O Marrare número 14
Confira em O Marrare - Entrevista com Salgado Maranhão: "Poeta é aquele que não sabe ser de outro jeito."

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ESCOLHAS NUMA ENCRUZILHADA
Uma leitura de Os sertões de Euclides da Cunha

Roberto Costa Assumpção
Secretaria Municipal de Educação/SME
bigrobby@globo.com

Escolhas numa encruzilhada: Uma leitura de Os sertões de Euclides da Cunha
Escolhas numa encruzilhada é uma interpretação do livro "Os Sertões" de Euclides da Cunha. Com o auxílio de teorias literárias já conhecidas, o texto procura novos horizontes para ler esta narrativa brasileira.
Palavras-chave: Sertão. Multiperspectivismo. Máscaras Narrativas. Originalidade.

Escolhas numa encruzilhada. Uma leitura de Os sertões de Euclides da Cunha
Choices in the crossway proposes to interpret the book "Os Sertões" by Euclides da Cunha. With the help of known literary theories, the text search new horizons to read this special Brazilian narrative.
Key-words: Sertão. Multiperspectivism. Narrative Masks. Originality.

O livro Os sertões de Euclides da Cunha é alvo de controvérsias desde o seu lançamento em 1902. A rápida acolhida da crítica especializada, a rápida ascensão de Euclides a um dos maiores nomes da Literatura Brasileira, sua posse como membro da Academia Brasileira de Letras e, mormente, sua vida atribulada continua a fomentar debates e grandes estudos por todo o Brasil e até no exterior. E motivos existem de sobra para que Os sertões continue a provocar curiosidade e admiração de uns e, em contrapartida, a "pedra no caminho" para alguns críticos que não enxergam no livro aquilo que euclidianos cultivam e difundem há anos.

Não é um livro fácil, verdade seja dita. O livro exige uma série de pré-requisitos dos seus leitores mais interessados na decifração das estruturas fundamentais do livro. Sua leitura não é aquela bem fácil e linear que o leitor comum encontra nos milhares de Best Sellers apresentados nas livrarias em nosso país e pelo mundo todo. A singularidade do estilo euclidiano é de fato um obstáculo para o leitor desavisado. Não se pode adentrar pelos caminhos de Os sertões pensando apenas tratar-se da história do arraial de Canudos ou da saga do beato Antônio Conselheiro no estado da Bahia.

O universo de estudos literários, sociológicos, antropológicos, religiosos, geográficos, históricos e biológicos é vastíssimo quando o objeto de estudo é o livro Os sertões. Por se tratar de uma obra prima, ou uma grande incógnita para outros, a sua pluralidade facilita inclusive as interpretações mais equivocadas possíveis, principalmente quando a escrita debruça-se apenas sobre a vida particular e trágica do homem Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha. Aqui não nos interessa a vida privada do escritor apesar de reconhecermos a enorme importância de muitos fatos mencionados nas correspondências que Euclides trocava com seus amigos.

O engenheiro de formação criou uma obra viva, pulsante e contagiosa, haja vista que o círculo de admiradores e estudiosos euclidianos nunca cessou de crescer e avançar serenamente por terras estrangeiras. O reconhecimento de um trabalho sem igual na América Latina e mesmo na Literatura Ocidental, a reverência a um livro que conseguiu aglutinar forças múltiplas entre as disciplinas de conhecimento e o desejo de conhecer melhor tamanho esforço intelectual abaixo da linha do Equador, enfim, um vasto conjunto de razões faz de Os sertões objeto do interesse de grandes intelectuais do Brasil e de outros países inclusive.

O que haveria de tão interessante num livro editado pela primeira vez em 1902? Depois de pouco mais de um século, por que a obra de Euclides continua suscitando outros valorosos trabalhos em outras áreas de conhecimento que não a Literatura? Por que razão o livro continua como símbolo nacional, adorado por direitistas e esquerdistas? As dificuldades lexicais constituem realmente um obstáculo? O tema mais apaixonante do livro (a luta) por ainda não ter solução no Brasil é profético e por isso instigante? Vamos em busca das respostas.

Claro está que as dimensões do trabalho que ora se apresenta não acomodariam uma discussão nas proporções que o livro necessitaria, tampouco analisar as influências de grandes autores como Facundo, Thierry, Alexander Von Humboldt, Macaulay e Alexandre Herculano na obra de principal de Euclides da Cunha. Isso exigiria uma vasta pesquisa, bibliografia especializada e um aprofundamento que não estaria condizente com os propósitos deste trabalho.

Aproveitaremos sim os estudos magníficos de alguns professores e intelectuais para fazer a particular avaliação do impacto que Os sertões ainda oferece aos estudantes e leitores que se permitem observar com mais calma o esforço do engenheiro Euclides na composição deste livro brasileiro por excelência.

Como a difícil arte de repetir o que já foi dito campeia por largas plagas dos meios acadêmicos, optamos por reler a obra e emitir considerações sobre pontos nevrálgicos do principal texto de Euclides. Para que isso se realize é preciso ouvir com cautela outras considerações já feitas, pela crítica especializada, porém, a diferença está na partidarização das escolhas, ou seja, em geral os críticos não consideram relevante o ponto de vista de um outro crítico, não admitem na maioria das vezes os pontos contrários à sua tese, a menos que esses pontos contrários apareçam para auxiliar na refutação ou indicação de precariedades. Deste modo, muitos críticos excluem abordagens que poderiam contribuir para um terceiro ponto de vista, ainda mais apurado e amadurecido.

Respeitando todas as teses bem fundamentadas, ou não, sobre Os sertões percorreremos estas veredas com cuidado para não buscar uma análise apaixonada, visto que a paixão nubla os olhares em quaisquer circunstâncias. Caminharemos pelas páginas lapidadas por Euclides na ânsia de apontar alguns pontos de equilíbrio entre a crítica favorável e a desfavorável ao livro famoso.

