O Marrare número 14
Confira em O Marrare - Entrevista com Salgado Maranhão: "Poeta é aquele que não sabe ser de outro jeito."

  • Edição 14
  • Edição 13
  • Edição 12
  • Edição 11
  • Edição 10
  • Edição 09
  • Edição 08
  • Edição 07
  • Edição 06
  • Edição 05
  • Edição 04
  • Edição 03
  • Edição 02
  • Edição 01

VAGAR, NARRAR: REFLEXÕES ACERCA DO ORDINÁRIO EM ON THE ROAD, DE JACK KEROUAC

André Carneiro Ramos
Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ
andremacartney@hotmail.com

Vagar, narrar: reflexões acerca do ordinário em on the road, de jack kerouac
A ambição deste artigo é refletir a literatura a partir da ideia de reconfiguração do escritor e do crítico na contemporaneidade, dado que se confunde com uma nova concepção de ato literário, que se reinventa na errância e em uma espécie de vivência "ordinária". O romance On the road, do escritor americano Jack Kerouac, afirmaria a possibilidade de que o gesto do escritor corrobora a noção de crítico como "alguém" que se apropria da tradição literária qual um momento de "queda". Dessa forma, esse dizer-mostrar atual (poético/narrativo) afirmaria continuamente a imperfeição de seu ato, oscilando entre a idéia do escritor e a postura do crítico. Os "outramentos" (de acordo com Lévinas) sentidos a partir dessa vivência "ordinária" estabeleceriam a concepção de movimentos de partida, espécie de "esgarçamento" por onde se interrogam os limites da literatura no âmbito de sua própria tradição. Palavras-chave: Literatura Contemporânea. Geração Beat. Jack Kerouac. Ordinário.

Wandering, narrating: reflections about the ordinary in on the road, by jack kerouac
This paper introduces speculations about the nature of literature from the point of view of contemporary notions of the writer and the critic, which coincide with a new conception of the literary, which is reinvented in wandering and in a new experience of the "ordinary". On the road, by North-american writer Jack Kerouac, explores the possibility that writing corroborates the notion of the critic as "someone" who appropriates literary tradition, as a moment of "downfall". In these terms, nowaday saying-showing (the poetic/narrative) constantly indicates the imperfection of this act, oscillating between the idea of the writer and the posture of the critic. The 'otherness' (according to Lévinas) experienced as a result of contact with the 'ordinary' would establish the conception of movements of departure, some sort of 'fraying' through which one interrogates the boundaries of literature within its own traditions. Keywords: Contemporary Literature. Beat Generation. Jack Kerouac. The ordinary.

"Viajar Perder países! / Ser outro constantemente, / Por a alma não ter raízes / De viver de ver somente! // Não pertencer nem a mim! / Ir em frente, ir a seguir / A ausência de ter um fim, / E da ânsia de o conseguir!"

Fernando Pessoa, Cancioneiro.

Romanticamente imaginada pelos escritores do século XIX, a identidade do homem resultou, imersa no decurso de inúmeros eventos posteriores, em qualquer coisa imprecisa, por isso mesmo perspassada por variações sociais, culturais e estéticas – dado que enfatizou contribuições no âmbito do que se poderia chamar de "problema literário da contemporaneidade". Tal questão adquire proeminência quando se toma como nota as seguintes palavras:

(...) todo o século XIX será atravessado por essa busca do homem sem nome, regicida e parricida, Ulisses dos tempos modernos (sou Ninguém): o homem esmagado e mecanizado das grandes metrópoles, mas de onde se espera, talvez, que saia o homem do futuro ou de um mundo novo (DELEUZE, 1997, p. 86).



É interessante notar o quanto esse "homem do futuro" se materializou depressa nos gestos dos transeuntes que povoam as avenidas de nossas metrópoles. Na verdade, tais rostos sempre se fizeram representados como personagens das mudanças políticas e estéticas engendradas pelo Modernismo: nos anônimos que invadiram os fotogramas de Eisenstein; no vagabundo imortalizado por Chaplin; no ser atormentado e metamorfoseado de Kafka; no homem sem qualidades de Musil; nas ruas e criaturas testemunhadas por um Baudelaire acossado pelo frenético alarido das massas... Ao que parece, conclamando para o artista o desígnio de se revelar modernamente em suas obras, o escritor contemporâneo passaria a evocar um instinto renovado de autenticidade – incontido e exposto em suas próprias e "ordinárias" experiências literárias –, algo que relativizaria até mesmo uma ideia consagradora que se tem acerca da tradição.

