O Marrare número 14
Confira em O Marrare - Entrevista com Salgado Maranhão: "Poeta é aquele que não sabe ser de outro jeito."

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UM VIAJANTE EM BUSCA DE SI MESMO

(TAVARES, GONÇALO M. Uma viagem à Índia: melancolia contemporânea (um itinerário)/. Prefácio de Eduardo Lourenço. São Paulo: Leya, 2010, 452 p.)

Valdemar Valente Junior
Universidade Castelo Branco/UniverCidade
valdemarvalente@gmail.com

A narrativa de Gonçalo M. Tavares reconstitui o périplo de Vasco da Gama na direção do Oriente, tendo, contudo, em Londres, seu ponto de partida. No plano das narrativas circulares, Ulisses, o herói da Odisséia, de Homero, e sua viagem de vinte anos, nomeiam a obra máxima de James Joyce, cujo personagem principal também transcreve um percurso circular, só que dessa vez no tempo de um dia.

Assim é que Uma viagem à Índia reitera o percurso lusitano cantado por Camões em Os lusíadas e tem o comando de um Bloom joyciano. A narrativa poética não abre mão de uma sucessão de peripécias que a colocam em um modo de explanação de seu mais pleno sentido épico. Na direção da Índia está a sabedoria que busca Bloom.

A viagem de Vasco da Gama, narrada na epopeia de Camões, ganha uma feição de atualidade através da interferência de elementos da modernidade, a exemplo da viagem aérea, que ocupa o espaço das antigas naus.

A viagem de Bloom tem sua sequência em Paris. Ao situar-se no presente, Bloom investe-se da capacidade inventariar a existência a partir da memória. O transcurso do tempo instaura-se entre a memória do passado e a projeção do futuro, sendo a passagem por Paris a parada onde a narrativa abre a torneira por onde irá escorrer a água da história.

A memória não se perde no corpo do homem. Todavia, ao relembrar, o homem reinventa, dando margem à confecção do tecido ficcional. Nisso, a memória coaduna-se ao presente quando se instaura um contraponto, a partir de descrições de Roma e da Grécia. Lisboa, no entanto, situa-se como a capital de um país sem grandes indústrias, com dois lados para o mar e outros dois para a terra.

Diante disso, reza a tradição de que um Bloom deva sempre avançar, uma vez que tempo e espaço são duas categorias que se aproximam diante da proposta de alguém que busca o aprendizado e o esquecimento. A viagem rumo ao futuro das coisas ainda remete ao espaço como possibilidade de acesso ao conhecimento. Encontrar para depois perder, lembrar para depois esquecer, espécies de exercícios que a condição humana busca.

A dinâmica da vida segue seu fluxo contínuo. A roda do tempo não se torna emperrada. As distâncias são sempre relativas. A busca por uma mulher significa o esquecimento de outra.

O episódio do assassinato de Mary, narrado por Bloom, faz com que ele possa perpetrar sua vingança assassinando o próprio pai, responsável pela morte de sua amada. A lembrança de Mary adensa-se a uma série de outras, que cotejam sua história familiar ao amor perdido.

Memória e esquecimento confirmam a intenção de sua aventura. O esquecimento repete-se na medida em que a viagem prossegue. Não olhar para trás é a condição para se seguir em frente. A Índia é um destino a ser atingido gradualmente. Desse modo, é necessário desprender toda a energia acumulada e lá encontrar a possibilidade do esquecimento.

Viajar significa mudar de ares e perder de vista o presente que incomoda. A epopeia de Gonçalo M. Tavares revisita o modelo épico de dez cantos de Os lusíadas, além de estabelecer uma espécie de roteiro, que nomeia de "Melancolia contemporânea (um itinerário)", que de algum modo se aproxima do roteiro-chave que se encontra no final de Ulisses, de James Joyce.

Vale salientar que, no percurso da epopeia, acompanha Bloom o rádio que pertencera a seu pai e que não funciona. Diante disso, desenvolve uma reflexão sobre o vazio em que se encontra a contemporaneidade, quando os valores do amor e da poesia sucumbem ao temor coletivo e à máquina capitalista onde o dinheiro impera em todas as relações. O rádio sem som é um símbolo da mudez repressiva.

No périplo de Bloom, a passagem por parte da Europa exclui sua condição mística, que fora negociada com os norte-americanos. A Europa em si parece esvaziada. No entanto, é preciso reunir as condições necessárias para se chegar à Índia, em busca da sabedoria e da calma em meio ao ruído produzido pelo que chama de animais contemporâneos.

