O Marrare número 14
Confira em O Marrare - Entrevista com Salgado Maranhão: "Poeta é aquele que não sabe ser de outro jeito."

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DO MEDO À EMOÇÃO

(Marques, Helena. O Bazar Alemão. Alfragide, Portugal: Publicações Dom Quixote, 2010, p.218)

Monica Rector
University of North Carolina, Chapel Hill
prector@mindspring.com

Funchal, a terra natal de Helena Marques, faz-se presente em vários de seus romances a começar com a primeira de suas obras, O último cais (1992) até a presente obra, O Bazar Alemão (2010). Neste período de quase vinte anos, as raízes de sua identidade tornaram-se mais fortes e precisas, mostrando que a identidade é parte integrante do ser humano e que a história e as memórias não se constroem somente a partir da terra firme, do continente, mas também da periferia, da geografia da ilha - um microcosmo que representa toda a grandeza de uma pátria.

A obra inicia-se em junho de 1936 e a narrativa desenvolve-se entre esta data e 1939. O governo do III Reich de Adolf Hitler promulga, em setembro de 1935, a Lei da Proteção do Sangue Alemão e da Honra Alemã, em defesa do antissemitismo - uma ideologia de aversão cultural, étnica e social aos judeus. Esta lei desencadeou uma perseguição sistemática contra os judeus. Na ilha da Madeira, muitos alemães-judaicos, residentes e estabelecidos na comunidade há muito tempo, de repente se veem diante de um problema inusitado, questionados quanto aos seus antecedentes "religiosos" para não dizer "raciais". Sem que sua cidadania portuguesa fosse levada em consideração, passam a ser discriminados e intimidados por compatriotas seus, por meio de pressões, chantagens e ameaças, mas sobretudo por meio de denúncias em forma de cartas enviadas diretamente às fontes em Berlim. Há uma reviravolta na vida pessoal e profissional destes indivíduos, que precisam repensar suas vidas sem terem nada de concreto em que se calcar, a não ser o medo, a incerteza e a ameaça de um futuro desconhecido e incerto, mas certamente sinistro. Marques tenta recuperar, por meio dos arquivos escritos e orais, uma fase da história portuguesa, pouco abordada até agora e reavivar a memória adormecida.

O objetivo deste artigo é mostrar como Helena Marques "mexe" com o leitor por meio de sentimentos, transmitindo a angústia das personagens, que vai se transformando em medo, terror para alguns, e suscita um mal-estar no leitor que o acompanha pelo menos três quartos da obra adentro (são dez capítulos), diluindo-se no final em emoção transmitida pelas duas personagens principais, Lisbeth e Katherine, e dando uma esperança de saída positiva ou uma neutralidade aos impasses por meio do amor. Nesta trajetória, a palavra "silêncio" predomina.

Funchal é uma cidade cosmopolita de turismo, onde às vésperas da Segunda Guerra Mundial, a comunidade desfrutava de seus lazeres de influência anglófila como os garden-parties e os cocktail-parties, as quadras de tênis (courts) e as conversas ao redor das mesas de bridge. A autora presenteia-nos com a descrição da simplicidade cotidiana de seus habitantes, perambulando por ruas e espaços ainda hoje existentes, situando o leitor e contextualizando o entorno das personagens.

Helena Marques aproveita este local para criar suas personagens, reais ou fictícias. Fez uma pesquisa a partir das informações apresentadas por Anne Martina Emonts, encontradas no espólio do Consulado Alemão no Funchal, em 1999, publicado na revista Islenha. Após a leitura, Marques decidiu "recriar a época, os locais e as circunstâncias, e procurar reconstituir a história de algumas dessas mulheres e desses homens confrontados com uma perseguição política aberrante... (12)".

Neste ambiente, Helena Marques tece duas tramas principais, a de Elizabeth, (Lisbeth) judia, com Eugen, alemão não judeu, recém-vindo de sua pátria e a de Katherine, Miss Schwarz, judia, de origem alemã, e Miguel (Mike), de origem portuguesa, que fora estudar na Inglaterra e que voltara ao Funchal temporariamente. Enquanto o primeiro romance desenvolve o amor de forma mais platônica, o segundo é "pele e paixão"(66). Ambos os casais se entrecruzam quando Miguel procura auxiliar Lisbeth (176). O amor dos dois casais somente é ameaçado por fatos e pessoas externas, que nada tem a ver com suas vidas diretamente. O Hotel Café Kolb, dirigido por Hannah e Hertha Kolb passa a ser o centro onde um "culto" (encontro) nazista, reavivado semanalmente para exercer a nova ideologia política. A atração pelo novo poder chegava a transformar a Fraülein Hannah até mesmo fisicamente, substituindo seus "tailleurs escuros e severos" (109) por um suave vestido azul-turquesa, e deixando de lado, sua severidade por uma atitude amável e afável.