As muitas disciplinas como a História, Filosofia, a Geografia e a Religião podem aparecer ao longo do texto. Sabe-se que Euclides da Cunha era um intelectual de formação sólida e é impossível não comentar alguns assuntos clássicos ao abordar os escritos euclidianos; porém, a nossa análise deste segmento da obra euclidiana fará uso apenas esporádico de outras disciplinas, como suporte para o comentário crítico. O interesse maior recairá sobre o texto euclidiano, seu projeto cultural/conceito de obra de arte e a interação do leitor com a obra em si.

ENCRUZILHADA DA FICÇÃO

A primeira questão que salta aos olhos é a conceituação do livro como membro do vasto grupo das ficções literárias. Mesmo após o longo percurso de um século ainda há dúvidas sobre como classificar Os sertões: ficção histórica? Ficção sociológica? Ficção literária? Ficção antropológica? Enfim, há tantas considerações a cerca do livro de Euclides que fazer uma delimitação arbitrária seria gesto temerário. Esta problemática deve-se ao fato de Os sertões ser uma obra de caráter híbrido.

Contudo, destacam-se duas grandes vertentes para que se realize um certo enquadramento da obra. Os sertões pode ser visto como romance e como história. Os motivos são claramente expostos por teóricos da literatura e da historiografia ao longo de tantos anos da existência de Os sertões.

Literatura porque Euclides faz uso da prosa ficcional, enquanto gênero ficcional, ao mesmo tempo em que podemos distinguir um narrador euclidiano que desfila por todo o livro com seus pontos de vista diferenciados, funcionando como se existissem máscaras narrativas que sucessivamente fossem alternando suas posições ao longo das muitas páginas de Os sertões. Ainda que uma delas possa ser contrariada por outra num parágrafo posterior ou na página seguinte, não importa.

História porque ao procurarmos subsídios historiográficos, observamos que no meio acadêmico houve teoria que se assemelhava ao narrador da literatura. O estudioso Simon Hornblower em seu livro Narratology and Narrative Techniques in Thucydides (in COSTA LIMA, Luiz. História, ficção, Literatura) expõe o que seria esta outra função semelhante ao narrador:

O narrador é a pessoa que narra. O focalizador é a pessoa que ordena e interpreta os acontecimentos e experiências que estão sendo narradas. A focalização secundária ou encaixada se dá quando o primeiro focalizador ou interprete cita ou refere uma focalização ou interpretação de uma outra pessoa. (p. 41)

Como logo se pode concluir, na perspectiva do autor, a subjetividade do narrador será ociosa e inerte. Ele sugere que uma voz poderia interpretar sem interferir. Fato que hoje em dia sabemos ser impossível, mas que provavelmente influenciou muitas gerações de críticos de Os sertões, haja vista que a quantidade de trabalhos em Ciências Sociais, tendo como base o livro maior de Euclides, é vastíssima. Mesmo hoje, em pleno século XXI, ouvimos debates acalorados sobre passagens do livro, das batalhas, das omissões de episódios da guerra de Canudos, como se Euclides estivesse comprometido com a verdade nua e crua sobre o episódio da guerra envolvendo o beato Antônio Conselheiro.

Não podemos negar que a descrição minuciosa da terra, das plantas, do homem e da luta coloca Os sertões, com todo direito, no nível da cultura científica e histórica. Euclides da Cunha trabalhou Geografia Humana e Sociologia como um espírito escrupuloso de um intelectual com boas intenções poderia fazer no começo do século XX, em nossa intelectualidade, então, gente avessa à observação demorada e à pesquisa criteriosa. Diz com toda sua lucidez o crítico Antonio Cândido:

"Livro posto entre a literatura e a Sociologia naturalista. Os sertões assinalam um fim e um começo: o fim do imperialismo literário, o começo da análise científica aplicada aos aspectos mais importantes da sociedade brasileira (no caso, as contradições contidas na diferença de cultura entre as regiões litorâneas e o interior" (in LITERATURA E SOCIEDADE, p.160)

Complementando a ideia de que Os sertões pendem para a Sociologia mais do que para a Literatura, lembramos a fala do eminente professor Luis Felipe da UFF, em recente semana dedicada a Euclides da Cunha na Faculdade de Letras da UFRJ. Informa o professor Luis que para Antônio Candido, Euclides é nosso primeiro sociólogo. Assim, percebemos melhor que diante de muitos acadêmicos, a voz que clama mais fortemente no interior do livro é a voz da Sociologia e será sobre essa voz que surgirão a maioria dos trabalhos a cerca de Euclides; ainda que o nascedouro desses trabalhos seja uma Faculdade de Letras. Quando se abre um novo viés, esse vai tangenciar a linguagem.

Outro enorme grupo aponta o Euclides manipulador do verbo, contemporâneo de Rui Barbosa e Coelho Neto, leitor contumaz do dicionário à procura do termo técnico ou precioso. Mas entre semelhanças repousa a diferença. Os oradores loquazes e literatos buscavam efeito pelo efeito, Euclides não. Homem de pensamento como o era, criado e adestrado nas Ciências Exatas, Euclides buscava incessantemente a adequação do termo à coisa. Por vezes chegando a construir frases sinuosas de tal monta que deixa seus leitores abismados com tamanha complexidade. Porém, se observarmos criticamente, poderemos dizer que a complexidade do tema que se abordava era tão extrema que, por vezes, essa complexidade transbordava para as frases. Muitas vezes produzindo verdadeiras pérolas e outras nem tanto. Devemos reconhecer que o projeto euclidiano de construção frasal, em certas ocasiões, pouco se preocupa com a inteligibilidade dos seus relatos.

