O Marrare número 14
Confira em O Marrare - Entrevista com Salgado Maranhão: "Poeta é aquele que não sabe ser de outro jeito."

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ENSAIO EM TONALIDADE HOMEOPÁTICA UM RETORNO À ADVERTÊNCIA DE MACHADO DE ASSIS

Marcus Alexandre Motta
Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ
maruslexandremotta@globo.com

Ensaio em tonalidade homeopática um retorno à advertência de Machado de Assis
A partir da advertência ao leitor em Várias Histórias ― "... mas há sempre uma qualidade nos contos, que os torna superiores aos grandes romances..." ― essas linhas consideram a ideia de que os contos de Machado de Assis são equivalentes ao ato de risco literário em cultura recente. Os contos de Machado de Assis, demarcados por aquele fragmento de frase, são aqui pensados como paródias da vulnerabilidade do romance entre nós ― um tipo de garantia do interesse literário no lugar da segurança cultural que o romance se encarrega de demonstrar. A verdade da paródia dos contos seria, portanto, a avaliação da dor irônica do quão longe as "nossas vidas" estariam daquela forma literária, contida na pequena frase em destaque.
Palavras-chave: Machado de Assis. Conto. Paródia. Ironia.

Back to Machado´s warning in várias histórias
Taking as a point of departure Machado´s warning to the reader, in Várias Histórias, that "… there is always a quality in short stories that makes them superior to great novels…", this article investigates the idea that the author´s short stories represent the act of literary risk in recent culture. Within the scope of the previous statement, short stories by Machado de Assis are here understood as parodies of the vulnerability of novels – a kind of safeguard of the literary investment in the cultural safety provided by novels. The truth residing in the parody of short stories would therefore represent the appraisal, contained in the statement foregrounded, of the ironic pain that results from awareness of the extent to which "our lives" are distant from that literary form..
Keywords: Machado de Assis. Short stories. Parody. Irony.

Gostaria de retomar a advertência de Machado de Assis em Várias Histórias: "... mas há sempre uma qualidade nos contos, que os torna superiores aos grandes romances...". Retomá-la para determinar uma série de condições e idiossincrasias de minhas derivações ao lê-la, medindo as simpatias que sinto por ela e garantindo a sua diferença entre todas aquelas frases que recitamos ao dar conta e razão à nossa cultura literária.

Gostaria, portanto, de lê-la e me pôr em sobressalto com o ensinamento que desponta da advertência machadiana. Um pequeno fragmento de frase, nada mais que isso, cujo ensinamento parece questionar todas as nossas expectativas de arrumar uma cultura literária, abolindo o rigor irônico que nos caberia historicamente (lição de Machado, digo).

Ensinamento, posso dizer, para as nossas desatenções habituais. Desatenções que promulgam o pensamento fácil que favorece esquemas capazes de fazer repercutir certo descanso reflexivo, ao lidar com a literatura a partir de evidências empíricas, apadrinhando um "autor" e o embrulhando num frágil papel conceitual: o nacionalismo tosco e rude — apto, como é, de abater a crítica em favor de alguma coisa legitimada e adequada culturalmente, o desleixo (no sentido que Sérgio Buarque de Holanda: "não vale à pena perseguir quimeras").

A minha insatisfação com nossas capacidades de reflexão é aqui uma maneira de dar sentido àquelas palavras de Machado de Assis. Ergo a minha insatisfação para trazer à luz a patologia estrutural de uma não escuta; sobretudo, para indicar que não estou interessado em atribuir culpas por tal circunstância, mas insistir no fenômeno artístico que a frase expressa.

Desse modo, suponho que as palavras da advertência pretendam alcançar, com seu gracejo ferino, as nossas negociações e sintonizações de critérios, em todos os momentos nos quais discursamos sobre a nossa cultura literária. Quando assim pressinto, reconheço o quanto nos foi privado de escutar a advertência machadiana.