Fazem parte deste entourage Maria e Hans Bromberger, delatores, que denunciavam seus compatriotas por meio de cartas enviadas à Alemanha, à sede do Partido Nacional-Socialista. Hans Bromberger é a figura mais sinistra do romance, conseguindo com sua mesquinhez infiltrar "o medo calado e sofrido, o desespero da impotência" (150). Tecendo esta rede, Bromberger consegue aos poucos "destruir vidas. Nem é preciso matar. Basta retirar-lhes a paz e o trabalho, semear a insegurança, insinuar a vulnerabilidade" (152).

O mal-estar culmina com a estória de Izaak Brusov e de sua esposa Miriam. Em realidade, este episódio é uma narrativa incrustada (embedded narrative), um conto dentro do romance, porque tem existência como uma unidade por si só. A importância desta narrativa revela-se no reduto madeirense da família, o Bazar Alemão, que dá o título à obra. Flashbacks levam o leitor ao passado do Sr. Brusov, escapando da Rússia, ganhando a vida como as circunstâncias permitiam-no, conhecendo Miriam em Varsóvia, que o acompanha à Madeira, sem questionar, apenas confiando no marido e no destino. Eis que surge Bromberger, insinuando que não se deve mais fazer compras no bazar. Um mundo criado que vem água abaixo.

O estilo de Helena prende a atenção do leitor pelo suspense e por manter o constante mal-estar gerado pelo pressentimento de um mal eminente, sobretudo porque o leitor tem conhecimento prévio dos males do III Reich e do desencadeamento da guerra em anos posteriores ao romance e das táticas subterrâneas adotadas para eliminar inimigos potenciais.

Em O Bazar Alemão, os parágrafos longos descrevem situações, lugares e vivências, permitindo ao leitor respirar entre um mal-estar e outro, mas cabe a Lisbeth e Katherine despertar o leitor para novas possibilidades. Lisbeth é a mulher meiga, mas responsável e trabalhadora, que deseja fazer tudo direito como a sociedade espera, mas que tem força para impor a sua vontade. Lisbeth e Eugen vivem um amor romântico, não há maiores empecilhos, a não ser os papéis dele que não chegam da Alemanha para a boda concretizar-se. E não vêm, e continuam não vindo, até que o cônsul transmite a notícia nefasta, de que não viriam pelo fato de Lisbeth ser judia. Uma saída é fazer apenas um casamento religioso por meio do padre. Jonathan Harrison, da Igreja Anglicana, "compreensivo e eficiente" (210). Ele era obediente aos seus superiores em Gibraltar e informa-lhes sobre o casamento, supondo ser esta a melhor via e que nada aconteceria. Mas eis que vem um telefonema nefasto, sugerindo a não realização do ato, por motivos desconhecidos, invocando a tensão política internacional. Dar ao leitor a conclusão deste episódio seria roubar-lhe o suspense. Mas em Helena Marques o amor sempre vence de uma forma ou de outra e a autora introduz um twist criativo no desfecho da obra.

Katherine é a protagonista já que dois capítulos (3 e 7) são dedicados a ela. Miss Schwarz, a quem Mike (Miguel) fora introduzido e que, desde logo, descobrira ser ela uma "mulher [que] exigiria mais inteligência do que audácia, mais subtileza do que insistências" (62). Viviam "o privilégio do amor correspondido e partilhado" (164). Miguel sabia que ela era a figura dominante, mas por que não? Foi ela quem o escolheu e não vice-versa. Responsável, madura e decidida, Miguel nunca lhe fez perguntas e, por isso, ela jamais lhe contou que tivera que inscrever-se na NSDAP, no partido nazi no estrangeiro: "Nunca lhe perguntou a idade, nunca lhe perguntará a idade. Basta, porém, testemunhar o modo como ela sabe utilizar o sorriso, a ironia e a cordialidade para proteger a sua preciosa independência... (69). Pela sua independência tem que suportar o fardo de não envolver Miguel nas artimanhas que Bromberger armava contra ela. "Sabe apenas que o medo a domina na solidão da casa, no negrume da noite, no sussuro do vento pelas ramagens das árvores" (147). Continuava sua "cuidadosa reserva", parte de seu processo interior de firmeza e integridade. "Recusa-se a ser intimidade seja por quem for" (165), apesar do medo contínuo: "virá dessa tarde o medo que sempre trago latente, esse medo que, por vezes, ainda ameaça paralisar-me?" (162-3). Perguntas e mais perguntas são o recurso que Marques usa para fazer com que o leitor reflita sobre as indagações sem resposta, mas que são uma constante ameaça e causam o medo e o mal-estar de qualquer judeu.

Helena Marques cria uma estética feminista, que tenta revelar os mecanismos sociais que servem para constituir a identidade do próprio gênero. Seu texto é uma proposta para escapar aos modelos tradicionais patriarcais. A mulher, um ser dividido por natureza e pelas circunstâncias sociais, tenta definir seu destino por fora das relações sociais nas quais vive, para tanto, utiliza o pensamento, aliado ao sentimento e à emoção.


Monica Rector
Professor, Ph. D.
University of North Carolina
Chapel Hill 27599-3170

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