A função estética ganha autonomia. Todo o livro gira em função de uma proposta euclidiana de narrar, como veremos mais adiante. Por esta razão, a função informativa e referencial é complementada e às vezes sobrepujada pelas funções expressiva, poética e apelativa, sendo as conotações talvez mais importantes que as denotações. Não cabe no projeto de Euclides a repetição de uma literatura Belle Epoque. Ele sabe das necessidades da construção de um estado nacional e que esse deveria ter sua própria literatura e seus próprios rumos históricos, portanto, copiar o estilo de outros autores de nítida influencia europeia não seria compatível nem desejável.

Diante disso, o livro torna-se "propriedade" de estudiosos da Literatura e da Sociologia, principalmente. Não há como reparti-lo sem criar fendas profundas na compreensão do leitor ou do estudioso.

A influência do evolucionismo está ali presente. Um certo fatalismo étnico-biológico, que lhe dera seu mestre Dr. Nina Rodrigues, aparecem vez por outra nas linhas de Os sertões, porém, Euclides não permitiu que as lições cartesianas de seus professores republicanos e evolucionistas ocupassem dogmaticamente os quadros do seu pensamento. Cedo o engenheiro republicano percebeu as falácias da então jovem república e das lições dos acadêmicos preconceituosos e ignorantes sobre um Brasil que vivia à margem das flores e dos louros da capital. Bem provável é que seu senso de liberdade muito tenha colaborado para a percepção deste grande jogo das oligarquias e do exército brasileiro na constituição da república.

Mas também a presença de um aspecto interpretativo, literário se faz marcante por todo o livro. A arrumação das partes Terra e Homem, a trajetória que perfaz um caminho terra – flora – fauna – homem, o raciocínio homológico ao apontar para diferentes terras/plantas e diferentes homens, a linguagem de intensificação (agigantando palavras) e as antinomias fazem parte deste segmento literário e de feição interpretativa. Dentre os vários exemplos podemos citar como intensificação:

"Espancado pelas canículas, fustigado dos sóis, roído dos enxurros, torturado pelos ventos, o vegetal parece derrear-se aos embates desses elementos antagônicos e abroquelar-se daquele modo, invisível, no solo sobre que alevanta apenas os mais altos renovos da fronde majestosa"

E como pequena amostra de antinomia, citamos: "Crescem há um tempo as máximas e as mínimas, até que no fastígio das secas transcorram as horas num intermitir inaturável de dias queimosos e noites enregeladas"

Com efeito, há vários outros pontos delineados por Euclides que marcam o pertencimento da obra ao conjunto dos trabalhos vinculados à Literatura Brasileira também. A pluralidade da obra, já comentada por muitos, deixa-a na encruzilhada de saberes. O projeto maior de Euclides não coube em apenas uma disciplina de estudo sistematizado. Seu propósito era maior. Sua meta era alcançar o perfeito consórcio de Ciência e Arte.

UM CAMINHO ÁSPERO

Embora dissonante no panorama dos estudiosos da obra maior de Euclides da Cunha, existe uma pequena corrente crítica que considera o livro Os sertões como um trabalho cujo brilho não deveria ser tão cintilante como obra ficcional.

É verdade indiscutível que o livro de Euclides recebeu calorosa recepção do grande crítico da época, José Veríssimo. Não seria nada espantoso se esta crítica não aparecesse num espaço de tempo menor que o tempo razoável para ler o livro. Ler Os sertões em 24h é uma tarefa hercúlea. Foi neste espaço de tempo que Veríssimo lançou a primeira crítica a Os sertões. O episódio transformou-se em "cabeça de ponte" para os que associam o prestígio do livro a fatores extraliterários, isto é, o livro teria seu sucesso a partir das relações políticos-sociais suscitadas.

Joaquim Nabuco é uma das poucas vozes, da época, a comentar negativamente o livro do engenheiro fluminense: "É um imenso cipoal; a pena do escritor parece-me mesmo um cipó dos mais rijos e dos mais enroscados" (Diários '1873-1910' 2 vols. Prefácio e notas de Evaldo Cabral de Melo, Bem-te-vi Produção Literárias e Ed. Massangana, Rio e Recife 2005; In Costa Lima, História, ficção, Literatura).

O mais ilustre dos modernistas também critica Euclides, mas por outros motivos. Mário de Andrade acusa-o de sofisticar em belas imagens e em tom de epopeia o que seria a desgraça da região. Em diário de viagem ao Nordeste, o nosso autor de Macunaíma reclamava: "Euclides transformou em brilho de frase sonora e imagens chiques o que é cegueira insuportável deste solão; transformou em heroísmo o que é miséria pura [...]" (Andrade, M. de: 1927 295; In Costa Lima, História, Ficção, Literatura). Mário aponta para um possível desajuste em Euclides entre o objeto a apresentar e a forma como o apresentava. Apesar de sua vasta formação cultural, Mário tinha por medida literária o padrão realista, isso se torna muito claro com sua afirmação sobre Os sertões. Os reclames sobre uma linguagem em desalinho, de uma linguagem literária, neoparnasiana, de sonoridade eloquente, para comentar a existência miserável dos sertanejos e da guerra não surtiram o efeito esperado. Os diários de Mário vieram a ser publicados muito posteriormente. Se a intenção do intelectual portentoso, que foi Mário de Andrade, era denunciar a onipresença desta linguagem "rococó", escrever em um diário não foi ideia prodigiosa.

Com certeza, o fato de Euclides não fazer uso da técnica do correlato objetivo para realizar Os sertões incomodou e incomoda a muitos. Contudo, devemos julgar, principalmente, o que está presente na obra e não criticá-la pelo que o autor deixou de fazer e acreditamos que seria mais conveniente. O sertão pela ótica de Mário só vai aparecer, sem luxo e requinte, com o romance nordestino de Jose Lins do Rego, José Américo de Almeida e Graciliano Ramos, por exemplo.

