O Marrare número 14
Confira em O Marrare - Entrevista com Salgado Maranhão: "Poeta é aquele que não sabe ser de outro jeito."

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"POETA É AQUELE QUE NÃO SABE SER DE OUTRO JEITO" Entrevista com Salgado Maranhão

Iracy Conceição de Souza
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
iracysouza@ufrj.br

Salgado Maranhão é poeta e letrista de MPB. Consolidou sua carreira nos últimos 20 anos.Vencedor do Prêmio Jabuti de 1999, com o livro "Mural de ventos", um dos sete títulos editados, também é o vencedor do prêmio Olavo Bilac de 2011 – prêmio concedido pela Academia Brasileira de Letras (ABL).

Salgado Maranhão nasceu em Caxias, interior do Maranhão e vive no Rio de Janeiro onde fez laços.

O livro que marcou sua inserção na poesia carioca é Ebulição da escrivatura, publicada pela Civilização Brasileira, em 1978, uma antologia organizada por ele, em parceria com Antonio Carlos Miguel e Sergio Natureza.

O universo poético de Salgado Maranhão despertou interesse de estudiosos no Brasil e no exterior. Sua obra foi traduzida para diversos idiomas.

Seu livro "A cor da palavra", publicado pela IMAGO, em 2009 é o "resultado da obstinação pela palavra de múltiplas arestas" de que nos falará o poeta Salgado Maranhão.

Foto Philippo Almeida




























0 azul e as farpas
Sigo a sangrar, do peito ao vão das unhas,
os dardos do amor: o que há sido e o que há.
Naufragado ao vento de um cais sem mar
o que serei se alia ao que me opunha.
As farpas do desejo – esse tear
das aranhas da dor e sua alcunha
– fazem da luz do dia uma calúnia,
cravam no azul da tarde o zen do azar.
Tento amarrar o tempo e a corda é curta,
tento medir o nada e nada ajusta.
(Meus nervos tocam para os inimigos
que chegam sob o som de uma mazurca.)
Resta a mó do destino – o desabrigo
– a devolver meu pão de volta ao trigo.(p.152)

A poesia de Salgado Maranhão medeia a beleza e a visão da palavra que a redige. Sua poesia antes de se fazer sentir tem que ser percebida, doída, investigada, para então ser, depois, amada para, enfim, ser libertada. Salgado Maranhão extrai a expressão poética da autenticidade da vida. Seus poemas estão indubitavelmente cheios de vida. Exprimem ecos homofônicos e translinguísticos, que confundem, que despistam todo o significado e, principalmente, que os anulam e que os multiplicam, sendo uma câmara de ecos que batem um no outro ao acaso, de maneira contingente. Sua poesia descortina esse mundo singular que só podemos batizar, para identificá-lo, conferindo-lhe o nome de seu autor.

O universo poético de Salgado Maranhão mostra-se como experimentação de processos estéticos que filtram a realidade sensível para expô-la em cenários re-construídos por imagens. Sua poesia é profundamente densa, porque privilegiando a utilização de alegorias, símbolos e imagens, instala tensões dissonantes para dizer da grande inquietação provocada que expurga a segurança enganadora de sentidos ilusoriamente instalados. Seus poemas se movem em um âmbito em que as diferenças reais são suprimidas e onde tem lugar um múltiplo transmudar de uma coisa na outra. Diria ainda, exige uma destreza aguda nos lábios de quem dela espreita.

Poeta, eu gostaria de iniciar nossa entrevista parabenizando-o pelo prêmio Olavo Bilac concedido agora em 2011 pela Academia Brasileira de Letras. Gostaria, também, de agradecer a gentileza de conversar com os nossos leitores de O Marrare.

A poesia de Salgado Maranhão por Salgado Maranhão

Salgado Maranhão: Minha poética gravita na borda da língua, nesse equilíbrio delicado em que um passo para trás é o lugar comum e um passo para frente é o ininteligível. É lógico que isto não é apenas uma atitude deliberada e racional. É um temperamento, um gostar de ser, é como se eu desejasse abrir um caminho novo na língua. Devo dizer que quando chega o poema, é uma verdadeira possessão de palavras em meus sentidos, chego a pensar que estou ficando louco. E estou: louco de luz. Depois desse momento de epifania, eu volto a retrabalhar o poema, infinitas vezes, para esgarçar ao máximo as possibilidades da palavra.