Em Viena, Bloom adoece. Suas gengivas incham como os sintomas do escorbuto que atacava os navegadores. Depois de perder a mulher amada e matar o pai, o tempo deve durar, sendo seu aliado na viagem à Índia. Amor e morte unem-se em seu projeto de aprendizado e esquecimento. O diálogo com Camões transpõe seu próprio legado épico.

No entanto, é preciso promover uma viagem em busca de si mesmo antes da viagem propriamente dita. Chegar à Índia por mar significa uma exposição ao veneno que pode representar a água, maldição dos náufragos. Assim, a viagem de Bloom à Índia ainda corresponde a um percurso interior.

Tendo em vista os diversos episódios de Os lusíadas, as narrativas dentro da narrativa, Uma viagem à Índia recorre a vozes externas que se integram ao poema acrescentando-lhe elementos de historicidade fundamentais à construção épica a que se propõe Gonçalo M. Tavares.

Bloom chega à Índia com a intenção de transformar sua própria vida. Na Índia encontra-se uma dimensão do monumental que amplia o aspecto mágico em seus resultados. Os encontros estabelecidos por Bloom sugerem histórias que não são verossímeis, mas reinvenções, o que põe em questão a memória com algo variável.

Amish passa a ser um decifrador dos mistérios indianos. O rio Ganges não possui águas sujas, mas águas sagradas. A Índia é o país do encantamento, haja vista a sagração das vacas que transitam pelas ruas.

A sabedoria continua a ser o objetivo de Bloom, a partir da interferência do velho Shankra e da forma de como adquiri-la. A concepção do sábio afirma que cada homem é portador de uma narrativa perfeita que só se encerra com a morte. Ouvimos histórias durante toda a nossa vida. Além disso, o engenho e a capacidade humana desaparecem diante da evidente força da natureza. As tempestades e os terremotos são a verdadeira obra de arte que contraria as leis e os códigos.

O sábio é, antes de tudo, um bom ouvinte, o que ratifica o lugar das palavras, ditas na medida em podem ser ouvidas. Todavia, é preciso conhecer o viajante, uma vez que não é possível ensinar a quem não se conhece. Shankra o questiona sobre o lugar do passado e do presente como bagagem de vida. História e imaginação são muito mais sujeitas a divertir que memória e verdade.

As contradições do mundo são explicadas de modo a colocar Bloom diante do fato de não saber o que pode ser feito. A sabedoria de Shankra, no entanto, pode ser o alvo da cobiça de Bloom. Ambos cobiçam o que o outro possui, haja vista a paixão pelos livros que os aproxima. Quando de seu retorno à Europa, Bloom trará em sua bagagem uma parte do saber de Shankra como um tipo de especiaria.

Ao propor a troca de livros, o sábio indiano desperta no viajante a idéia de não mais haver sábios, senão leitores. Bloom compreende ser o saber uma mercadoria. Então, sob ameaça, de dois discípulos do sábio, é obrigado a entregar a mala com as obras de Sófocles e Sêneca, além de todo o seu dinheiro. No entanto, rouba ao sábio o volume do "Mahabarata", bem como um cordão de ouro.

As obras de Sófocles e Sêneca são devolvidas a Bloom que, no entanto, subtrai do sábio o "Mahabarata", espécie de prova de sua estada na Índia. Além disso, traz consigo o rádio que pertencera a seu pai e que, como antes, continua sem funcionar.

De volta a Paris, seu amigo Jean M promove-lhe uma recepção para que as sensações do corpo possam-lhe aflorar o instinto amoroso. O amor teria a capacidade depurar temporariamente a sensação da morte. Jean M credita a Bloom o direito de amar ou fornicar em face do que passou e sofreu.

Bloom, Anish e Jean M decidem-se cada qual por uma mulher. A excitação e o sexo fazem Bloom entender que a Índia a que buscara nunca existiu. O homem que pensava encontrar na Índia o conhecimento agora se entrega ao prazer com uma mulher a quem desconhece por completo. A viagem à Índia faz com que o futuro e o passado condensem-se como compreensão do presente, a partir de onde há lugar para tudo.

Por fim, decide-se por retornar a Lisboa, mas acaba por matar a mulher que o acompanha. Sem ter resposta para o que fizera, toma um comboio de volta a sua terra. Indiferente a tudo, caminha anônimo. Desfaz-se da mala que o acompanhou por toda a viagem dando-a a uma velha que encontra na rua. No bolso, o velho rádio que não funciona.
A viagem chega ao seu fim.


Valdemar Valente Junior
Doutor em Ciência da Literatura (Poética), UFRJ, 2003
Professor de Literatura Brasileira e Teoria Literária
das Universidades Castelo Branco/UniverCidade

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