Seguindo a trajetória crítica da obra-magna de Euclides, devemos registrar a posição dos seus opositores políticos. É ponto pacífico que os militares do oficialato repudiavam veementemente as afirmações contidas em Os sertões. Os membros de alta patente, figuras uniformizadas da elite pensante, eram vozes a discordar de Euclides. Eles faziam uso apenas de uma defesa do exército, com o objetivo de verdadeiros representantes do pensamento positivista; como o fez Moreira Guimarães ou o general Siqueira de Menezes, refutando dados e informações que seriam fruto da mente criativa do engenheiro do pensamento. Mas parece que o público em geral não lhes deu ouvidos. O sucesso de crítica e público, que o livro alcançou na ocasião, continua sendo um referencial de êxito editorial até os dias atuais.

Nestes termos, chegamos a um posicionamento crítico hodierno. Merece destaque o ponto de vista suscitado pelo professor Luiz Costa Lima. Pela vasta experiência no campo da teoria literária, Costa Lima aborda Os sertões por um viés diferenciado. O crítico considera o livro como um verdadeiro monumento híbrido, sim, mas sua abordagem busca estruturas em definições de conceitos pertinentes à Literatura, basicamente: O que seria ficção? O que seria História? O que seria Literatura? O que seria discurso científico? O que seria discurso histórico? E a partir de respostas balizadas por teóricos de renome e por raciocínio próprio vai construindo sua versão para tecer considerações sobre Os sertões.

Para Costa Lima é bem clara a presença da Literatura em Os sertões: "A literatura se faz explicitamente presente n`Os sertões tão-só como borda que ornamenta argumento que se quer científico." (Terra ignota, 1997, cap. V). Ele busca nos próprios escritos de Euclides a justificativa para a conclusão da sua crítica:

Essa linha interpretativa se opõe à que se prolonga inconteste desde Veríssimo a Olímpio de Souza Andrade; no entanto, está de acordo com o pensamento do próprio Euclides: "estou convencido que a verdadeira impressão artística exige, fundamentalmente, a noção científica do caso que a desperta", dizia em carta a Veríssimo, de 3 de dezembro de 1902. (História, ficção, Literatura, p. 383)

Desta forma, o crítico contemporâneo procura sustentar que o núcleo de Os sertões seria científico, isto é, como se formou a terra, as condições geológicas, climáticas, do nascimento do sertanejo, do governo republicano ignorando os irmãos do nordeste e voltando-se apenas para novidades da Europa, enfim, toda uma série de fatos desde que sua explicação científica fosse asseverada. Um tratamento literário, com objetivos de empolgar o leitor, com eloquência forte, seria apenas o ornamento para a ciência. Mas aí surge um problema.

Considerar o livro como dotado de núcleo científico é declaração problemática, haja vista que existem muitas considerações ligadas à ciência, nos seus vários campos de estudo, que não correspondem à realidade empírica e não se comprovam sob nenhum aspecto experimental e não tem respaldo em qualquer estudioso de ontem ou de hoje. A bonita aparência científica, de acordo com um pseudomanual do homem de cultura, não passa de imaginação do poeta engenheiro.

Vale a pena lembrar que os termos taxados como científicos e precisos demais para um leigo compreender são duvidosos sim. A palavra de especialistas ao pesquisar a terminologia científica de Os sertões, quer corrigindo, quer elucidando, nos mostra que a imortalidade de Euclides não reside na aplicação dos léxicos científicos. Muitos geólogos poderiam escrever (e escrevem) linhas mais acertadas sobre a configuração geológica da Bahia ou do Brasil. As palavras escolhidas por Euclides são, na verdade, escolhas muito mais literárias do que científicas. Mas sigamos os caminhos mais ásperos.

Costa Lima também argumenta com clareza que o "cipoal" emergente de Os sertões (segundo crítica de Joaquim Nabuco) era facilmente rebatido pelos partidários de Euclides. O que parecia cipoal era produto da comunhão entre o cientista e o literato. O consórcio magistral de Ciência e Arte que nem todos estariam preparados para desmembrar, uma vez que grande parte dos discursos da época era pautado por uma lógica cartesiana excludente; portanto, o estilo geralmente preso à sua sintaxe é mais um fator de grandeza da obra.

Mesmo em críticos contemporâneos, como o biógrafo de Euclides da Cunha, professor Frederic Amory, o "cipoal" de que fala Nabuco não é tão monstruoso assim como parece. Explica o estudioso norte-americano que as verdadeiras dificuldades com o "falar-difícil" não reside no "léxico mental", mas nas experiências sintáticas que Euclides procurou realizar.

"Em rápidas palavras, a tendência estilística dos textos de Euclides, que tem início em seus primeiros ensaios para jornal com o simples estilismo das frases com "finais-surpresas", chega ao auge em Os sertões, com hábeis exibições de frases epifóricas e anafóricas repetitivas. [...] mas as repetitivas construções paratáticas, não importa a extensão, não apresentam qualquer problema sério para o leitor, porque se desenvolvem num único plano sintático."p 17 (in Euclides da Cunha: uma odisséia nos trópicos,São Paulo: Ateliê Editorial, 2009)

Essas experiências vão além da sintaxe e são postas em favor de um projeto grandioso da união de Ciência e Arte. Daí o surgimento de frases que são verdadeiros versos precisos de oito sílabas, dez sílabas e até de doze sílabas. Frases cheias de aliterações, assonâncias e sibilações não são raras em Os sertões. Não resta a menor dúvida de que Euclides recorreu aos métodos do poema na construção de sua obra maior.