Assim, este artigo adota a possibilidade de releitura dos escritos de Jack Kerouac a partir de uma conjuntura que venha a admitir as premissas de "queda" e "vivência ordinária" em seus escritos anti-stablishment – a meu ver, imprescindíveis para uma (des)construção de sua obra, da Geração Beat, bem como da contemporaneidade. Supõe-se, para tanto, o imperativo da imperfeição no trabalho artístico atual, justamente por evidenciá-lo como modalidade de vida, alguma coisa que por intermédio de um dizer-mostrar (poético ou narrativo) somente encontraria sentido quando compreendido na estatura do que realmente é na tradução de aspectos de uma entrega por parte do artista numa espécie de "outramento", por onde se apresentaria os limites da literatura e a tradição sofreria um processo de "esgarçamento". Na evidência de tais partidas, o que nos resta são estilhaços, possibilidades. Percebe-se, então, o quanto uma obra pode evoluir aberta, levando-nos a modos instintivos do artista de se deixar conduzir criticamente a uma ponderação por sobre as coisas do mundo e a chamada tradição. É nesse sentido a ideia primeira desta proposta: tratar do gesto do escritor que, modernamente, corroboraria com a noção de crítico como "alguém" que se apropria da tradição literária feito um momento de "queda".

Portanto, onipresentes reflexões de caráter literário passariam a interrogar as formas canônicas do conhecimento, seja no âmbito filosófico ou sociológico, o que acabaria por reestruturar o processo clássico da criação narrativa ao se delinear uma resposta por onde a literatura se tornaria até mesmo filosoficamente essencial em seu dizer, ao demonstrar que as soluções teóricas delineadas na modernidade – ou as perpetradas pela tradição –, por muito interessantes ou "apuradas" que sejam, não podem explicar o fenômeno da narrativa atual sem a renitência da imperfeição. Para tanto, mencionaremos pontos do pensamento de Lévinas sobre a alteridade e no que se refere a uma abrangência do ser a partir de um outro deste mesmo ser. Tudo o que foi problematizado até agora pode significar que as soluções de outrora – ou melhor, as do presente histórico das produções artísticas anteriores – podem ser tomadas como qualquer coisa que incitaria um olhar crítico por sobre as frustrações do fazer narrativo contemporâneo apartado das multidões revolucionárias (determinantes da falência meta-narrativa apregoada por Lyotard). Logo, a efígie moderna do homem acabaria por se reconfigurar como depositária de inúmeras crenças que procuravam, outrora, salvá-lo da massa lhe promovendo um "futuro messiânico", ocorrência comprovada pelos personagens proletários de Melville e o estilo de vida ratificado pelo cinema americano do pós-guerra.

Por conseguinte, a partir dos anos 50, começa a surgir nos Estados Unidos um movimento que tentava representar o mundo moderno e suas contradições. É a chamada literatura "Beat". Esse termo, bastante peculiar, passou rapidamente a significar algo ora transgressor – cunhado que foi na cadência upbeat do jazz, ritmo que desencadeava em seus admiradores um processo de movimentação, transformação e mudança – algo ora divino, pois que as ideias beatffics nasceriam livres e reveladoras do único caminho redentor possível: o de nossas próprias experiências. Essa geração logo passaria à escala de fenômeno cultural, cujos ecos seriam ouvidos mais tarde pelos hippies, punks, etc., promovendo uma nova tentativa de revolução via literatura a divulgar as convicções dos artistas que vivenciavam e trabalhavam suas temáticas a partir das transformações do pós-guerra, sempre na tentativa de se questionar o chamado american way of life como modelo de ideologias. Eis a crise: com o término da Segunda Guerra Mundial, o mundo não se fez liberto e tão sem ameaças como o sonho americano propagara. Contrariamente a isso, permaneceu a intranquilidade aliada ao crescente anticomunismo evidenciado pela Guerra Fria e à crise tecnológica que se instaurava na sociedade de consumo, que à época fortalecia sua marcha. Sob esse viés, o homem prosseguia involuindo-se, quase que em pé igualdade com as máquinas, ao colocar de lado a identidade/liberdade que possuía; em uma espécie de vazio, não agia e não encontrava significado para quase nada. É a partir daí – sendo decisivo tanto na América como no comportamento das gerações futuras do mundo inteiro – que o movimento Beat entra em cena, diferenciando-se pelo seu protesto à ordenação, isso através de uma exaltação ininterrupta à liberdade e ao direito à possibilidade transgressora de representação literária:

Entre as muitas definições de Kerouac para a Geração Beat, ele inclui "um cansaço de todas as formas, todas as convenções do mundo". A sensação de estar alienado em sua própria terra derivava em parte do entendimento de que alguma coisa "tinha se corroído dentro de mim, fazendo com que eu lutasse para ser 'diferente' disso tudo". Sentia-se próximo de pessoas sóbrias demais, estranhas demais, subterrâneas demais" para preencher as credenciais de uma sociedade na qual, como argumenta Stephen J. Whitfield, "a expressão cultural era impedida e distorcida" a cada nova oportunidade (VLAGOPOULOS in KEROUAC, 2008, p. 59).



Daí, podemos pensar em uma "queda moderna", alguma coisa tendenciosa a se transformar num questionamento e por onde certas "verdades" poderiam até mesmo ser invalidadas. As metanarrativas, por exemplo, já amplamente criticadas por Lyotard, inaugurar-se-iam esterilizantes e propagadoras das chamadas ideologias universais pelo simples fato de serem totalizadoras de um viés exclusivista e absolutista de uma pseudo-sociedade. À parte isso, a noção pós-moderna de ficção prezaria, anos mais tarde, a expressão das emoções particulares, intersubjetivas, consagradas por imagens religiosas, mitológicas e poéticas como a evidência de uma espécie de sangramento, que certamente induz à reflexão. Antes disso, porém, os Beats tomariam o inconformismo como bandeira. Ao que se percebe, o que passa a imperar é um quiasma – nuance entre o delírio e a sã criatividade. E se na transição das décadas de 50-60 a noção de liberdade era limitada, alguns artistas lutavam contra isso ampliando sua dialética para com o mundo, ou seja: ser livre passou a significar a negação dos padrões burgueses até então reproduzidos. Jack Kerouac foi um desses "marginais", juntamente com Allen Ginsberg e Willian S. Burroughs. A partir da publicação de On the road, em 1957, rapidamente desenvolveu uma reputação de peregrino, boêmio hedonista e celebrador de uma não-conformidade com o mundo, ratificada por sua escrita ininterrupta, espontânea, livre de excessivas e castradoras correções. Tudo isso enfatizava o seu tom de engajamento corriqueiro com as palavras, combinadas fortemente em suas páginas:

"Oh cara! cara! cara!" balbuciou Dean. "E isso não é nem o começo – e agora finalmente estamos juntos indo para o Leste, nunca tínhamos ido pro Leste juntos, Sal, pensa nisso, vamos curtir Denver juntos e ver o que todos estão fazendo, mesmo que isso não nos interesse muito, a questão é que nós sabemos o que aquilo significa e sacamos a vida e sabemos que tudo está ótimo." Depois, me puxando pela manga, e suando horrores, ele me segredou: "Agora saca só esse pessoal aí na frente. Estão preocupados contando os quilômetros, pensando em onde irão dormir essa noite, quanto dinheiro vão gastar em gasolina, se o tempo estará bom, de que maneira chegarão onde pretendem – e quando terminarem de pensar já terão chegado onde queriam, percebe? Mas parece que eles têm que se preocupar e trair suas horas, cada minuto e cada segundo, entregando-se a tarefas aparentemente urgentes, todas falsas; ou então a desejos caprichosos puramente angustiados e angustiantes, suas almas realmente não terão a paz a não ser que se agarrem a uma preocupação explícita e comprovada, e tendo encontrado uma, assumem expressões faciais adequadas, graves e circunspetas, e seguem em frente, e tudo isso não passa, você sabe, de pura infelicidade, e durante todo esse tempo a vida passa voando por eles e eles sabem disso, e isso também os preocupa num círculo vicioso que não tem fim" (KEROUAC, 2008, p. 257).



