, que esta exposição antiflogística é uma espécie de certidão de doença que lhe envio como debilitante à pujança do seu músculo. Estou às ordens do infame Sr. Doutor Calisto, a quem ofereço gratuitamente mais este documento entre os muitos com que tenho desonrado a literatura e o país.
S.Miguel de Ceide, Abril, 2, 1883.
Camilo Castelo Branco

 

DOUTOR AVELINO CÉSAR CALISTO
A propósito dum papel, que por aí anda oferecido à venda, com o título de ─ Notas à Sebenta ─, e assinado por C. Castelo Branco, lembrei-me de comunicar ao público o que ocorreu ao meu espírito com a leitura do papel. Esta resolução não é um desagravo. Tenho só por fim fazer sobressair o muito merecimento das ─ Notas à Sebenta ─, tudo em proveito do seu autor.

Evidentemente a assinatura do Sr. Camilo, nas ─ Notas à Sebenta ─ é, antes de tudo, uma redundância. O escrito fotografa fielmente o autor.
Quem há aí que o não conheça, sem o ter visto, e o não tenha aclamado rei do insulto pela palavra, e explorador do escândalo pelo espetáculo?
Aos poucos, porém, que, por indiferença ou boa fé, não tiveram ainda ocasião de o apreciar, recomendamos a compra e leitura das ─ Notas à Sebenta ─, nas quais pela insignificante quantia de 60 réis, se observa, não o escritor, mas o homem.
A que preceito de crítica se acostou o sábio, para encontrar agravo a seus brios em um papel, caracterizado pela própria denominação, ─ lixo ─, na frase do supradito, cuja feitura e redacção jamais pertenceram ao professor, e nem por este é conhecida, sequer, como no caso sujeito?
O Sr. Castelo Branco, como observador de costumes não tem a mais pequena noção do que é a sebenta, entre as agradáveis peripécias da vida académica.
A autenticidade e valor científico desta antiquíssima e nociva invenção da cábula legendária desaparece no mesmo dia em que nasce; e os restos mortais não transpõem, em regra, as portas da cidade.
Os que aprendem e estudam a valer, não fazem, o que fez o Sr. Camilo; atendem ao mestre, lêem os livros, meditam e discutem, sem que a sebenta os impressione.
Mas o Sr. Camilo Castelo Branco, acolhendo em sua casa a sebenta com a denúncia anónima e covarde, engendrada e sebentamente comprovada pelo infame, que procuro descobrir, se não se deixou arrastar por intuitos malévolos, amesquinhou demasiadamente o vulto da sua inteligência e prosápia literária!
Mas há mais. Sem ânimo de tomar a sério as susceptibilidades do popular romancista, em que parte do trecho, que agora leio como novidade, encontrou ele alusão certa ao seu nome, ou à produção que aponta?
Seria nas expressões ─ Inteligências de maior vulto? ─ Neste caso, que singular modéstia do Sr. Castelo Branco, trocando por esta vaidade o risco dos seus brios!
Mas, se viu a ofensa na segunda parte do trecho, incorrecto na ideia e nos termos, adaptando-se a alusão vaga sem trepidar, que sobressalto o da sua consciência, pela autêntica revelação dum nome, que ninguém proferira, e duma produção que não fora citada!
Será verdade, que a consciência do agravado estivesse tão próxima da alusão, para lhe quadrar tão certeiramente? Não o acreditamos.
Considerou o Sr. Camilo o meu silêncio à sua carta, muito audaciosa e menos delicada, como resposta e desprezo? Está no seu direito, e bem haja pela justiça, de que julga digno.
Por outro lado, deve duvidar-se da grandeza da ofensa pelo valor do desagravo. Está ele oferecido à venda por 60 réis, valor dado pelo próprio autor, incluindo o preço da estimação, que, naturalmente, o artista dá sempre às suas produções.
A ─ aliança das lágrimas e do pão ─ não é ideia original do Sr. Castelo Branco.
Comercialmente falando, o preço pedido é cómodo e acessível a todas as fortunas, e eu creio no bom resultado do negócio, não obstante as ofertas do escrito.
Por esta razão, eu, que possuo por dinheiro todas as produções do Sr. Camilo, apesar de encontrar debaixo da porta a oferta do papel, mandei logo à loja comprar outro, pois o meu desejo é que, se isto não der ganho, ao menos fique salva a despesa.