Seguindo nossa jornada "sertaneja", merece comentário um dos pontos nevrálgicos da crítica do professor Costa Lima sobre o livro de Euclides. Essa crítica reside em folhas das teorias de Herbert Spencer, evolucionista inglês cujos escritos arrebanharam muitos intelectuais brasileiros, os quais trocaram o louvor que prestavam a Comte e seu determinismo pelo darwinismo social de Spencer.

É ponto pacífico que o jovem Euclides havia sido positivista, contudo, a virada para as idéias evolucionistas inglesas deixou algumas marcas consideráveis (quiçá indesejáveis). O racismo inerente ao darwinismo social deixa sequelas por onde passa. Logo, muitas páginas de Os sertões e outros escritos posteriores são tingidas por uma tinta com sutilezas em alguns momentos e noutros com uma tinta mais "carregada" de racismo. Há passagens que comprovam tal fenômeno em "Conflito inevitável", "Contrastes e confrontos" e na parte "Um parêntese irritante" no segmento O Homem, de Os Sertões; em que o matiz racista aparece bastante explícito.

No entanto, a marca de um racismo mais brando ou mais incisivo por várias passagens das obras de Euclides não justificam a crítica ao livro mais famoso, Os sertões. Não podemos fazer julgamento passional da obra considerando um traço, uma influência ou uma falta de sensibilidade. É mister que o crítico desloque-se no tempo e perceba que as opiniões de Euclides sobre raça não podem ser contextualizadas em panorama crítico hodierno. Os conceitos vigentes, o meio acadêmico, as teorias mais famosas, enfim, todo o contexto cultural e seu peso junto à intelligentsia, certamente prefiguram os textos de quaisquer escritores. Apesar de Euclides ser diferente dos vários escritores de seu tempo, daí seu não enquadramento em estilos de época da Literatura, o engenheiro do pensamento não viveria totalmente imune ao que ocorria em seu derredor. A corroboração às teorias de Spencer continua.

No mundo circundante de Euclides, os estudiosos de Os sertões mencionam constantemente o nome de Ludwig Gumplowicz (seu livro Der Rassenkampf (1883), provavelmente lido na tradução francesa, La lutte de races (1893) como um pensador que teria influenciado as leituras de Euclides. A teoria principal de Gumplowicz é bastante transparente. Diz o escritor austríaco em sua tese, não muito nova, que a luta racial entre os fortes e os fracos era a força geradora da História Mundial. Por alguma razão, Euclides agradou-se desta tese. Talvez porque ela satisfizesse a sua visão pessimista sobre o futuro do Brasil e seu povo, fato peculiar demonstrado por várias cartas de Euclides a seus pares.

A História impulsionada por conflitos e estes se nutrem da variabilidade étnica dos grupos, logo, a situação de guerra é algo visto como natural e inevitável. Se a guerra alcança suas metas, há uma produção precisa entre os elementos heterogêneos: surge uma relação de subordinação, dependência ou dominação. A tese de Gumplowicz explica que tais lutas constituiriam a verdadeira essência do processo histórico. Mas até que ponto Euclides da Cunha aderiu às teses de Gumplowicz?

Segundo Costa Lima, o autor de Os sertões não compreendeu bem as teses do sociólogo austríaco; ainda que em cartas Euclides confesse: "sou um discípulo de Gumplowicz, apartadas todas as arestas duras daquele ferocíssimo gênio saxônico" (Cunha, E. da: 1930 a, II, 624. In Costa Lima, Luis. Terra ignota, p. 31). Prossegue o emérito professor e crítico da UERJ com sua explanação:

O desentendimento de Euclides parece então bastante estranho. É ainda mais intrigante porque se baseia exatamente na passagem que condensa toda a teses de Gumplowicz: "a luta das raças pela dominação, pelo poder, a luta sob toda suas formas, sob uma forma confessada e violenta ou latente e pacífica, é, portanto o princípio propulsionador propriamente dito, a força motriz da história; mas a própria dominação é o pivô em torno do qual giram todas as fases do processo histórico, o eixo em torno do qual elas se movem, pois os amálgamas sociais, a civilização, a nacionalidade e todos os fenômenos mais elevados da história só se revelam em decorrência de organizações de poder e por meio dessas organizações. (p.31)

E a leitura distorcida de Euclides, segundo Costa Lima, não ficou apenas em Gumplowicz. O crítico em seu livro Terra Ignota (p.46) procura demonstrar cabalmente que Euclides não só critica o filósofo Kant como também não o compreendeu, uma vez que fora obrigado a estudar o filósofo para o concurso de Lógica que prestou para o Colégio Pedro II. O travamento problemático dar-se ia entre as relações de transcendência e imanência. A questão da "essência nacional", tão cara ao nosso Euclides, esbarra sobremaneira em muitas questões da pré-existência e do experimentalismo. A prova de que Euclides tresleu as teorias Kantianas estaria registrado em cartas e ao longo de Os sertões e, segundo o professor Costa Lima, torna-se um fator de desagregação de um projeto mais ambicioso que um romance nacionalista: a gênese de uma nação.