A poesia nos resgata uma voz inconsciente que fomos perdendo, aos poucos, depois da idade pré-natal. Trata-se de uma linguagem aberta, sinuosa, prenhe de significantes e irresponsável, como o discurso das crianças. A necessidade de nos ajustarmos ao mundo e às suas normas arbitrárias, em troca de afirmação e sobrevivência material, vai secando a poesia do nosso coração. Uma pessoa comum, que funcione como a maioria, do estômago para baixo, até reconhece o vigor impactante dessa forma de expressão, mas teme se comprometer com essa insanidade sã. Poeta é quem tem no DNA a doença incurável do mistério. É aquele para quem as palavras tiram a roupa e se entregam sem reserva. E não é para quem quer e nem é uma questão de privilégio, mas de destino, é mais uma questão de não saber ser de outro jeito.

Iracy: Vivemos em um Brasil que, ainda, não se descobriu e que por sua vez, não se re-conhece. Quem somos? De onde viemos? E para onde estão nos empurrando? Pessoas que não têm o hábito de leituras, não se re-conhecem em suas identidades, não conhecem seus escritores, e muito menos conhecem seus poetas. Somos vítima de uma insensatez política que visa ao extermínio ou por estrangulamento, ou por asfixia de todo ser pensante.

Você recebeu o prêmio Jabuti que é o mais respeitado do Brasil, e agora o prêmio Olavo Bilac, outros tantos, certamente, sua poesia receberá. Você tem a dimensão exata do que representa, para o povo maranhense, seus prêmios?

Salgado Maranhão: O Brasil é um país riquíssimo em possibilidades culturais, mas é viciado em fazer escolhas erradas. A meu ver, a razão principal disso, é o domínio gerencial, desde sempre, de uma elite de baixa auto-estima, que prefere copiar o pior dos outros. Enquanto isso, os "estranjas" vêm aqui e surrupiam o nosso ouro. O nosso diferencial é a cultura e a nossa incrível capacidade de nos reinventarmos. Mas, o Brasil de hoje não está interessado em excelência. A cultura de alto nível foi relegada, pelo poder público, a um nicho. O que salva são as novas gerações que, por livre e espontânea vontade, vão abrindo veredas novas a murro. Por isso, é que sou otimista a longo prazo. Sei que mesmo não tendo o apoio das instituições, devemos dar o melhor de nós em nossos sonhos, porque um palito aceso já basta para um incêndio. Os prêmios literários, quando são frutos do mérito e não de conchavos entre amigos, são o reconhecimento justo de quem fez por merecer. No meu caso, que sou um pássaro que canta e voa sozinho, embora entre tantos, serve de incentivo e aplauso, ainda que eu continue a voar e cantar independente deles, só pelo prazer do vento e do brilho do sol. Porém, reconheço que eles são fonte de orgulho para o povo de onde vim.

Iracy: Sua poesia busca resgatar aquela poiésis que se perdeu com toda essa carga de conotações adquirida com o tempo, revitalizando a energia originária do vocábulo ao mesmo tempo explorando às diversas potencialidades da palavra poética. João Maimona, poeta angolano, afirma frequentemente: "Minha poesia é berço de palavras renováveis e requalificáveis". Em sua opinião, a sua poesia tem essa característica de renovação e requalificação das palavras?

Salgado Maranhão: Eu falei numa entrevista que uma das minhas buscas verbais é resgatar as palavras que perderam o brilho, mudar sua função, vesti-las de roupa nova. A meu ver, a poesia da África de língua portuguesa, não sofreu as tutelagens estéticas de movimentos formalistas tão marcadamente ideológicos quanto a poesia brasileira da minha geração. Se por um lado, o formalismo nos deu a consciência da palavra enxuta, nos levou, em parte, o "sentimento do mundo", que eu preservo, e que os africanos têm de sobra, porque viveram conflitos reais em seus próprios países.

Iracy: Você considera, portanto, que seria preciso depurar o signo linguístico para se resgatar a energia originária do vocábulo, a fim de que a linguagem pudesse expressar as "realidades mais profundas", resgatando aquela poiésis que a automatização da linguagem corrente desgastou?

Salgado Maranhão: A língua, como a vestimenta, tem vários usos e rituais. Usa-se de uma maneira para cada ocasião. Por exemplo: não é adequado ir à igreja com roupa de praia. Nem ir à praia com roupa de festa. Porém, é natural que a língua corriqueira, seja a mais usada por todos no dia a dia. E é também natural que haja um desgaste e um empobrecimento (e até tesouros despercebidos) nesse uso. Portanto, ao poeta cabe esmerilar e pulir, o verbo aviltado. A maioria das pessoas não está, normalmente, atenta a essa dimensão sutil de beleza, porque a luta pela sobrevivência básica nos consome a vida em demasia. Assim, aqueles que têm o dom e o desejo de se dedicar ao garimpo da linguagem, podem trazer esse legado à tona para o desfrute de todos. E aí, cada um que tenha a oportunidade de ler um poema verdadeiramente belo, irá reconhecer em seu próprio inconsciente, essa memória ancestral.

