O Marrare número 14
Confira em O Marrare - Entrevista com Salgado Maranhão: "Poeta é aquele que não sabe ser de outro jeito."

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O AMOR COMO DESCULPA

(CARVALHO, Bernardo. O filho da mãe. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.199)

Catharina Epprecht
catharinaeps@gmail.com

O amor maternal parece o ponto óbvio de um livro intitulado O filho da mãe, pertencente a uma coleção focada na temática do amor (Amores Expressos). A expressão, no entanto, também dá pistas de que o caminho percorrido pelo romance não será tão óbvio assim, afinal, "filho da mãe" não é uma expressão exatamente delicada. É com uma avaliação dúbia da maternidade em seu papel na propagação de afetos no mundo que se desenrola essa obra de Bernardo Carvalho, ao apresentar figuras maternais heroínas e mães frágeis. Via maternidade/filiação, o autor acaba por propor uma discussão acerca da salvação, da intolerância, da desculpa (em especial do amor como desculpa) e, mais fortemente, acerca das escolhas.

Mãe e filho viram metáforas do amor que sufoca mais que protege, a começar pela mãe-pátria, a mãe-Rússia, onde o romance é ambientado, que não protege seus rebentos, pelo contrário, explora-os e manda-os para a guerra. No ambiente dessa antimãe (a Rússia), reencontram-se duas antigas colegas de escola: Iulia, que acaba de receber um diagnóstico de câncer bem avançado, e Marina, que trabalha nas Mães dos Soldados, ONG que busca livrar jovens do alistamento militar e da guerra na Tchetchênia. A conversa entre as duas se passa na comemoração do tricentenário de São Petersburgo (2003): "O mundo está mudado – ou em obras, recebendo os últimos retoques. 'A cidade vai renascer', diz um cartaz pendurado num edifício (...)" (p.12).

O ambiente de reconstrução e renascimento sugere um clima de perpetuação, mas, mais importante, de recomeço, de novas chances de ser algo desejado. E não é assim também o nascimento de um filho, quando seus pais podem renascer e de certo modo refazer suas vidas, passar-lhes seus valores, experiências, conhecimentos? Salvar um filho é salvar duas vezes, a ele e a si. Se, no amor em meio ao ódio (a guerra, o mundo-cão), é gerado o impulso da salvação, o grande questionamento do livro recai sobre as fronteiras – e logo numa história em que uma guerra separatista é travada – dessa tentativa, desse desejo de perpetuação. Isto é: A partir de quando o amor (por um filho, por exemplo) não se torna mera desculpa para a promoção da destruição? Um amor incompleto, parcial, que só deseja sobreviver e não percebe gerar novos ciclos de ódio, em vez de os encerrar?

O filho da mãe trabalha com três núcleos familiares que irão se cruzar: 1) Ruslan e Zainap: o neto e a avó que o criara depois do abandono da mãe e da morte do pai; 2) Nova família de Anna (mãe de Ruslan): Dmítri (marido/pai) e Roman e Maksim (filhos); 3) Família de Andrei: com a mãe Olga, o padrasto Nikolai e a irmãzinha, de um lado; e, de outro, o pai, Alexandre, que ele não vê desde os dez anos.

No entrelaçar de histórias, vão se delineando personagens maternais fortes – Marina e Zainap, duas mulheres que de maneiras distintas lutam para encerrar ciclos de ódio – e fracos – Anna e Olga, mulheres frágeis, temerosas e ressentidas de seus maridos, ainda que inertes diante deles. Entre os polos, o filho surge como possibilidade de salvação, de quebrar círculos viciosos ou reforçá-los quando a salvação não é bem sucedida. O salvamento é metafórico, mas também literal, afinal se trata de uma história de guerra, bombardeios, emboscadas. E é para salvá-lo de uma guerra, que Zainap conta a Ruslan algo que guardara consigo por anos – justamente uma história de mães e filhos "para chegar até a mãe dele, de quem tampouco lhe falara até então" (p.37). A mãe que o abandonara poderá agora lhe salvar.