O desenrolar dessas experiências acontece no final da década de 40, conturbado período do pós-guerra em que o mundo e os homens sofreriam as consequências de seus atos. Porém, a despeito deles, o que representava ser um beat? Podemos imaginar todos os que almejavam atingir um grau de "beatitude" exatamente fazendo oposição a essas "transformações"... Dean Moriarty e Sal Paradise são os principais personagens do autobiográfico On the road, respectivamente Neal Cassady e Jack Kerouac, imersos na ficção e a conjurar, quem sabe a nós, leitores, um "terceiro" personagem, resultado das experiências de ambos na vida real, (re)traduzidas e fundidas em uma só vivência a partir do ato literário. Logo, torna-se evidente que a Geração Beat procurava uma sensação plena, alguma coisa que pudesse lhes comprovar que tudo ao entorno realmente fazia parte de algo maior – ratificando a ideia de negação das regras, inclusive a do tempo; aspiravam, na verdade, viver um mergulho no agora. Para tanto, enxergavam a multidão das grandes metrópoles como se todos não passassem de animais em cativeiro; para eles, o que existia em tais lugares era tão-somente a competição, emoldurada por sonhos vazios:

(...) lá estava eu na Times Square. Tinha viajado doze mil quilômetros pelo continente americano e estava de volta à Times Square; e ainda por cima bem na hora do rush, observando com meus inocentes olhos de estradeiro a loucura completa e o zunido fantástico de Nova York com seus milhões e milhões de habitantes atropelando uns aos outros sem cessar em troca de alguns tostões, um sonho maluco – pegando, agarrando, entregando, suspirando e assim poderiam ser enterrados naquelas horrendas cidades-cemitério que ficam além de Long-Island (Idem, p. 139-140). (...)

De repente, no meio do refrão, ele consegue aquilo – todo mundo olha e percebe, todos escutam; ele segura e vai em frente. O tempo pára. Ele preenche o espaço vazio com a substância de nossas vidas; são confissões vindas do âmago de seu umbigo, lembranças de idéias, reinterpretações de velhos sopros. Ele tem que tocar cruzando as pontes, ida e volta, e tem que fazê-lo com infinito sentimento, explorando as profundezas da alma, porque o que conta não é a melodia daquele momento, que todos conhecem, mas AQUILO – Dean já não podia prosseguir; suava a cântaros depois de ter me contado tudo isso. (Ibidem, p. 254-255).



Como se vê, o tempo na estrada é o da "errância" e do encontro, bem como o da frutífera conversa com desconhecidos-outros. Na estrada, o futuro e o pretérito não oferecem perigo, pois que a experiência temporal vivida pelos viajantes "ordinariamente" também pode resultar (pelo uso de drogas até) num momento místico, pois que nessa partida não se teria a morte como certeza. Contrária a isso, a metrópole é uma cela, um asilo de loucos, um "cemitério de homens". Em On the road, Kerouac insiste na diferenciação entre a rotina castradora do capitalismo e a percepção salutar do tempo na estrada, liberto das preocupações e do eterno (re)planejar das cidades, moradia do tédio para os beats:

Agora Sal, estamos deixando tudo para trás e entrando numa nova fase desconhecida. Todos esses anos, essas complicações, esses baratos todos – e agora isso! De modo que seguramente podemos deixar tudo para lá e apenas seguir em frente, com a cara para fora da janela, assim, e compreendermos esse mundo de uma forma como, para falar com genuína franqueza, os outros americanos antes de nós não conseguiram fazer – eles estiveram aqui, não estiveram? (...) (KEROUAC, 2008, p. 334).

O que também se evidencia nesse dizer-mostrar de Kerouac é o seu tom de crônica, aliado a uma atmosfera "ordinária" que, possuída criadoramente, acaba por agir, a posteriori, por sobre as funções tradicionais da literatura; "restos" a favor de um revigoramento das formas narrativas, reiteradas pelo habitual. Nessa feita, compreende-se uma contínua e ininterrupta "peleja" contra as conjunturas da existência, em que são dadas explicações tímidas a reafirmar a "expressão do desejo humano de negar a condição da existência humana":

On the road é meu veículo com o qual, como um poeta lírico, como um profeta leigo, e como possuidor de uma responsabilidade com minha própria personalidade (o que quer que ela esteja louca para fazer), desejo evocar essa música triste indescritível da noite nos Estados Unidos – por razões que nunca são mais profundas que a música. É o verdadeiro som interior de um país. (...)

No verão passado em Denver tudo o que fiz foi passar três meses contemplando as planícies, por motivos, motivos. Há um ruído que escuto no vazio; há uma visão do vazio; um lamento no abismo – um grito no ar triste: o domínio é assombrado. O homem assombra a terra. O homem está na saliência de um rochedo falando muito de sua vida. O poço da noite autêntica. Deus paira alto em seus sudários. Cuidado! (BRINKLEY, 2006, p. 256).