Laborárduo

Meus olhos exilaram-me
na planície das palavras.

E luto com elas no breu
como um louco
que adestrasse nuvens;

_ como o outono a depenar-se.

Ainda que no desconcerto
ante as coisas que pedem silêncio. (p.54)

Iracy: Seu trabalho poético com a linguagem revela-se em uma escrita construída sobre alicerces de eixos distintos: o formado pelo próprio som dos vocábulos que confere à escrita um ritmo brusco e o constituído pelas metáforas dissonantes que desarranja os versos e as imagens, ao focalizar a angústia do sujeito.

Quando seus poemas findam a impressão que fica é que ele ganha nova força. Após uma interrupção é preciso retornar ao poema. Envolvidos em um processo de constituição do significado, essa nova leitura nos conduz a outras formas de pensar. O que eu particularmente chamaria de uma "tensão entre o pensamento e a linguagem". Desse modo, o sujeito poético não se reconcilia com a vida.

Pergunto: é como se o poema estivesse sempre evidenciando um alarde diante da vida e promovendo, intencionalmente, no leitor, uma constante excitação diante da linguagem e do pensamento?

Salgado Maranhão: Minha poética atua no limítrofe do significante. É como se faltassem palavras para formatar minha loucura e eu ficasse alargando as margens da língua. Busco manter uma tensão permanente, que acorde o leitor da letargia, mas, sobretudo, que acorde a mim mesmo, que não me vicie numa zona de conforto e comodismo. Por outro lado, quando esse estado alcança o extremo, é preciso retornar ao repouso, como no conceito do Yin e do Yang oriental. É quase uma política de morde e assopra. Só não pode é prescindir da beleza, porque, sem ela, se cai na tortura.

Iracy: Não há intenções de silêncios em torno daquilo que o toca de modo arrebatador, poeta? A impressão que fica é que você é leitor de seus poemas?

Salgado Maranhão: É verdade, leio muito meus poemas, em geral, com segundas intenções: leio para achar defeitos. Mas leio também para reconhecer virtudes, para ser justo com o que tem mérito. Porém, triste do poeta que se apaixona pela sua própria verve. Os que assim procedem, se afogam no lago de Narciso. É fundamental não perder o senso crítico, mas não tê-lo em demasia para não perder o voo. É um equilíbrio delicado, mas de alto crescimento interior. E esse é um caminho para dentro que se faz na companhia do silêncio.

Iracy: Mallarmé ensina-nos "que há no horizonte da poesia um livro impossível que nunca ousa desenhar-se; desenhá-lo seria abolir o mistério e anular a distância infinita que separa o ideal. Neste espaço sem fim, vacila justamente a alma inquieta do poeta."

Evidentemente, sua poesia faz ecos e quando nos perdemos em seus versos:

Em face do mistério

Minha sina é uma canção
de amor no temporal.
desliza sobre mares
rola sob viadutos
ruínas e paixões.

meu coração quasar rasante
(vale-transporte para a via láctea)
brota sob o carpete,
Sobre os algados
e as cinzas do não.

(ó sina que me arremessa
na canção do temporal!)

do acervo do não ser
a essência das coisas range
pedindo para nascer. (p.21)

É como se fôssemos encontrando os rastros dispersos daquele sujeito cindido. Sujeito que, partindo pela escrita, partiu-se?

Salgado Maranhão: Minha arte reflete minha história de vida e assimilação do mundo: sou aquele que não era para ter sido. Em algum poema eu digo que meu "nome é nômade", porque eu sou aquele que a poesia salvou. Portanto, há em mim uma inquietação que lacera as palavras. Quando a poesia se apodera de mim, vaza um rio de palavras rítmicas em minha boca que eu penso que estou ficando louco, mas, claro, de uma loucura feliz. De modo que, quando você levanta essas escamas em minha poesia, me alegra que alguém possa percebê-las, porque, cada poema que faço (embora haja uma motivação interna muito forte) tem infinitas leituras e releituras.

Iracy: Freud afirma que as artes têm um valor social ligado à sublimação. Lacan retoma inúmeras vezes a questão da criação artística e entende que a arte, de certa forma, produz um desconforto porque aponta para indizível, o vazio, ou seja, o real. Pergunto eu: A satisfação e o júbilo do sujeito diante de uma poesia são efeitos de que nesta, ele encontra algo mais do que esperava ler. Como você situa o que sempre escapa ao olhar do sujeito diante do fazer artístico?