Atrelado à salvação está o lugar da tolerância e da compreensão em contrapartida à mulher que se mantém amarga em relação ao passado e transmite isso a seus filhos, impedindo um olhar amoroso em relação ao mundo e podendo incitar novos ciclos de intolerância. E foi numa atitude compreensiva, não rancorosa, que Zainap aceitou criar o neto, atitude que pede a ele que repita: "Peço que você faça um esforço para compreender o que estou lhe dizendo, como eu mesma tentei compreender na época, e não a julgue. (...) Nem toda mulher quer ser mãe. (...) Um filho dá e tira a vida ao mesmo tempo." (p.42)

A intolerância da trama culmina em Maksim, um skinhead produto de um casamento de incompreensão e má comunicação, mas também de uma perspectiva pouco compreensiva vinda de pelo menos duas gerações antes da sua. No relato dos jantares da família de Anna, percebem-se os desacordos do casal em relação à educação dos filhos, inclusive com acusação por parte do pai de que a mãe teria estragado Maksim. De seu lado, Anna queixa-se de não ter ido morar em Nova York, como a irmã, que é matemática, e de continuar "nesse fim de mundo". Dmítri julga-a ingrata, afinal, "ele foi sua salvação" (p.57). Para continuar a ter tal salvação, Anna precisaria deixar de salvar da Tchetchênia seu filho mais velho, Ruslan.

Em sua fraqueza, essa mãe não assume Ruslan e é permissiva com Maksim. Ela se vai deixando levar e quase não reage ao entorno. Quando, quase ao fim do romance, por duas vezes ela finalmente reage, é porque chegou ao fundo do poço, e o resultado é desastroso. A reação não se segue de nenhuma criação, de nenhuma tomada de posição, é apenas energia desmedida, não direcionada nem trabalhada, e com isso, Anna perde as rédeas da situação.

O casal conversa no clima tenso de sempre, ele suspeita de infidelidade, que Anna não desmente nem confirma a princípio. "Não tem forças para responder, mas tampouco tem escolha." (p.88) Impossível não se perguntar que personagem é essa tão sem opção em sua fragilidade, tão cheio de medo, tão entregue ao rumo que a vida levou. Mas, eis uma reviravolta. De um momento para o outro, ela lembra a Dmítri lhe ter contado que deixara uma vida para traz. "Talvez você não tenha querido ouvir ou entender o que significa 'uma vida'." (p.88) Por amor ou por generosidade, reconhece Anna. Seja como for, agora conta: aquele rapaz não é seu amante, é seu filho.

A mulher "vomita" a informação, mas não a transforma em ação. Quem agirá dali em diante, com olhar próprio e rancoroso, são pai e filho, Dmítri e Maksim.

No capítulo seguinte, a segunda reação de Anna, dessa vez ao filho renegado: Um breve momento de ternura é substituído pela sensação de estar diante de um agressor, como se "só lhe restasse lutar pela sobrevivência" (p.92). As palavras vêm violentas, diz que não queria tê-lo, que não via a hora de abandoná-lo. Ela chora. Ele sai de perto. Ela corre atrás se desculpando. "Não vê que eu sou uma mulher em pânico? Será que ninguém tem o direito de escolher?" (p.92)

Anna passou a vida sem agir ou reagir. Viveu a mera aceitação. No momento em que aceitar o destino parecia de fato inescapável, em vez de aproveitar, ela reagiu – violentamente. Depois da explosão, ainda tenta se desculpar. O mecanismo da desculpa, aliás, é bem explorado por todo o romance, com uma associação entre fragilidades (de diferentes tipos) e desculpas.

Filhos de mães frágeis, os dois personagens principais, Ruslan e Andrei, não se rendem a culpas e desculpas. Veem sua salvação fora da mãe-Rússia, que, conforme a avaliação de Ruslan, precisa de condenados, isto é, alimenta não uma liberdade, um potencial emancipador, mas a servidão. No caso de Andrei, sua salvação está no Brasil. Parece ser uma homenagem de Bernardo Carvalho, que o capítulo mais importante para a conexão salvação-renascimento-arbítrio se passe "Sobre o Oiapoque" (às franjas do Brasil, é verdade, mas ainda em nosso país). A passagem da danação à salvação é exposta quando o biólogo brasileiro envolvido em tráfico de espécies nativas Alexandre Guerra (pai de Andrei) promete que a viagem que faz naquele momento será sua última, que não vai mais trabalhar de maneira ilegal, porque o filho, com quem teve contato apenas por 10 anos, está chegando ao Brasil. E explica ao mateiro que o acompanha por que o rapaz irá ao país: "Pela primeira vez ela [a mãe, Olga] me disse que sozinha já não pode salvar a vida dele. E me pediu que o salvasse." (p.167)