Afirmo de antemão: os contos de Machado, acentuados pelo fragmento de frase, são a paródia da vulnerabilidade do romance entre nós. Não quero aqui discutir se Machado de Assis cumpra ou não a própria superioridade dos contos — há muito que discutir se aquilo que consideramos como romances de Machado de Assis não são algo que declina (faz cair) a forma romance. Assumo, por conseguinte, a idéia de que há na advertência machadiana um interesse literário que apresenta uma crítica, bastante irônica talvez, sobre a segurança cultural, imaginária ou discursiva, que o romance se encarrega de demonstrar e fazer alastrar além dele. A possibilidade da paródia dos contos teria, portanto, aqui, o direito de fundar um cálculo da dor irônica proveniente do quão longe as "nossas vidas" estão da possibilidade de gerar histórias para a forma literária romance.

Talvez, alguém esteja se perguntando: desde quando um romance representa uma segurança cultural e qual seria a medida para afirmar tal impropério? A resposta é tão simples que passa despercebida. Numa cultura forjada pela colonização, encontrar uma expressão que dê chance para a aproximação com a metrópole é um fato inquestionável; até porque há sempre "o retrato do colonizador precedido pelo retrato do colonizado" ― para fazer uso do título da obra de Albert Memmi. Nesse sentido, a forma romance, assim como a conhecemos, apresenta o próprio estágio da cultura europeia do século XIX, aparecendo conjuntamente com a institucionalização da disciplina História e, portanto, cumprindo o aparato de um mesmo reconhecimento histórico.

Nesse caminho, a advertência de Machado de Assis pode ser (por mim) tomada tanto como empiricamente direcionada a qualquer leitor que se poste a ler os seus contos, sendo por essa razão tanto um tipo de aviso quanto a exortação de uma situação narrativa, ou, então, pode ser tomada (é o que aqui importa) como a reivindicação dos riscos literários que os contos proporcionam sem recorrer ao abuso que a forma romance descreve quanto ao estágio histórico de uma cultura. É essa segunda variante que me deixa livre para pensar a advertência de Machado como torção literária da segurança cultural do romance.

A incorporação dessa ideia é tudo menos velada. No centro dessa exposição de ideias está a minha surpresa de que os leitores de Machado de Assis não se impressionem com a alusão à superioridade dos contos. Talvez porque tenhamos, todos nós, caído num velho hábito de concordar com a tradição crítica dedicada a Machado. Talvez porque presumamos que os contos sempre serão expressos por páginas que demonstram o que falta a eles para serem um romance.

É essa característica genérica, bastante ordinária, que será a minha maneira de enfatizar o andamento de meu pensamento. Os contos, portanto, na condição do fragmento de frase em destaque, não são uma inferência proveniente da advertência machadiana, uma ação narrativa a partir dela, mas a execução narrativa que a si própria esgarça. Deste modo, me permito pensar que a advertência de Machado ao leitor captura a nossa falta de ousadia em dizer que as "nossas vidas" pouco se adéquam ao romance; expressando ligeiramente um tipo de proporção cultural para as nossas leituras, anunciando a questão sobre o que acontece se não se aceitar a superioridade da forma literária romance (não vou aqui discutir tão óbvia manifestação da idéias de superioridade do romance entre nós, basta lembrar apenas Guimarães Rosa, que jamais deixou de afirmar que só escreveu contos; mesmo quando nós todos denominamos o Grande Sertão: Veredas de romance, poluindo a própria ousadia da obra).

Digo que Machado de Assis ao escrever aquela frase percorre o caminho completo da qualidade dos contos. Nisso há algo que realmente é aquela uma qualidade dos contos; como se eles, os contos, expostos no fragmento de frase, lá estivessem sempre presente em cada conto que Machado escreveu. Disso se segue que a possibilidade do fragmento pode ser percebida da seguinte maneira: ou o conto existe como uma qualidade relativa ao romance, ou ele, como é, persegue a sua natureza, segundo uma realização da diferença enunciada sempre de uma qualidade que os contos deverão cumprir para serem superiores.

Parece-me que se pode ver como Machado de Assis afiança a sua advertência numa contínua fidelidade à qualidade do conto, pelo fato, como posso colocar, de que o fragmento de frase é tão literário quanto qualquer conto. Isso porque o fragmento de frase existe, porque precisa dizer existo, como um conto (curto), ou precisa autenticar a sua existência qualitativa, ao afirmar, ao sustentar uma qualidade que torna os contos superiores aos grandes romances.