Mas o que formaria a identidade desse sujeito-marginal? Para responder a tal indagação, a leitura do livro Autrement qu'être ou au-delà de l'essence (2004), de Emmanuel Lévinas, faz-se pertinente, pois que discute o tema levando em consideração a presença do outro, de uma alteridade por assim dizer, haja vista que para o filósofo a existência não se completaria apenas na concepção de um si isolado, alheio ao que lhe é diferente. Tomado por essa atmosfera de impressões, a citada obra enfatiza-me a apreciação de que não somos vistos por nossas individualidades apenas, nem mesmo pela deferência a qual fazemos jus, por nossas subjetividades. E é no intuito de indagar essa crise disfarçada que Lévinas nos força a ir além de uma legítima dimensão fenomenológica, ao que com isso, na alteridade, transcendemos o limite de nossas individualidades, nosso mundo, nossas dores e história. Nesse caso, a aporia dizer-mostrar se movimenta na profundidade filosófica referida até porque o contar do outro (impregnado de um seu entendimento) é reincidente e invade o discurso de toda a humanidade. Pareceu-me, desse modo, que "outrando-se" (até mesmo para um terceiro talvez), fica nítida a ideia de que o dizer seria algo sempre insuficiente para responder a um narrar que nos remeteria a qualquer além, possuidor de inúmeras (re)significações nesse ininterrupto esboço possível do outro. Relacionando tal fato com este artigo, há, portanto, no denso universo levinasiano, a percepção de um sentir do si para com o outro, dado que se perfaz a partir de um encontro "anterior" a qualquer aspiração ontológica, pois que a noção de infinito se revigoraria justamente nessa "marginal" alteridade. Relacionando tudo isso aos escritos da Geração Beat, notamos então que as noções de um "dizer" e de um "mostrar" acabariam se mesclando a partir de uma não distinção entre ambos, pois que nenhuma ficção se sustenta contemporaneamente só pela invenção; nesse caso, o gesto do escritor caminharia para uma necessária simplicidade, onde se revela e não se esconde nada, ora entregando-se a um teor "marginal", ora espelhando a crítica para com a sociedade, com seus jovens a indagar tudo o que imperava de politicamente correto; recusando aspectos "sadios" da vida americana; vivenciando, para tanto, a experiência do corriqueiro, da "queda" (e para tanto, depurando-se...).

Por estas e outras singularidades — ao expandirmos o que se pode denominar de idiossincrasias contidas na ideia de partida e, nesse caso, seu aspecto "ordinário" —, devemos "sorver" a escrita de Kerouac como uma expressão da dicotomia escritor-crítico, pois que On the road promove uma investigação/revelação da circunstância geral das próprias (re)criações da Geração Beat, de como um dizer-mostrar pode se apresentar feito "exercício do espírito em se figurar mundos impossíveis". Daí é que o poeta, o escritor, o crítico e o viajante acabariam por se tornarem autênticos, na medida em que se entendem na simplicidade. Em tempo, caberia perguntar, então, se esses estranhos e modernos criadores continuariam a promover um "outramento" nesse palco de colisões humanas e suas "perfeitas" instituições sacralizantes. Tal modo de vislumbrar a alteridade acabaria por evidenciar a possibilidade de uma compreensão epistemológica inclusive, pois que nortearia a busca por um entendimento de tudo aquilo que não é inteligível dentro de um discurso consagrado. Esse outro – reiteradamente "ordinário", nesse caso – lançaria o escritor-crítico aos descaminhos da diferença, dilacerando-lhe o pacato universo das certezas. Mais uma vez o efeito é claro: anseia-se pela contemplação. Com isso, tanto o escritor quanto o crítico se pronunciam num lugar-paisagem, afastados que estão das exclusões ditadas pelo dogmatismo político ao nos oferecer um estatuto epistemológico a partir de todo um cortejo "beatificado" de loucos, monstros, anormais, prisioneiros, drogados, homossexuais, etc. Nesse ínterim, a noção de "esgarçamento" da tradição literária se constituiria como uma espécie de crônica do declínio, algo reverberador da solidão das grandes metrópoles e do tédio que as inunda. Uma transgressão possível, considerando-se o uso de alucinógenos e a ocasional exacerbação sexual do corpo que se conjugaria presente nessa ideia de "errância". Distinguir este possível saber da arte é uma tentativa de reconhecimento da noção de dizer/mostrar como um ato crítico do escritor, que nesta viagem, nesta partida se investigaria e ao mundo, ficcionando possíveis bifurcações.