E por fim, um outro viés crítico que recai sobre Euclides diz respeito ao projeto de unificar Ciência e Arte. A franca admiração pelo trabalho de Alexander Von Humboldt é patente e a ele Euclides só se refere de maneira afirmativa e elogiosa. Embora a crítica especializada não saiba dizer que obras de Humboldt nosso escritor leu, é possível afirmar que Euclides tivesse conhecimento do quanto as ciências da natureza aqui pelas Américas devia aos trabalhos de Humboldt. E mais: de como o pesquisador alemão buscava consorciar Ciência e Arte em seus escritos. Essa teria sido a grande inspiração para Euclides, porém, segundo alguns críticos, inspiração malograda, porque Humboldt dividia seu projeto de consórcio Ciência e Arte entre duas partes claramente nos seus escritos: as notas conteriam um discurso e o texto um outro. Assim a Ciência ficaria com uma parte e a Arte com outro, mas a comunhão se daria no projeto geral. Euclides inspira-se no mestre alemão, mas dá novas características, como veremos. O projeto do engenheiro fluminense abrangerá tudo no interior de suas linhas, mormente, em Os sertões. Ciência e Arte deveriam comungar o mesmo "pão" pelas frases no próprio texto, isto é, não há divisão entre notas com um discurso e texto com outro. Tudo se funde para a realização maior do projeto euclidiano tão criticado.

NOVOS ATALHOS

Alguns críticos contemporâneos ainda se debruçam sobre a obra magna de Euclides e de lá procuram extrair preciosidades ou elucidar problemas hermenêuticos que ficaram à beira do caminho. Dentre os vários teóricos que se dedicam a pesquisar os trabalhos euclidianos, mormente, em Os sertões, optamos por observar mais de perto as considerações do professor Ronaldes de Melo e Sousa em seu livro A geopoética de Euclides da Cunha e há uma razão para isso.

Dentre as inúmeras abordagens envolvendo a obra euclidiana, encontramos no trabalho do emérito professor Ronaldes uma visão diferenciada sobre o principal livro de Euclides. Mostrando a originalidade da ficção narrativa do engenheiro fluminense num panorama nacional e internacional, o crítico sugere uma interpretação tão original quanto a própria obra. Pretende o pesquisador demonstrar como Euclides tornou-se um dos maiores poetas da prosa de ficção na Literatura Brasileira.

A linha mestra do trabalho crítico percorre o que o autor chama de a geopoética da terra. Subdividindo-se em duas poéticas: uma do sertão e a outra acerca da vinculação do cientista e do artista. Aparece de forma singular a exposição sobre o grande projeto euclidiano de realizar o consórcio da Ciência e da Arte, cuja inspiração passa obrigatoriamente por Alexander Von Humboldt e pela romântica escola de Jena na Alemanha.

Defende o professor da UFRJ que a poeticidade preconizada pela mundividência euclidiana se prolonga num amplo diálogo entre disciplinas filosóficas e científicas; dialogal ao se caracterizar pela interdiscursividade. O conjunto de vozes oriundas dos múltiplos ramos do saber transforma o discurso euclidiano em presença multiperspectivada. E qual a razão para que Euclides optasse por essas vozes?

A crítica é clara. Para Euclides e muitos outros escritores, o fenômeno observado através de múltiplas perspectivas constituiria uma estrutura mais bem acabada em comparação com a ótica monocular, a qual não permitiria uma abordagem global abrangente. A justificativa é cabal: quanto mais complexo é o fenômeno, maior a necessidade de o conhecermos por ângulos múltiplos. A visão cartesiana, por este ponto de vista, se revela demasiadamente simplificadora de fenômenos que precisam de uma visão mais completa e abrangente.

Isto posto, podemos compreender melhor o "cipoal" tão criticado por Joaquim Nabuco no livro Os sertões. O Professor Ronaldes desmembra a ficção euclidiana em Os sertões sob a ótica de máscaras narrativas. Estas seriam posições tomadas ao longo do livro, diferentes das posturas do narrador privilegiado, fixo. Deste modo, percebemos melhor a clareza da denominação estilo ficcional personativo, isto é, o narrador representa um outro eu e não a si mesmo.

A partir de estudos aprofundados de Teoria Literária e Literatura Universal, o professor Ronaldes decide nomear as máscaras narrativas de acordo com pontos de vista que o próprio livro inspira.

Deste modo temos o observador itinerante. Discurso estruturado por dois mediadores, daí, consequentemente, possuidor das estruturas de um narrador e de um observador. Explica nosso crítico: "Na parceria narrativa da dupla mediação, narram-se os efeitos emotivos que os eventos suscitam na percepção do observador, e não os eventos em si mesmos" (p.15). Esse posicionamento crítico é de extrema relevância, haja vista que ao avaliarmos o desmembramento proposto tudo se modifica, porque temos que considerar as opiniões de um narrador diferenciadas do observador. O estudioso que observar tudo como um só discurso do homem Euclides da Cunha vai colocar de lado toda a grande força da Literatura Ocidental desde a Antiguidade Clássica: um outro eu a falar. Assim posto, torna-se inútil cobrar a coerência ou precisão absoluta de um observador que vai direcionar um olhar filtrado pelo caráter mitopoético, impactado pelo que vê e artístico na sua exposição.

O protagonista do drama euclidiano em Os sertões é a terra, como já se tornou lugar comum afirmar. Sua existência é dotada de força e percebe-se claramente a metamorfose de um organismo vivo. Na direção de representar esse drama, o narrador vale-se de uma outra máscara: O pintor da natureza. De forte inspiração em Alexander Von Humboldt, o pintor deslumbra-se entre céu e terra. Dotado de grande força metonímica da percepção, ele procura dar vida ao enorme entusiasmo de Euclides pela obra de Humboldt e o faraônico projeto do consórcio da Ciência e da Arte, o qual aparece mormente na obra Ansichten der Natur, que Euclides deve ter lido na versão francesa. O pintor euclidiano nos revela traços expressionistas ao longo de seu mundo circundante, a fim de expandir toda a dramaticidade que a natureza proporciona: rios, céus, rochas, mares, plantas e até mesmo o efeito trágico da guerra de Canudos (mas não a guerra em si mesma). Tudo resultante da concepção mitopoética da natureza.