Devo insistir, porém, que a fragmento repousa em sua fraqueza, pode-se dizer em seu vazio ― na verdade, em dois vazios. Primeiro, a palavra contos na advertência não prejulga o que o conto pode vir a ser, apenas especifica que esse o-quer-que-seja encontre as condições que precisa ter como uma qualidade que os faz superior aos grandes romances. Segundo, a prova daquela uma qualidade funciona apenas no momento de sua apresentação, pois a prova na advertência de Machado de Assis é a simples existência do conto que efetiva sua experiência a partir de uma qualidade superior. Qualidade que só pode se configurar na expressão serem curtos, já que um grande romance de curto nada tem.

A transitoriedade da existência da prova daquela uma qualidade nos contos é a correspondente brevidade de seu tipo de prova. É apenas na presença concisa de tal prova que a frase surte efeito ― como se não houvesse nada mais em que confiar além da própria confiança que a frase apresenta. Se os contos são narrações que podem efetuar a sua existência de tema, e por correspondência a nossa, o recibo da literatura é uma qualidade nos contos entre nós. A palavra contos na frase, portanto, afirma ou sustenta ou reconhece a autoria de um conto, estabelecendo a possibilidade de um tipo de cultura que é a nossa.

Aparentemente é essa sensação de autoria que dá prova humana, nos contos, da nossa existência cultural ― uma confirmação como fonte para as ideias de que nós precisamos de um autor de contos, Machado de Assis; assim como precisamos nos ver culturalmente naquela qualidade superior que os contos são.

Entretanto, o inato, mas há sempre uma qualidade nos contos, é como a dúvida que simplesmente expressa a coincidência rápida entre autoria e o gênio da advertência. Assumo que o desvio do fragmento de frase, que Machado de Assis me permite fazer, segue mais ou menos o seguinte andamento: há uma acepção da autoria que de si mesma exige imaginar-se conto, uma acepção de que na ausência dessa dúvida há impedimento da autoria na tarefa, contínua, de garantir que há sempre uma qualidade nos contos.

Para fazer com que esse desvio tenha sentido, preciso reconhecer que Machado de Assis vislumbre a nossa cultura como contos, na qual o interesse literário, cabível a ela, se manifeste, na qual as "nossas vidas" apareçam naquela uma qualidade, dado que isso se opõe a perda da possibilidade literária face um adversário opressor, a própria cultura, em sua tarefa de pretender ser capaz de se representar na forma romance. Isso é o mesmo que dizer que a pertinência de uma qualidade nos contos acontece em momentos específicos da existência de uma cultura.

Sugiro, concomitantemente, que o fragmento de frase de Machado de Assis reivindique uma qualidade nos contos para requerer que essa forma de prosa demonstre o que nos é comum e, portanto, um tipo de singularidade americana, na esteira de Poe. Isso é o mesmo que acreditar, portanto, que a sua verdade é intrínseca a todos na América. Há de convir: conto é algo coexistente e presente por dentro de todas as idades da natureza da Literatura nessa América na qual nos esquecemos; que com um quanto de tempo desnecessário para as nossas experiências, repletos de agoras mundanos impressos em cada um de nós, dá forma à idéia de descoberta: "questões de sucessões que requerem conversão, e a aspiração à liberdade, e a descoberta (chegadas e, portanto, partidas, abandonos)."

Contos, no fragmento de frase, é consequentemente o nome do compromisso de que o privado e o coletivo de nossa cultura serão afinados ao mesmo tempo, quando se admitir que a forma literária, conto, somos nós. Daí a percepção de que "nossas vidas" se apresentem apuradas ininterruptamente na ausência da obrigação cultural de escrever romances, ou sistemas históricos, para ensaiar e contar a curta vida que é o nosso patrimônio.

Machado, então, dedica a escrita da advertência à promessa dos contos. A dedicação de Machado de Assis é uma paródia da própria voz na palavra contos. Essa paródia consolida uma atitude em direção, ou em resposta, à literatura como tal ― como se algumas das situações literárias do romance, como um todo, implorassem por troça redentora nos contos que o próprio escreve.