Trata-se, pois, de um protótipo de narração moderna, que se faria "ordinária", por isso mesmo almejada na contemplação. Isso muito se assemelharia a um aceno crítico por excelência, o que equivaleria a se redobrar a atenção para com o "atuar" do sujeito errante que habita cada escritor-crítico contemporâneo – um andarilho por excelência –, fazendo ruir os confins penetrando paisagens, transgredindo paradigmas, sempre numa espécie de "transfiguração".

E o que aniquilaria as suas e as nossas "verdades" é justamente a presença distraída do "errante", que ao mesmo tempo está aqui e ali, habitando todos os lugares e nenhum deles, reinventando-se nesta entrega. Concluindo: é neste embate que o escritor-crítico, seja na prosa ou na poesia, faz-se eticamente responsável e partícipe de uma (re)descoberta literária que se processa na viagem, na partida, num lançar-se rumo à miséria do narrar, que pressupõe um observar e um revelar simples e relutante às tradições. A esta altura se admite, portanto, tendo como foco os escritos da Geração Beat, que se está diante não só de uma retenção puramente artística sobre a literatura contemporânea, mas também em presença de uma entrega que reafirma este esforço narrativo em prol de um saber autônomo, calcado na experiência que renega paradigmas e inaugura descaminhos. E tal (re)invenção de mundo, essa "queda" na arte, presentifica-se hoje cada vez mais estimuladora de uma relação de alteridade corrosiva, inserida muitas vezes por essas diferentes concepções de escritor e de crítico, identidades agora que, ao abraçarem o "ordinário" como território nebuloso e imprescindível, acabam "outramente" provocando um para além do outro, poética e discursivamente, rumo à condição de personagens indagadores de suas próprias reinvenções, clarificando mais ainda o saber que advém da palavra.


André Carneiro Ramos
Mestre em Literatura Portuguesa UERJ 2008
Professor Adjunto Literatura Portuguesa/ UERJ
Doutorando de Literatura Comparada /UERJ-Bolsista da Faperj

Referencias

ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. Rio de Janeiro: Cia das Letras, 2007.
BÍBLIA SAGRADA. São Paulo: Sociedade bíblica do Brasil, 1988.
BRINKLEY, Douglas. Diário de Jack Kerouac: 1947-1954. Porto Alegre: L&PM, 2006.
CAVELL, Stanley. En busca de lo ordinario: líneas del escepticismo y romanticismo. Madrid, España: Ediciones Cátreda, 2002.
CAVELL, Stanley. Esta América nova, ainda inabordável. São Paulo: Ed. 34, 1997.
DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 1997.
KEROUAC, Jack. Geração beat. Porto Alegre: L&PM, s/d.
______________. On the road (Pé na Estrada). Trad. de Eduardo Bueno. Porto Alegre: L&PM, 2008.
______________. Visões de Cody com As visões do grande rememorador de Allen Ginsberg. Porto Alegre, RS: L&PM, 2009.
HABERMAS. Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
LÉVINAS, Emmanuel. Autrement qu'être ou au-delà de l'essence. Paris: Le Libre de Poche, 2004.
LYOTARD, Jean-François. O inumano. Lisboa: Editorial Estampa, 1990.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François [et al.]. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.

PAGE \* MERGEFORMAT 1

A bíblica história da Torre de Babel, narrada tanto pelos cristãos quanto pelos judeus, trata do momento em que uma única linguagem oferecida aos homens por Deus é estilhaçada em muitas. Trata-se, portanto, de uma metáfora sobre os limites do conhecimento, e que também pode ser entendido como um acontecimento trágico que veio disseminar posteriormente a dicotomia progresso/destruição entre as nações, ao se unir à soberba de uma construção humana a fragmentação linguística que se funda na ideia de errância. Esse infortúnio permaneceu na memória coletiva como uma espécie de gênese da globalização, algo que também revela a nascença da heterogeneidade cultural contemporânea; isso faz pensar sobre a questão da sobrevivência na metrópole. Logo, modernamente não conseguimos nos livrar totalmente do mito de Babel, bem como deste caráter de "queda", tanto por representar, aos olhos de Deus, uma ambição descontrolada do homem, quanto pela fatal ambiguidade da "peregrinação" em sociedade, o que determina a sua ruína (fruto, como muitos supõem, de um castigo divino). Eis o signo dessa "queda"... E o mito de Babel parece ainda bem encarnar a fragilidade do homem!