Enquanto à parte doutrinal do escrito, se me cumprisse dar importância ao caso, sem perigo de concorrer para o espetáculo, na minha qualidade de mero espectador; se com o Sr. Castelo Branco alguém pudesse discutir gravemente, e sem perigo da sua vaidade, mostraria o que já poucos ignoram.
Quem duvida, que o Sr. Camilo é um valente estilista, no seu género, um notável farejador de crónicas, mas sem orientação superior e característica? Daqui a nenhuma disciplina do seu espírito, a qual deveria revelar-se pela síntese e força generalizadora, tão essenciais às supremas manifestações da estética.
Como historiador, revelando aptidão narrativa, é um péssimo crítico, habituado a alimentar-se apenas de pequenas esquírolas, ─ um nome, uma data, uma vírgula, um incidente, uma insignificância, enfim as desculpáveis incorrecções duma sebenta, pela qual nem o próprio redactor se orienta.
Daqui a falta de conhecimentos de filosofia histórica para coordenar os factos, formar a série, e induzir a lei, desprezando no cálculo as quantidades mínimas ou negativas da complexidade social.
Quando eu, a propósito do padroado da Coroa, especialmente para a crítica histórica Concordata de 1778, entre D. Maria I e Pio VI, lancei incidentemente a vista sobre o que, àquele respeito, se passara nos reinados de Afonso III, D. Dinis, D. Pedro I, João I, D. Afonso V, D. João II e D. Manuel, expus, o que a história e a crítica ensinam neste ponto.
Todos estes monarcas mantiveram, com mais ou menos energia, o direito de padroado, pela apresentação dos benefícios superiores. E de D. Manuel disse, que, apesar da consideração que mostra pela Cúria Romana, como pediam as circunstâncias do tempo, soube sempre aliar o respeito das formas com a manutenção das prerrogativas da Coroa, e nomeadamente o padroado.
Quem falou em submissão às infalíveis vontades da Cúria? O Sr. Castelo Branco, cingindo-se assim à letra da sebenta, como quem não está para estudar, dava um óptimo cábula, com bom direito a uma reprovação.
Quando, em Roma, o embaixador Francisco Lopes, fez saber a Alexandre VI, que não dispusesse do arcebispado de Braga, sem que chegasse a impetra ou súplica d'El-rei, o que fez saber ao soberano, por carta de 28 de Agosto de 1501, afirmava-se perante a Cúria um simples despeito, ou a prerrogativa tradicional da Coroa Portuguesa?
O rei, que, em resposta à carta de D. Jorge da Costa, cardeal de Portugal, com data de 2 de Setembro do mesmo ano, e na qual este lhe participava a sua nomeação pontifícia para a mitra de Braga, sem requerer, pedindo-lhe a concessão da posse, lhe fez constar, pelo referido embaixador, que não só lhe não dava a posse, mas, no caso de resistência, lhe mandaria embargar as rendas ou temporalidades da mitra, esse rei, dizíamos nós, não mostrava assim conhecimento do seu direito, e força para o manter?
O mesmo D. Manuel, escrevendo por essa ocasião a Alexandre VI, para o arguir de ─ ter faltado ao que era devido à Coroa, ─ mantinha e afirmava o direito de padroado em virtude dum simples despeito pessoal, ou pela energia da sua autoridade absoluta, em virtude da força, que lhe dava o direito consuetudinário, guardado, com pequenas alternativas, desde D. Afonso I?
Pois não demonstra o Sr. Camilo, embora contraditòriamente, a págs. 11 e 12 do escrito, que D. Manuel tivera bastante energia para reagir, quase violentamente, contra outras imposições da Cúria, chegando até a mandar censurar diplomaticàmente, com eficácia, a irregularidade de vida de Alexandre VI?
Que despeitos pessoais deram ao rei tamanha audácia?
Que importa uma cedência ou transacção diplomática de momento no uso das prerrogativas da Coroa? A boa política do monarca, especialmente nos primeiros anos do seu reinado, assim o devia aconselhar. A diplomacia é ─ a arte, dificílima, de conciliar interesses, cedendo em parte e de momento, sem prejuízo subsequente da integridade dos direitos e prerrogativas dos Estados.