Citar autoria como equivalente ao conto é a justificativa mais simples (que arranjo), para cuidar do fragmento, reconhecendo não a vivência de qualquer alguém como o autor da existência dos contos e sim de suas autorias ― pois, contar não é uma propriedade de quem escreve um conto, o que faz do conto algo radicalmente próximo à narrativa que ostenta a curta cultura que temos e somos. Acerca do fragmento de frase, portanto, posso dizer: primeiro, ela demonstra a existência de uma qualidade do conto (isto é: estabelece seu direito de dizer sempre); segundo, aquilo que a advertência demonstra ao seu favor, pode ser usado por qualquer conto no sentido de parodiar o romance e a sua pretensão de superioridade.

Como posso, então, ler a advertência, ou a sua arte, já que ela nos lembra de que nos lemos melhor num conto, de maneira a aprender como a palavra contos, no fragmento de frase, lê a sua superioridade? Machado de Assis alega explicitamente que os contos efetuam sua superioridade, verticalizando o seu tema, sem precisar de um esforço sinfônico de um romance. Caso aconteça assim, a maestria do fragmento de frase é o mesmo que falar que a sua escrita atinge, completamente, a palavra contos. Segue-se que domar o sentido de uma qualidade dos contos, em relação ao romance, é um meio de distinguir a crítica que sai e segue cada palavra do fragmento.

Assinalo essa trilha para recordar meu incômodo de ter que colocar aqui a descrição repetida do fragmento de frase, resignando-me como um vidente; num caso que falha igualmente ao acrescentar que a advertência é também professora de sua aprendizagem. Se assim possa ser, o fragmento apresenta uma teoria ― gostaria que pudéssemos chamá-la de uma estética ― da leitura de uma cultura. As palavras do fragmento de frase são algo a dizer que eles, "os contos", pensam em nós lendo-nos da mesma maneira que fazemos com os pedaços de "nossas vidas".

Com relação à ideia de sua comunicação, como emissão crítica de superioridade, os contos podem vir a significar, em sua prosa, a exposição do mais do que precisa saber para ser um conto. Por conseguinte, a questão que a teoria da advertência de Machado de Assis agencia é algo que se aparenta ao preparo para responder, não o que significa um conto, e sim como os contos, com o qual Machado se importa, diz, invariavelmente, mais que sabe seu autor ― já que escritores e leitores escrevem e leem além de si próprios nos contos. Isso pode ser resumido pela pergunta: o que sabem os contos de Machado de Assis sobre a nossa cultura?

Machado de Assis apresenta uma possibilidade que pode ser expressa assim: uma qualidade dos contos é a virtude de sua maior súplica em saber o que é. Mas o que essa possibilidade nos coloca diretamente é que as "nossas vidas" precisam girar no como se conta, desde que nunca estejamos definitivamente livres uns dos outros, pois entre o leitor e o conto há sempre um movimento de retorno ― alguma coisa como da ordem de se colocar antes numa paisagem americana, já que, em relação ao Velho Mundo, a América narra agora a sua própria carência de fundamentos. Eis, portanto, o baixo mundo, menor em existência e também em profundidade, já que essa condição permite narrar sem nenhum pedestal, curtamente.

Por que, então, a palavra contos parece-me insistir, no fragmento, que conhecerá o seu outro, o romance, criando mesmo, nesse seu outro, a autoria de uma qualidade só dele? Porque o resultado do conto é ganhar a prova de que cada um de nós não está sozinho em nossa cultura, requerendo ser conhecido, contado.

Direi melhor: o que os contos solicitam é dizer que ao sair de sua solidão narrativa o que acontece é a indiferença à sua superioridade (talvez não sem sua ajuda). Seguindo essa linha de pensamento, os contos providenciam condições ao companheirismo, diga-se fraternidade; e o preço desse companheirismo é a supressão, não a afirmação, do seu outro, o romance. Isso é o mesmo que falar: afirmação da indiferença; liberdade e igualdade entre o conto e o leitor, possuidores de atos livres de contar. A herança dos contos de Machado de Assis (especulo só) é nunca deixar esquecer isso.

Ao declarar que o conto não é um espetáculo literário simplesmente para si, desejo aceitar que Machado de Assis esteja negar que ele seja um espetáculo narrativo. E dessa forma, dobra e cruza novamente seus temas correntes ao ser lido, breve. Se assim é, devo agora olhar pelas grades do fragmento de frase, significando que me permito, tendo os olhos delimitados por aquelas palavras, pousá-los na distância que me é dada.