Pensamento de Emmanuel Lévinas acerca da alteridade, que nos revela, num caráter de abrangência do ser a partir de um outro deste mesmo ser, uma ideia que passa a significar a aproximação do escritor contemporâneo para com um terceiro, e até mesmo contra ele. A partir dessa premissa, inicia-se a configuração de um possível dizer tendo como foco o seu início de elocução, pois que seria do lugar de um terceiro que partiria este encenar, um outro que não é o próximo, mas um diverso estranho que lhe habita o âmago do ser. A linguagem se manifesta bem mais além do que a ancestral ação de se comunicar, ideia esta que se fundamenta numa possível essência: a saber, o ato do contar, ou, unicamente, o dizer. É na ousadia desse dizer que o artista instaura um novo sentido à invenção do mundo e se lança em aberto e pela escrita em sua (re)criação. Eis que o contar se perpetua como um gesto de aurora.

Trato, então, de refletir acerca da evidência de um possível "outramento", algo que no sentido da criação artística em si mesma e no pensamento sobre uma possível literatura contemporânea acolheria o que denomino por lugares-paisagem, originários de uma experiência "ordinária", a saber: entre o sonho e a imperativa precisão, viagem, partida; entre o contra-senso da existência das coisas e sua ânsia de percebê-las sentindo, relato/ensaio – tudo isso funcionando como soma. Eis a ratificação de um conhecimento que advém da literatura.

Neal Cassady representa para Jack Kerouac a sede de infinito; espécie de Álvaro de Campos, no que diz respeito a "viver tudo de todas as maneiras".

Para Lévinas, este "terceiro" seria precisamente aquele que, pela alteridade, aproximar-se-ia de nós, ou melhor, de modo mais identificável, relacionar-se-ia com o si do sujeito contemporâneo. Na contramão deste teríamos a figura do "outrem", um ente desconhecido e cuja identificação para com esse mesmo si não se efetivou.

Este comportamento se parece muito com o modo baudelaireano de "sentir" a vida urbana, no que tange às questões pastorais/não-pastorais pertinentes à sua obra.

Em outras palavras, a razão, por exemplo, segundo Lévinas, não se pode pretender universal apenas, pois que sua investigação torna-se muito mais ampla a partir da alteridade, já que, ao nos aproximarmos do outro, talvez ontologicamente passássemos a oprimi-lo ao invés de aceitá-lo.

Nesse caso, a linguagem se manifestaria mais além do que a ancestral ação de se comunicar, conceito que se fundamenta na possível essência do ato do contar, ou, unicamente, o dizer. É nessa ousadia que o escritor-crítico instaura um novo sentido à sua (re)invenção de mundo, lançando-se em aberto e pela escrita neste seu momento de "queda". Eis que o relato, nesse ínterim, perpetuar-se-ia qual gesto de aurora. Nessa feita, acompanha o criador moderno um misto de memória e imaginação, pois que essa escrita "ordinária" corresponderia a de ninguém menos que um diferente de si em sua intuição autoral. Na analogia criação-linguagem, o traumatismo que se estabelece é necessário, e ilustra o quanto tal experiência se fecunda como dobra ética que beira a escavação; um expor-se, ou melhor, um outro do escritor-crítico que desdiz a totalidade para, "ordinariamente", reinventar-se sob a forma de contemplador ciente de que a arte escava, entre as ruínas acumuladas de mundos conhecidos, uma passagem por onde se possa perpetrar o "desejo humano de negar a condição da existência humana".

O pensamento de Stanley Cavell acerca da ideia de "transfiguração", reitera a elaboração de um possível dizer que teria como foco uma pulsação narrativa reveladora de um outro, partícipe do período de "errância" antes do encenar literário. Alguém que não lhe seria tão próximo, mas um diverso que lhe habita o âmago do ser e lhe promove uma tensão. Os gestos autorais desencadeados a partir deste "encontro" se fariam dialógicos, pois o crítico – eis que ele se desprende e coaduna-se ao ficcionista – ao se apropriar da tradição literária "transfiguraria" a narrativa justamente pela ideia de "queda", de imperfeição que o ato literário contém e reverbera, contemporaneamente, oscilando entre a ficção e a postura crítica.

Artigos