Uma terceira máscara estaria a cargo de um verdadeiro encenador teatral. Assim é chamado o narrador que assume a "direção" cênica para representar o drama que o crítico denomina como fitomórfico. As plantas como verdadeiros seres vivos (e de fato o são) contradizem o determinismo em suas faces mais dura. Comungando com as decisões humanas, os vegetais também poderiam se desenvolver ou atrofiar-se de acordo com as necessidades, como se fossem dotados de vontade própria.

O determinismo não prevalece, porque o meio bruto pode propor, mas não impor, uma solução à árvore, que dispõe de recursos vitais para se haver com a diversidade da ambiência que a circunda. Uma imposição absoluta não se aplica ao organismo. A existência orgânica significa a capacidade de se dispor do ambiente natural de acordo com orientações que lhe são próprias. A relação entre organismo e meio não é física, mas biológica. Não sinaliza o conflito insolúvel, mas a possibilidade de conciliação. (p. 40)

E mais, a secura e as grandiosas adversidades para o desenvolvimento transformam em um exótico fortalecimento das plantas (seres vivos). Daí a explicação convincente sobre o episódio em que os soldados vivem apuros terríveis por conta dos problemas gerados pela vegetação da região de Canudos. Os vegetais tomam partido dos canudenses, ora escondendo os milicianos, ora maltratando os soldados.

O narrador euclidiano deixa transparecer uma outra máscara, com a firme determinação de levantar e discutir a tese complexa do problema religioso e racial no Brasil. Trata-se do Investigador dialético. Na perspectiva deste narrador o ato de ver não é suficiente para compreender a complexidade do problema, quer seja de Canudos, quer seja do país Brasil. Para este narrador sob a máscara do investigador dialético ver deve significar e considerar o impacto sofrido pela complexidade do que se vê. Assim, a dialética entre a associação de narrador e investigador ressalta a visão multiperspectivada, que acabará permitindo uma série de recursos discursivos, inclusive o direito à contradição, numa clara alusão ao multiperspectivismo de Leibniz, segundo os próprios escritos de Euclides. Um exemplo extremo são as considerações que o investigador faz acerca do beato Conselheiro. São várias perspectivas, algumas elogiosas e outras que detratam com veemência a figura do líder do arraial de Canudos.

O problema que essa máscara suscita é a questão dialética. Muitos euclidianos ainda debatem a questão de uma dialética sem a síntese. O molde Hegeliano é muito forte. Tese, antítese e síntese são marcas filosóficas profundas no mundo ocidental e deixá-las de lado não é tarefa das mais fáceis. Assim, a verdadeira explosão de perspectivas que aparecem a todo momento gera uma certa "polifonia exasperada" na interpretação da insigne mestra Walnice Nogueira Galvão. As várias abordagens que não apontam para uma síntese são fustigantes ao raciocínio. Argumentos que se contradizem e não indicam uma sequência dedutiva precisam de amadurecimento crítico para não julgá-los improcedentes na obra.

Seguindo a proposta do professor euclidiano, a máscara seguinte seria a do Refletor dramático. Com profundas raízes na tragédia grega, o desempenho dramático deste refletor leva a uma espécie de filtragem emocional dos fatos representados. Segundo o crítico mineiro, Euclides optaria por uma lógica de raízes no pensamento de Spinoza e refutaria a corrente cartesiana que apresenta uma verdade contrária ao erro. Como expressão das múltiplas experiências do ser humano, o narrador euclidiano busca uma forma de representação em que homem e mundo vivam de forma íntima. Não é demasiado observar que a verdade do artista acaba superando a verdade do cientista, porque mostra muito mais opções, possibilidades. E para dirimir contradições:

"O sertão é um inferno, quando seca, e um paraíso, quando reverdece. Não há contradição lógica, mas uma dicção que se alterna em contraste com outra, porque se refere a um objeto em mutação, um objeto que apresenta face dupla, que oscila entre o negativo medonho e o positivo encantador.

Em vista da sequência de máscaras que o crítico se propõe a desmembrar ao longo de Os sertões, chega-se até a última delas: o historiador irônico.

Como o próprio nome revela, trata-se de um narrador que encara a história de uma maneira despretensiosa, porém, não deixando de questionar preconceitos nacionais sobre o povo brasileiro, e nem de posicionar-se inteiramente sintonizado com os derrotados, marcando uma posição de sinceridade frente à justiça que o episódio de Canudos tanto clamava.

Um dos pontos culminantes deste narrador mostra-se claramente nos comentários que a ironia de espraia. Assim ocorre quando aparecem os comentários sobre as manobras irresponsáveis e impensadas do exército republicano, quer em campo de batalha, quer em deslocamentos ou inépcia dos seus comandantes.

Alega nosso crítico, com bastante propriedade, que a ironia deste historiador só vem a confirmar a, já conhecida, concepção euclidiana de que a Arte deveria ter uma missão social. Segundo Euclides, a Literatura deveria agir em favor dos desafortunados, daqueles que sofrem ou são martirizados. Portanto, explica-se muito bem a desfavorável crítica de Euclides para os simbolistas e parnasianos.

Com certeza, a máscara principal do livro é a do historiador, porque é a partir dela que permaneceu a denúncia de um massacre irresponsável e de um Brasil esquecido, deixado à própria sorte. É a partir desta voz do narrador que muitos e muitos trabalhos na área das Ciências Sociais foram e continuam a produzir interpretações sobre este episódio da história brasileira, embora o procedimento artístico-literário de composição tenha convertido Os sertões em autêntica narrativa ficcional.

Após analisarmos alguns tópicos da fortuna crítica de Os sertões, ainda que sem a profundidade merecida, conclusões absolutas seriam incompatíveis com a própria grandeza da obra. Sua pluralidade, desde o título, solicita um enfoque multidisciplinar que procuramos ao menos registrar em casos mais conhecidos. Contudo, após seguidas leituras e consultas a trabalhos acerca de Os sertões, podemos demonstrar alguma fortes características do livro, passíveis de crítica, como tudo que existe no mundo acadêmico, mas imbuídas de olhares ambiciosos pela decifração desta obra magna de Euclides.