Se o sábio, em vez de ler por alto os extractos do ─ Quadro Elementar ─, no volume X, e donde copiou mal a maior parte do seu arrazoado, compulsasse, com crítica, o que ali há de aproveitável desde pág. 124 a 130; se lesse cautelosamente a ─ Dissertação sobre a influência dos nossos príncipes na eleição dos bispos do reino e conquistas ─, atribuída a João Pedro Ribeiro; se examinasse ainda a matéria, e lesse os ─ Documentos para a História Eclesiástica Portuguesa ─ do mesmo, o volume I da ─ Sinopse cronológica, ─ a ─ História Diplomática dos Conclaves ─ de F. Patrucelli della Gattina, ─ Cabedo ─ De Patronatu Ecclaesiarum Regiae Coronae Regni Lusitaniae ─, os ─ Documentos Inéditos para a História Eclesiástica de Portugal, 1875 ─ e por fim, a ─ Coleção dos Negócios de Roma no Reinado de El-Rei D. José, Parte 2ª, 13ª Terribilidade, ─ pág.188, não viria dizer em letra redonda, acerca do padroado, o que a um estudante regular do 5º ano jamais se ouviria em lição.
Quem autorizou o Sr. Castelo Branco a negar a D. Jorge da Costa o título de sobrinho (valido) de Alexandre VI, o qual lhe dispensara o grande benefício da mitra de Braga, sem o requerer, apesar da renúncia de seu irmão D. Jorge?
Também J.P. Ribeiro entenderia por esta denominação o parentesco natural com o papa, que concede tais honras?!
Mas Sr. Camilo, em história, ordena, quando lhe convém, "que seja meio-dia a todas as horas!"
Em verdade que me pesa já, por ter escrito a sério este parêntesis, quando a moralidade da peça é bem outra.
Para o Sr. Camilo os Doutores são a sombra do Nino, porque lhes falta muita prosápia, pouca modéstia e mais audácia, razão única da sua ignorância!
Mas esses corajosos e valentes trabalhadores, que para aí, labutam conscienciosamente em literatura, história e ciência, seguem a sorte dos Doutores, vivem no quase esquecimento da sua modéstia, conhecem-nos os companheiros do trabalho; e só às vezes, quando o insecto importuno lhes zumbe aos ouvidos, esmagam-no entre as contracções do seu músculo, nervosamente estimulado pela consciência do trabalho.
Quem poderá competir agora com a forma de dizer do autor do escrito? As estiradas do fado, a linguagem grosseira e fétida do homem, tudo é inimitável!
Pela minha parte, cedo nele, a tal respeito, os direitos de morgadio, e louvo à Providência, por não me ter concedido semelhante habilidade, pois creio, que todo o homem de educação se resigna fàcilmente com esta falta.
Através da forma repugnante e tão profundamente inferior à situação do homem, que se considera um vulto intelectual e literário, destaca-se bem o autor das ─ Vaidades irritantes e irritadas, ─ o homem de vidro e pimenta, na frase feliz do Sr. Visconde de Villas Fortes, o varredor de feira pela tareia da palavra em putrefacção, o velho rabujento e duas vezes criança, chorando e encavacando, sem mesmo lhe tocarem.
O Sr. Camilo, alegando o seu amolecimento cerebral, julgou mentalmente o escrito. Esta doença terrível é das mais caprichosas em seus sintomas. Tais doentes tratam mal os enfermeiros e a família, quanto mais os estranhos.
O insulto não me chegou por partir muito de baixo; e, para mim, a doença do Sr. Castelo Branco é uma atenuante de forças e de responsabilidade.
Fora desta circunstância, creia o Sr. Camilo, que tinha vindo bater muito boa porta, como se diz.
Protesto, que, muito em família, e sem que lhe valesse a tal badine, era muito provável, que perdesse por uma vez a mania do insulto, pois sei eu de mais regência, que o caso pedia.
E que Deus o despene, se não tem de melhorar.
Agora, a continuação do meu desprezo com o respectivo silêncio.
Coimbra, Quinta da Cumeada, 17 de Abril de 1883.
Avelino César Augusto Calisto
 

Referência:

AS POLÉMICAS DE CAMILO- I. Recolha, prefácio e notas de Alexandre Cabral. Lisboa: Portugália Editora.

*Retrato de Camilo Castelo Branco realizado em 2008 pelo pintor João Duarte Freitas (professor da Escola Secundária Padre Benjamim Salgado.

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