A escrita do conto é como uma maneira da mensagem de sua uma qualidade. Sendo assim, os contos de Machado de Assis, segundo o fragmento de frase, são essencialmente a torção literária que se desprende deles. A sua deformação perversa é surpreendente. Bate-me a impressão de que nos contos de Machado de Assis, o pensamento sobre o escrever contos está resolvendo-se e que, de qualquer jeito, o seu contar existe apenas como uma paródia da vulnerabilidade do romance entre nós, particularmente como algo indistinto da perversão do conto, como se derrubasse o reino da razão do romance numa cultura curta.

Ouso dizer que Machado pode ter incertezas a respeito dos contos, se sua escrita está fazendo seu trabalho, tomando seu caminho. Então o brilhantismo do fragmento de frase, peculiar ao contista Machado de Assis, está em ter descoberto a condição de inteligência em pensar o que nos caberia literariamente. A palavra, contos, acaba sendo assunto típico para ele, a respeito da supressão deliberada do romance, cuja motivação aparente seria a herança de um estado cultural.

A primeira das trilhas para a leitura dos contos de Machado de Assis seria, consequentemente, a conexão reforçada que a advertência apresenta. Como se o fragmento de frase consistisse exatamente em manter-se vivo na existência dos contos. O fragmento nomeia e ilustra um fato comum do conto, até mesmo invoca o que poderia chamar-se teoria machadiana sobre a nossa responsabilidade cultural.

A perversidade (como um aspecto do ceticismo de Machado, confundido sempre com o seu pessimismo) da linguagem nos contos, todavia, trabalha o nosso pensamento em sua autonomia, às vezes até mesmo contra ele. Não é uma função, portanto, de acréscimos ou proles de palavras necessariamente recorrentes e sim de um imperativo nosso que Machado apresenta, falantes da língua que somos, de significar algo nas palavras dos contos e, por elas, desejar dizer algo pervertido sobre a cultura que legitimamos.

Conto é a capacidade humana de pensar, sendo o bastante para inspirar a autoautoria do que somos, e, de qualquer maneira, um modo de leitura de nossa cultura. Eu assumo que o desvio definitivo da advertência de Machado de Assis faz é: há uma acepção de ser autor de si próprio que não exige imaginar-se passível de se contar num romance, uma acepção de que a ausência de dúvida e desejo, sobre os quais o fragmento da frase se instala, é destituir de sentido a capacidade de sermos autores de nossa cultura. Nisso está implícito, a tarefa contínua do contar, como uma qualidade de mudança de anseios, digamos de se tornar a transitoriedade do conto, um conto da transitoriedade do nosso curto prazo. Para fazer com que esse desvio tenha sentido, Machado de Assis precisou de um vislumbre do mundo, uma perspectiva da queda do romance, no qual a infertilidade do indivíduo se manifeste, na qual a vida humana apareça como a falência individual de autocriação.

Os contos de Machado de Assis com seus impulsos de caracterização, conforme o fragmento destacado, denuncia o que poderia ser a única maneira de preservar a individualidade de nossa cultura. Seríamos bem sucedidos? Os contos reforçam a pergunta com aquela uma qualidade superior, prosseguindo na declaração de que não nos irão exaltar ― ou seja: não nos removerá de algo (provavelmente deles mesmos), de um altar ou de uma prisão do romance que, cada vez mais, torna a nossa cultura uma novelística sem cuidado irônico.


Marcus Alexandre Motta
Doutor em História Social da Cultura/UFRJ, 1997
Professor Adjunto de Literatura Portuguesa/UERJ
Professor dos Programas de Pós-Graduação em Letras/UERJ
(Literatura Portuguesa/Literatura Comparada/Arte e Cultura Contemporânea)
Recebido em 15/03/2011
Aprovado em 30/04/2011

Referências
ASSIS, Machado. Obra Completa (v.II). Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar, 1997.
CAVELLL, Stanley. In Quest of The Ordinary. Chicago and London: University of Chicago Press, 1994.
FAYE, Jean-Pierre. A Razão Narrativa. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996.

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