Apesar de alguns bons professores universitários ainda persistirem na defesa de que Os sertões não é obra de ficção literária, acreditamos ter demonstrado por estas frágeis linhas, por críticos de renome e por argumentações coerentes que a explanação sobre a possível falta de investimento ficcional em Euclides da Cunha – em Os sertões – é uma afirmação que não consegue se sustentar. Quanto mais afirmar que Os sertões não é obra de ficção.

As perguntas que deveriam ser feitas a esses professores são: que História é esta de Os sertões? Que Ciência é esta de Os sertões? Como não há historiografia que se encaixe e tampouco Ciência "pura" que ali também se encaixe, não resta dúvida que apenas a ficção literária seria capaz de abarcar tamanha confluência de saberes e de teorias sobre os mais variados tópicos. Somente um projeto de aglutinar Ciência e Arte poderia se lançar sobre tamanha rede de possibilidades, sem medos, sem amarras, exibindo um pensador de matriz libertária e elevando Euclides da Cunha à condição de um dos maiores pensadores do conceito de nação e de Literatura simultaneamente.

Outra conclusão podemos esclarecer. Abraçar a ideia de que Euclides não se preocupou com o beato Conselheiro ou que seus personagens em Os sertões não têm alma sertaneja é um reducionismo sociológico, um traço limitador de quem ainda não conseguiu perceber a grandeza do discurso literário por excelência: único discurso a mostrar vários pontos de vista simultaneamente. Fazer cobranças por falta de exploração psicológica dos personagens é crítica improcedente, haja vista que o grande projeto euclidiano, de raízes em Humboldt, Spinosa e Leibnz, caminha por outras searas que não a psique dos personagens.

Mesmo erro incidirá sobre os que perseguem a exatidão dos episódios narrados, datas, localidades, quem falou esta ou aquela frase na época do conflito de Canudos ou outros "deslizes" que se queiram apontar. Trabalho vão. A ficção euclidiana permite se navegar pelos saberes sem o compromisso com a Ciência. Os saberes envolvem todo o livro, mas tudo aparece de acordo com os objetivos discursivos do "engenheiro do pensamento". O consórcio de Ciência e Arte é quem vai governar o grande livro de Euclides e não a precisão científica exigida pelos meios acadêmicos. A configuração metonímica da percepção é diferente dos erros científicos.

Devemos concluir também que a visão de Brasil que o correspondente de O estado de São Paulo possuía, mudou bastante após o conflito da Bahia. Para sermos precisos, basta confirmarmos em cartas que Euclides muda exatamente após interrogatório de uma 'jaguncinha' de 14 anos. Deste modo, comparar textos de Euclides antes e depois do choque cultural recebido em Canudos é outra das tarefas pouco frutíferas. O homem impactado por uma realidade que o Brasil desconhecia, nunca mais será o mesmo, por conseguinte, seus textos nunca mais serão os mesmos.

Não podemos deixar de concluir que também é verdadeira a afirmação sobre os discursos que alguns críticos levantam: os discursos têm, cada um, seu princípio de orientação e, a partir daí, uma maneira própria de lidar com a linguagem. Quem haverá de negar? No entanto, diante de um livro que se propõe a realizar o consórcio de ciência e arte, como separar os discursos internalizados? O suposto núcleo científico com vestimenta literária fica bastante difícil para comprovar, uma vez que as duas coisas aparecem comungadas o tempo inteiro em Os sertões. Não ocorre com Euclides o que ocorre com seu inspirador Humboldt, cujo projeto de consorciar Ciência e Arte divide-se em seu texto e suas notas respectivamente.

Assim sendo, a voz de Antônio Cândido ao afirmar que a virtude da obra é sua potência de representação resume bem o esforço realizado por Euclides da Cunha. Ter Os sertões sido apropriado pela direita política no Brasil, no Estado Novo, e, ao mesmo tempo, ser livro fundador de uma espécie de sociologia regional, voz dos excluídos, denúncia, enfim, mostra o quão representativo é a obra maior de Euclides.

A permanência dos estudos euclidianos após um século do lançamento da primeira edição de Os sertões é outra demonstração de que o livro não é datado, como alguns o acusaram. O aparecimento de romances inspirados por Os sertões como As meninas do Belo Monte, A ressurreição de Antônio Conselheiro e seus 12 apóstolos ou O pêndulo de Euclides, além do famoso A guerra do fim do mundo, prova a vitalidade e a perenidade do incrível trabalho de Euclides da Cunha. É uma obra que permanece aberta a discussões e todas as reflexões teóricas são bem-vindas, porque todas elas contribuem, de uma forma ou de outra, para a permanência deste tradicional livro brasileiro.


Roberto Costa
Mestre em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira)/ UFRJ, 2006
Pós-Doutor em Filosofia, UFRJ, 2008.
Doutorando em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira)/UFRJ
Recebido em 25/02/2011
Aceito em 25/03/2011

Referências:

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BERNUCCI, Leopoldo M. A imitação dos sentidos (prógonos, contemporâneos e epígonos de Euclides da Cunha). São Paulo: Edusp/University of Colorado at Boulder, 1995.
CÂNDIDO, Antônio. Literatura e sociedade. Rio de janeiro: Ouro sobre azul, 2006.
COSTA LIMA, Luiz. Terra ignota, a construção de Os sertões. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1997.
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CUNHA, Euclides da Cunha. Os sertões. Edição crítica de Walnice Nogueira Galvão, 2ª Ed. São Paulo: Ática, 2000.
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