Salgado Maranhão: O que fascina as pessoas diante da poesia é a sua gratuidade, sua verdade genuína num mundo quase todo poluído pelo interesse material, pelas segundas intenções. O ser humano fica sem ter um único refúgio, exceto o olhar e o sorriso das crianças. Quando o leitor se depara com um tipo de texto que não quer vender nem comprar, ele se sente uma individualidade-fim, e, não uma individualidade-meio. Porque a publicidade quer parecer, mas a poesia quer apenas ser. Isso tudo promove, dentro de uma pessoa sensível, uma verdadeira revolução. Uma fome insaciável de plenitude vai tomando conta da sua mente e do seu coração, porque a beleza transcendente é contagiante. Porém, quanto mais se busca mais se percebe que ela é inalcançável. E é isto o que torna a vida ainda mais instigante.

Iracy: E para o poeta, Salgado Maranhão, sempre resta algo indizível, intraduzível ou impossível de transmitir?

Salgado Maranhão: A poesia é o terreno do mistério. Busca-se, o tempo todo, uma aproximação, via palavra, da matéria do indizível. O que instiga e encanta é saber que esse poço não tem fundo, mas que, na ânsia do novo, se possa mirar alguma água límpida. Minha busca não tem pressa, tenho a vida inteira para gastar com ela.

Corda bamba

o poeta é mercador
traficante de caminhos
que vende raios,
sinfonias
e horizontes.
frugal mercador de eternidades
– porta a porto –
aos quatro cantos do luar
ao mar
ao ar
sob o tempo
e o temporal.
o poeta corre o risco
entre o amor livre
e a palavra.
está sempre atrás do pano
em plena corda bamba
do mistério.
e atravessa submerso as metrópoles
dos olhares
feito um louco solitário
que come fogo.(p.59 )

Iracy: Na teoria, o poeta nunca se exprime melhor do que quando se esforça por não expressar-se, quando renuncia a falar de si para falar de um mundo em que se perdeu por aí. Ao exprimir esse mundo ele expressa a si próprio. A verdade do poeta deve ser procurada no poema. O poeta está aqui se ousamos dizê-lo, rigorosamente coextensivo ao poema. Onde iremos encontrar o poeta Salgado Maranhão?

Salgado Maranhão: O que há de grande e misterioso na poesia é o fato de ela está sempre vazando dos conceitos estanques. Para apanhá-la todas as formas e temas são possíveis, só depende do poeta. Muitas vezes, numa geração o formalismo impera com bons resultados, depois vira fórmula, e aí, o que foi rejeitado reaparece com nova roupagem. Na verdade, não há caminhos, só caminhantes.

A única coisa que não pode ser substituída é o talento. Dentro de cada poeta está sua poesia. Como na culinária, cada qual que ache o seu tempero. Não é fácil nem difícil, mas não pode ser ensinado.

Quem conhece minha poesia sabe que ela é minha pele e minha medula, porque, como um garimpeiro, só quero tirar da mina o que é ouro genuíno, não a forço quando ela pede silêncio, embora viva permanentemente, em estado de poesia.

Iracy: O universo poético de Salgado Maranhão é singularmente harmonioso, uma vez que, tal harmonia advém da própria poesia, que nos torna ressonante e consonante e permanece em nós, porque não é imposto, mas tão somente sugerido.

não morro pela essência
morro de essência. (p.80)


Muitíssimo obrigada poeta Salgado Maranhão


Iracy Conceição de Souza
Professora Substituta de Literetura Portuguesa da UERJ
Mestre em Literatura Portuguesa/2009/UERJ
Doutoranda em Letras Vernáculas/UFRJ

Notas

Os livros de poesia publicados por Salgado Maranhão:
Punhos da serpente (Rio de Janeiro, Achiamé, 1989 );
Palávora (Rio de Janeiro, 7Letras, 1995 );
O beijo da fera (Rio de Janeiro, 7Letras, 1996 );
Mural de Ventos ( Rio de Janeiro, José Olímpio Ed.; Mogi das Cruzes – SP, Universidade de Mogi das Cruzes, 1998 ). 1998, Prêmio Jabuti 1999
Ebulição da Escrivatura (Antologia poética, 1978);
Encontros com a Civilização Brasileira (poemas e ensaios)
Aboio ou a Saga do Nordestino em Busca da Terra Prometida (cordel, 1984);
Sol sanguineo (2002)
Solo de gaveta (2005)
A pelagem da tigra (2009)
A Cor das Palavras. Imago: Fundação Biblioteca Nacional, (2009)

Artigos