Há na vinda do filho, portanto, um salvamento de duas mãos: da vida de Andrei e da dignidade de Alexandre. O desejo de ser exemplar ao filho move esse homem, que guarda um amor latente. O mateiro, porém, dá o tom pessimista: "Você não vai reconhecer seu filho". E mais adiante pondera quanto ao desmanche das opções éticas/legais diante na necessidade de sobrevivência: "Quem tem escolha?"

Direta e indiretamente, o romance traz cenas que fazem pensar a questão do arbítrio. Uma primeira ocorrência, logo do início da trama, passa pela afetividade como promotora do desejo de arbitrar minimamente. Quando Ruslan é sequestrado pelo Exército, sob suspeita de ser terrorista, Zainap vai tentar livrá-lo e encontra um ex-aluno seu, agora militar. Embora o narrador conte que "nada no semblante do ex-aluno manifestasse simpatia – nem sequer reconhecimento –, ele deu a entender que faria o possível para soltar Ruslan antes" (p.32) – o que de fato aconteceu. Dentro da guerra, houve naquele episódio algo de positivo, como se o ex-aluno tentasse, dentro das suas possibilidades (que eram mínimas), fazer algo pela ex-professora. "E ela viu naquilo, uma forma de agradecimento" (p.32).

No capítulo de apresentação de Andrei, há também um jogo entre escolha e falta de escolha da tarefa a que foi incumbido no Exército – prostituir-se para complementar a renda de superiores. Apesar de certa aceitação de seu destino, alguma faísca de ação ocorre-lhe. A caminho da incumbência, decide pegar o metrô em vez do ônibus: "Um pequeno ato de insubordinação. O que lhe resta de livre-arbítrio é também o que aumenta sua margem de risco." (p.99) Mais adiante, um passo maior: a fuga do Exército.

Andrei e Ruslan não aceitam o chamado destino. São contrapontos ao mateiro brasileiro, em sua abordagem fatalista na busca de desculpar o desmanche ético, e à personagem Dmítri. O marido de Anna, Dmítri, chega a ponderar que "está condenado a salvar o filho" (p.176), ainda que ao fim do romance, ele próprio compreenda tê-lo usado como desculpa. (No epílogo, há ainda outra personagem que comete atrocidades em nome da justiça e do amor à mãe-Rússia)

No diálogo de fechamento do romance (antes do epílogo), quase concordando com a posição do pai de "sem escolha", é Marina quem indica haver mais entre amor e guerra do que se possa imaginar:

As mães têm mais a ver com as guerras do que imaginam. É o contrário do que todo mundo pensa. Não pode haver guerra sem mães. Mais do que ninguém as mães têm horror a perder. Você é capaz de matar por um filho. E acaba recebendo o troco na mesma moeda quando a guerra o leva. (p.186)



Mas alto lá: o discurso desesperançado não condiz com a atuação dessa mulher. A sutileza é que Marina não mandou seu filho para guerra (como Olga), nem desejou que outros filhos morressem, agora que o dela não vivia, pelo contrário, busca salvá-los. Afirma que a mãe é capaz de matar por suas crias, mas ela mesma não matou (como, em certa medida, fez Anna). Embora perceba do que uma mãe é capaz, sua fala indica mais "o que tem sido" (uma observação da situação) do que "o que deveria ser". Marina apenas constata como funciona a lógica do amor como desculpa.

Antes da amiga falar sobre amor e guerra, Iulia aponta outra variável: o medo. "As pessoas fazem as coisas mais estranhas para não ficarem sós." (p.186) É o medo que promove a desculpa da falta de opção. "Ninguém vai construir sua casa à beira do abismo" (p.186), diz ela – o que faz lembrar a expressão de Nietzsche, "construir a casa na encosta do Vesúvio". Em casos em que muitas pessoas acham que não há opção, talvez a escolha esteja em que parte da encosta construir.


Catharina Epprecht
Mestre em Sociologia e Antropologia/PPGSA/IFCS/UFRJ (2008)
Doutoranda em Literatura Comparada/PPGL/UERJ

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